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O Dito pelo não Dito

O Dito pelo não Dito

Na pequena cidade, onde o real e o imaginário se entrelaçavam como dançarinos num baile encantado, os dias passavam de maneira curiosa. Não havia pressa e, na praça central, um relógio abstrato, movido a uma misteriosa bateria de lítio, marcava horas que só faziam sentido para aqueles que sabiam ouvir o sussurro dos vaga-lumes lunáticos.
Era um dia de Carnaval, e as ruas estavam vivas com cores e sons. Mas algo peculiar pairava no ar: uma palavra, solta e sem dono, deslizava entre os foliões. Falava o que queria, deixando de lado qualquer correção, misturando verdades e falácias como quem brinca de esconde-esconde com os pensamentos. Alguns diziam que essa palavra era a encarnação da própria liberdade, outros, que era o caos disfarçado de verbo.
Enquanto isso, à beira da fogueira tropical onde se assavam marshmallows espetados em gravetos, um grupo de crianças observava o espetáculo dos vaga-lumes. Os pequenos insetos dançavam no ar, fugindo e voltando, como se soubessem que estavam sendo assistidos. Entre risos e gestos, as crianças tentavam comunicar em Libras, criando um ballet silencioso de meias palavras e interseções dialéticas. Cada gesto parecia carregar o peso de um conceito, uma tentativa de dar ordem ao caos.

Nesse ambiente quase onírico, a cidade parecia um teatro nômade. Em uma esquina, uma tragédia era encenada com tamanha intensidade que arrancava lágrimas dos mais endurecidos corações. Em outra, uma farsa descarada arrancava gargalhadas até mesmo dos mais sérios observadores. Paragem do Tempo vivia em um constante estado de recriação, onde o big-bang do caos se transformava em ordem apenas para voltar ao caos novamente, num ciclo eterno.
O acordo tácito entre os habitantes era simples: expor ao branco do papel – ou ao som das palavras, ou ainda aos gestos invisíveis o conceito do que significava viver nesse emaranhado de realidades e fantasias. Assim, cada história contada, cada drama vivido, cada farsa representada contribuía para o tecido multicolorido que era a essência da cidade.

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Era meio-dia, e os fogos de artifício explodiam no céu, assustando os cães da região. A torcida, animada e barulhenta, celebrava a chegada de um novo jogo que ainda nem havia começado. As crianças, famintas, corriam para a mesa posta no centro da praça, onde o almoço seria servido. Em uma nação aos prantos, desesperada, agarravam-se a esses momentos de alegria efêmera, tentando boiar no mar da espetacular decadência.
Assim, enquanto o relógio abstrato continuava sua marcha incompreensível, movido pela enigmática pílula de lítio, os habitantes da cidade seguiam suas vidas. Questionavam, riam, choravam e dançavam, sabendo que, no fundo, tudo era parte de uma grande peça encenada sob a luz do dia e à sombra da noite. E, nesse balanço entre o caos e a ordem, encontravam seu sentido, por mais redundante e prolixo que pudesse parecer.
Enquanto o almoço era servido, e os risos das crianças ecoavam pela praça, um velho contador de histórias, começou a falar. Ele era um homem de poucas palavras, mas quando abria a boca, todos paravam para ouvir. Sentado em um banco de madeira, com um livro antigo e desbotado no colo, ele começou a narrar uma nova história.

“Há muito tempo, em um lugar não muito diferente da nossa cidade, vivia uma palavra especial. Esta palavra não era como as outras. Não se limitava a um significado ou a uma frase. Era uma palavra livre, que falava o que queria, sem se prender à correção ou ao julgamento. Um dia, essa palavra encontrou um poeta que sofria de um bloqueio criativo terrível. Sem ter o que dizer, o poeta vagava pelas ruas, tentando encontrar inspiração em cada esquina, em cada rosto, em cada gesto silencioso.”

As crianças, fascinadas, mastigavam devagar, tentando não perder nenhuma palavra da história. Até os adultos, que normalmente se ocupavam em discussões ou em resolver os problemas cotidianos, se calaram para ouvir.
“O poeta, ao encontrar a palavra, sentiu-se inicialmente intimidado. Como poderia ele, um simples criador de versos, domar uma palavra tão selvagem? Mas a palavra, percebendo a aflição do poeta, começou a sussurrar em seu ouvido. Não eram apenas sussurros comuns. Eram gestos invisíveis, como os que usamos em Libras, e meias palavras que carregavam mundos inteiros de significados. Lentamente, o poeta começou a entender que não precisava domar a palavra. Precisava apenas ouvi-la e deixar que ela se expressasse através dele.”

Fez uma pausa, olhando para as crianças que agora o cercavam. Sabia que elas entendiam mais do que aparentavam. Naquele instante, um vaga-lume pousou em seu ombro, brilhando suavemente como se fizesse parte da narrativa.
“A partir desse momento, o poeta começou a escrever novamente. Seus poemas eram diferentes de tudo que ele já havia criado. Eram caóticos e ordenados ao mesmo tempo, uma dança de significados que se entrelaçavam como as estrelas no céu noturno. E assim, o poeta compreendeu que, às vezes, a maior sabedoria está em deixar o caos se manifestar para que a ordem possa surgir naturalmente.”

Ao terminar a história, fechou o livro e olhou para o relógio abstrato. Sorriu, sabendo que, as horas não importavam tanto quanto os momentos vividos. A torcida ainda celebrava, os cães ainda estavam assustados, e as crianças ainda riam e corriam pela praça. Mas algo havia mudado. Todos, por um breve instante, sentiram que faziam parte de algo maior, algo que transcendia a lógica e a razão.

Os habitantes voltaram às suas atividades, mas a história ecoava em suas mentes. Cada um, à sua maneira, começava a perceber que a vida era uma constante recriação, onde o caos e a ordem dançavam juntos. E assim, a cidade seguia seu curso, navegando entre a realidade e a fantasia, encontrando beleza em cada interseção, em cada palavra solta, em cada gesto invisível.

Enquanto o sol se punha, tingindo o céu de cores vibrantes, os vaga-lumes lunáticos se reuniram ao redor da fogueira, como guardiões de um segredo antigo. Eles sabiam, que a verdadeira magia estava na aceitação do caos e na celebração da ordem que dele emergia. E assim, sob a luz das estrelas e o brilho suave dos vaga-lumes, a cidade dormiu, pronta para um novo dia de histórias e maravilhas.
A noite caiu com uma suavidade que parecia ensaiada. As estrelas surgiram lentamente, refletindo-se no rio que serpenteava pela cidade, como se quisessem participar das histórias que ali se desenrolavam. As casas, iluminadas por lamparinas, pareciam fazer parte de um quadro vivo, cada janela revelando fragmentos de vidas e sonhos entrelaçados.

Na praça, a fogueira tropical agora era apenas brasas, e os vaga-lumes continuavam seu esvoaçar, formando constelações efêmeras. As crianças, satisfeitas e sonolentas, foram levadas para suas casas, ainda encantadas pela história. Os adultos, por sua vez, retomaram suas conversas, mas com uma nova perspectiva, compartilhando ideias sobre a liberdade das palavras e o poder do caos.

Após guardar seu velho livro, levantou-se do banco e caminhou lentamente pela cidade. Suas pegadas, silenciosas como seu próprio ser, se misturavam às sombras da noite. Sabia que a verdadeira essência estava na capacidade de seus habitantes de se reinventarem a cada dia, de abraçarem o desconhecido e de encontrarem sentido naquilo que parecia sem propósito.

Quando chegou à margem do rio, parou por um momento para observar a água refletindo o céu estrelado. Sorriu, lembrando-se das palavras soltas que haviam inspirado o poeta em sua história. Aquela liberdade caótica era a força motriz, a energia vital que mantinha tudo em movimento. Era a palavra não dita, o gesto invisível, a meia verdade que, juntas, criavam uma realidade mais rica e complexa.

Enquanto as horas passavam no relógio abstrato, movido pela enigmática pílula de lítio, A cidade mergulhou em um sono profundo. Em cada sonho, havia a promessa de novas histórias, de novas danças entre o caos e a ordem. E assim, a cidade flutuava entre o real e o fantástico, em um equilíbrio delicado e sublime.

Na manhã seguinte, quando o sol nascente tingiu o céu de tons dourados e rosados, a cidade despertou renovada. As crianças correram para a praça, os adultos se prepararam para mais um dia de trabalho e celebração, e o relógio abstrato continuou sua marcha incompreensível. A cidade com sua peculiaridade e magia, seguia em frente, sempre pronta para transformar o caos em beleza, a palavra solta em poesia e o cotidiano em uma eterna recriação.

Assim, a história da pequena cidade continuava, perpetuando-se em cada novo amanhecer, em cada novo sussurro, em cada nova fagulha de inspiração. Porque, a vida era, e sempre seria, um conto realista fantástico, onde cada dia era uma página a ser escrita e cada noite, um sonho a ser vivido.

Renato Pittas :

Contato:[email protected]   

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