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Eu Quero Ser Sedado

Eu Quero Ser Sedado

I

O sol já estava a pino quando os white punks emergiram das sombras, olhos vidrados e passos cambaleantes, como autômatos adestrados pelo colapso do sistema. Correndo atrás de qualquer alívio, qualquer substância que pudesse temporariamente aliviar a pressão esmagadora da normalidade imposta. As ruas estavam sujas de cartazes rasgados e jornais amassados, lembranças de um mundo que prometia, mas nunca cumpria. A banalização da vida era certificada em cada esquina, em cada olhar vazio, em cada sorriso desdentado.
“Não há futuro,” gritou um dos punks, sua voz ecoando na avenida deserta. “Só esperança ansiando por frustrações.” Ele sabia, assim como todos os outros, que a adaptação ao estado junk era a única forma de sobrevivência. O século estava apenas começando, e já havia se tornado um pedido desesperado por misericórdia. As ruínas do sucesso impondo inveja e ódio, revelando que não havia nada aqui para eles. Não havia plano, apenas a miséria dilacerante.

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A fumaça dos escapamentos se misturava com o ar quente, criando uma névoa sufocante. “Será que o que fazemos servirá à história?” alguém ponderou em voz alta. Mas a resposta estava clara: não havia história a ser feita, apenas sobrevivência. Eles estavam arquitetando planos mirabolantes, fugindo da realidade em viagens alucinantes, buscando uma luz azul brilhante que jamais alcançariam.
Os efeitos estufa e os buracos de ozônio eram apenas lembretes tangíveis da decadência iminente. Eles não acreditavam mais em nada, apenas sonhavam com uma fuga impossível. No céu, apenas manchas de azul desbotado, enquanto os cabarés suburbanos tentavam recriar a glória decadente de um passado esquecido. As trajetórias dos controladores de voo e os observadores de plantão eram apenas cenas de um espetáculo grotesco e interminável.
As lembranças das festas com Cuba Libre, Credence Clearwater Revival e promessas vazias se misturavam com os gritos desesperados de um povo que já não acreditava em redenção. “Viva Cuba!” alguém exclamou, com a febre de uma revolução perdida. A águia bicou o olho de um sonhador, e o grito ecoou pela cidade adormecida. “Deixe-me em paz,” ele murmurou, fugindo de uma realidade que insistia em esmagá-lo.

No antro de perdição de um beco escuro, corpos se contorciam em febre e desespero. A pobreza emocional era a pior miséria, uma praga que corroía cada fibra de esperança. Caminhando com suas próprias pernas, sem muletas ou bengalas, eles lutavam contra a maré de opressão. O tempo corria suave, oferecendo promessas de qualidade de vida que jamais se realizariam. O homebanking servia apenas aos poderosos, enquanto os fiéis rezavam a Madre Dulcíssima, ignorando seus exemplos de amor e fé.
A ganância traduzida em valores agregados aos bolsos dos ricos, enquanto os rebeldes eram pisoteados pelos sapatos italianos dos opressores. No coração do labirinto urbano, os sonhos eram desfeitos, e as promessas de um futuro melhor eram apenas mentiras reconfortantes. Os ideais de liberdade e justiça eram corroídos pela corrupção e pelas contradições do sistema.
Nas margens da sociedade, os loucos eram venerados como iluminados, suas palavras ecoando como profecias esquecidas. Mas na realidade, Hollywood e sua terra de falsos deuses eram apenas reflexos de um mundo que preferia a ilusão à verdade. A tecnologia binária e a modernidade eram apenas máscaras, ocultando a miséria e a opressão que consumiam cada um.

Os passos apressados conduziam corpos descrentes a uma festa alucinada, uma celebração do vazio e da decadência. O “ice” estava liberado, e a noite prometia um alívio temporário da angústia interminável. Mas mesmo nas sombras da alegria artificial, a realidade se infiltrava, revelando a verdade incômoda de uma existência sem futuro.
Enquanto a lua brilhava sobre a cidade decadente, eles sabiam que nada mudaria. O silêncio dilacerante era um lembrete constante da solidão e da desesperança. E no final, a única certeza era que a batalha continuaria, uma luta interminável contra a opressão e a miséria, até que não restasse mais nada a ser dito ou feito.

Assim, no meio do caos e da destruição, eles continuavam a correr, sem rumo, sem destino, apenas esperando que, de alguma forma, tudo isso fizesse sentido um dia. Mas até lá, a única constante era a miséria, a dor, e a luta incessante por um pedaço de liberdade que parecia sempre fora de alcance.

II

A cidade parecia um mosaico neo-psicodélico, uma colagem de neon e concreto, com seus arranha-céus reluzindo sob a lua cheia e as luzes piscando como estrelas artificiais. A multidão era um fluxo constante, cada pessoa uma partícula em movimento, correndo de um lado para outro, sempre com pressa, sempre atrasada.
Os becos escuros eram o refúgio dos esquecidos pelo sistema, onde sombras se encontravam para transações rápidas e olhares furtivos. As paredes cobertas de grafites contavam histórias de revolta e desespero, mensagens codificadas para aqueles que ainda ousavam sonhar com mudança. Ali, entre o cheiro de urina e lixo queimado, havia um sentido de pertencimento, um lugar onde os desajustados podiam ser eles mesmos, longe dos olhares julgadores.
Nas avenidas principais, os gigantes de vidro e aço abrigavam os altos executivos, homens e mulheres em ternos caros, suas vidas cuidadosamente embaladas em rotinas previsíveis. Eles caminhavam com determinação, suas expressões impassíveis, imunes ao caos ao seu redor. No entanto, por trás dessa fachada de sucesso, escondia-se a mesma ansiedade, a mesma sensação de vazio que corroía os habitantes dos subúrbios e becos.

Um jovem, caminhava pela rua principal, sua mente um turbilhão de pensamentos desconexos. Vestia uma jaqueta de couro surrada e calças jeans rasgadas, seu visual refletindo a rebeldia que sentia internamente. Havia um brilho febril em seus olhos, um misto de determinação e desespero. Era um dos “white punks running for a dope”, treinado pela ruína do sistema, procurando um escape, qualquer coisa que aliviasse a opressão que sentia.
Passou por um grupo de turistas, suas câmeras e sorrisos contrastando violentamente com o cenário urbano decadente. Não pôde deixar de sentir um desprezo silencioso por eles, suas vidas aparentemente perfeitas, alheios à realidade brutal da cidade.
“Não há futuro”, pensou ele, as palavras ecoando em sua mente como um mantra sombrio. “Apenas esperanças ansiando por frustrações.”

Se lembrou das festas da juventude, noites de Cuba Libre e rock and roll, tentando esquecer as promessas vazias de um futuro brilhante. Naqueles tempos, a música era uma fuga, uma forma de anestesiar a dor da existência. Agora, tudo parecia distante, uma lembrança desbotada de um sonho que nunca se concretizou.
Entrou em um bar de esquina, suas luzes de neon lançando um brilho doentio sobre as paredes sujas. O cheiro de cigarro e álcool era forte, quase nauseante. Ele se dirigiu ao balcão, pedindo uma dose de whisky barato. Enquanto bebia, observava as pessoas ao redor, cada uma perdida em seu próprio mundo de desesperança e frustração.

“Estamos todos apenas tentando sobreviver”, pensou, “adaptando-nos ao estado junk das coisas que nos cercam.”

Viu uma jovem sentada sozinha em uma mesa, seus olhos perdidos, refletindo a mesma angústia que ele sentia. Havia algo familiar nela, uma conexão não verbal que o atraía. Se levantou, seu corpo movendo-se automaticamente em direção a ela. Sentou-se sem pedir permissão, e ela não pareceu se importar.

“Você também sente que não há nada aqui para nós?”, perguntou, sua voz baixa, quase um sussurro.

Ela olhou para ele, seus olhos vazios, mas havia uma compreensão mútua, um reconhecimento de almas perdidas na mesma luta.
“Sim,” respondeu ela finalmente, sua voz quebrando o silêncio pesado entre eles. “Estamos todos presos neste ciclo interminável, esperando por uma saída que nunca virá.”
Ficaram em silêncio, compartilhando uma garrafa de whisky, cada gole um pequeno consolo, uma breve fuga da realidade. Sentiu um calor estranho crescendo dentro de si, uma chama tênue de esperança. Talvez, apenas talvez, houvesse uma forma de escapar, de quebrar o ciclo.
Mas por enquanto, eles estavam juntos, duas almas perdidas na vastidão da cidade, compartilhando o peso da existência. E isso, por mais efêmero que fosse, era o suficiente para mantê-los em movimento, um passo de cada vez, na busca incessante por significado em um mundo desprovido de esperança.

Olhou nos olhos da jovem à sua frente, sentindo uma conexão elétrica que cortava a monotonia de suas vidas. “Vamos sair daqui,” ele disse, a determinação solidificando em sua voz. “Precisamos fazer algo diferente.”
Ela hesitou por um momento, mas o brilho em seus olhos mostrava que ela estava pronta para qualquer coisa que rompesse a inércia sufocante. “Vamos,” respondeu, levantando-se e agarrando sua mão.
Saíram do bar, o ar noturno da cidade envolvendo-os como um abraço frio. Começou a correr, puxando-a com ele, e ela riu, uma risada livre e selvagem que ecoava pelas ruas desertas. Eles corriam sem destino, apenas movidos pela adrenalina e pela necessidade de sentir algo mais intenso que o tédio e o desespero.
Os becos escuros tornaram-se passagens secretas, e os grafites nas paredes pareciam ganhar vida, impulsionando-os para frente. Passaram por festas clandestinas, onde a música alta e as luzes estroboscópicas criavam uma atmosfera de caos controlado. Ele e sua companheira se misturaram à multidão, dançando como se o mundo fosse acabar naquela noite.

Entre um salto e outro, encontrou uma escada de incêndio que levava ao topo de um prédio abandonado. “Vamos subir,” ele sugeriu, e ela assentiu, os olhos brilhando com a excitação do desconhecido.
No telhado, a cidade se desenrolava abaixo deles como um mar de luzes e sombras. Eles ficaram ali, ofegantes, observando o horizonte. Sentiu uma estranha calma se instalar nele, um momento de clareza no meio da loucura.

“Talvez não haja futuro,” disse ele, “mas isso não significa que não podemos criar algo agora.”

Ela sorriu, um sorriso que parecia iluminar a noite. “Estamos vivos, e isso é o que importa.”

Abaixo deles, a cidade continuava a pulsar com vida, um organismo caótico e vibrante. Eles decidiram que, naquele momento, fariam as pazes com a incerteza e abraçariam o agora.
De repente, o céu começou a clarear com os primeiros sinais do amanhecer. As luzes das estrelas artificiais foram ofuscadas pelo brilho suave do sol nascente, e sentiu um renovado senso de possibilidade.

“Vamos encontrar um novo caminho,” disse, segurando firme a mão dela. “Vamos criar nossa própria história.”

E juntos, desceram do telhado, prontos para enfrentar o dia com coragem renovada, sabendo que, embora o futuro fosse incerto, tinham a força e a determinação para moldar seu próprio destino.

Renato Pittas   

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