1974: Cinquenta Anos de Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor
Estamos em 2024, portanto 50 anos depois de 1974, quando, mesmo dentro de uma Ditadura Militar ferrenha, Raul Seixas lançava “Gita” que continha a música que, em minha visão, representa uma perspectiva clara da época: “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”.
Primeiramente precisamos estabelecer o contexto, o momento em que o Brasil vivia no ano de 1974, ano em que estávamos vivendo o décimo ano da chamada “Revolução de 64”, o golpe militar que instaurou, em pleno 1º de Abril de 1964 um regime militar cerceador e violento, impedindo de forma drástica qualquer expressão artística que pudesse, segundo a mentalidade daqueles militares, sua ideia de sociedade. A truculência dos fardados atingia especialmente artistas e jornalistas, com censores presentes em redações de jornais, obrigação de submeter músicas, filmes, programas de televisão, peças de teatro à censura prévia, e perseguição pessoal às pessoas envolvidas, com deportação e prisão, e até tortura e morte.
Dentro dos meios acadêmicos, e criados em sua maioria por jovens de classe média/alta, haviam movimentos clandestinos de resistência, especialmente de onde surgiram grupos terroristas que partiram para a chamada luta armada, praticando atentados, roubos a bancos, sequestros e assassinato de figuras proeminentes. Entretanto, para a maior parte dos chamados cidadãos comuns, nada havia de estranho, já que as únicas formas que existiam de saber o que de fato acontecia eram jornais, rádio e televisão, que eram rigidamente controlados pelo Regime, que vendia a ideia do “Milagre Brasileiro”, usando peças publicitárias para mostrar a maravilha dos seus feitos.
Um pequeno resumo do que aconteceu nesse ano: em 15 de Janeiro, o General Ernesto Geisel é eleito presidente do Brasil pelo colégio eleitoral, contra o candidato da “oposição”, Ulysses Guimarães, numa eleição presidencial indireta. Em 1º de Fevereiro: um incêndio no Edifício Joelma, em São Paulo, deixa 191 mortes e 300 feridos. 4 de Março, o Presidente Emílio Garrastazu Médici inaugura a Ponte Rio-Niterói, localizada na Baía de Guanabara. No dia 15 de Março, o General Ernesto Geisel substitui o General Médici. No mês de Maio, precisamente no dia 17, os presidentes Ernesto Geisel do Brasil e Alfredo Stroessner do Paraguai criam a Itaipu Binacional para gerenciar a construção da usina. Em 1º de Julho, Geisel sanciona a lei que determina a união dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro; e no dia 29 um choque entre um ônibus com 90 passageiros e um caminhão mata 69 pessoas e fere 11 na rodovia Belém-Brasília. No esporte, o Brasil foi eliminado da Copa do Mundo na Alemanha Ocidental pela Holanda, e em Outubro, Emerson Fittipaldi conquista o segundo título mundial de Fórmula 1.
É dentro desse panorama, que Raul Seixas lança, em Julho, seu disco “Gita”, cuja faixa título se torna sucesso instantâneo, tocando em rádios exaustivamente, com o cantor aparecendo em tudo quanto era programa de televisão. Além de “Gita”, o disco era composto de mais onze músicas, entre elas “Medo da Chuva”, “Prelúdio” e a que viraria o hino do “Raulseixismo” posteriormente, “Sociedade Alternativa”. Confesso que nessa época não era muito chegado a Raul Seixas, e odiava “Gita”. Meu foco era no Rock, e qualquer coisa ligada à Música Brasileira, a não ser as bandas de Rock,
simplesmente estavam fora do meu radar. Demorei alguns anos até começar a ver Raul Seixas como algo a ser apreciado, e isso só foi acontecer quando um amigo insistiu para que eu ouvisse o disco seguinte de Raul, “Novo Aeon”, que tem alguns rocks, incluindo “O Diabo é Pai do Rock”. A partir daí comecei a me interessar, comprar seus discos e ir aos seus shows.
Quando comprei o LP “Gita”, em meados de 1976, um tanto receoso porque, como já disse eu odiava a música, sempre pulava essa e outra: “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”, porque ela tinha um ritmo de baião, e ritmos nordestinos eram para mim na época era algo execrável. Um belo dia, distraído, deixei rolar essa música, e tomei um susto. A letra era incrível, com Raul tecendo críticas diretas ao Sistema como um todo e, claro que veladamente, ao próprio Regime estabelecido. Comecei a prestar atenção também à capa do disco, onde Raul aparece com uma boina de guerrilheiro e com uma guitarra vermelha, numa provocação à Ditadura Militar brasileira.
“As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” é uma expressão crítica e reflexiva, como já havia percebido em outras de suas letras, sempre carregadas de lirismo, metáforas e críticas sociais disfarçadas ou nem tanto. Nessa música, Raul aborda a complexidade e as contradições da sociedade moderna, e critica a maneira como as pessoas são manipuladas pelos sistemas de poder, ao mesmo tempo carrascos e vítimas, afirmando que somos incapazes de perceber como estamos sendo manipulados e explorados. A linguagem utilizada é cheia de simbolismos e referências, onde ele usa até a si próprio, confessando a necessidade de ter diferentes personas para assim poder sobreviver, e a necessidade de se adaptar à regras questionáveis, impostas por esses sistemas, e ao mesmo tempo, anacronicamente, assim criar uma personalidade própria. Na letra, Raul fala também da fragilidade da civilização moderna, comparando-a a um computador frágil, e critica aqueles que se concentram em lutas superficiais, sem entender, de fato, as raízes dos problemas. Há vários arquétipos e analogias que se desenrolam numa leitura, ou audição mais atentas.
A música em si, uma das poucas que não tem Paulo Coelho na co-autoria, seu parceiro nesse disco, e é em ritmo de baião, “alternando-se entre os versos, cantados juntamente com o violão que marca as cabeças dos compassos, e a marcação forte do ritmo, estrutura típica dos Repentes nordestinos” (Sustentação de Felipe de Melo Gomes Feitosa em seu Trabalho de Conclusão de Curso). A voz é dobrada, repetindo-se em uma fração de segundo e onde Raul Seixas carrega e até força no sotaque nordestino. A letra é dividida em doze estrofes, que por sua vez são divididas em quatro ou cinco versos cada.
A seguir uma análise/interpretação da letra, estrofe a estrofe, baseada na minha percepção pessoal. Embora a letra seja de fácil compreensão, procurei dar minha interpretação e fazer meus questionamentos, além de pontuar trechos que acho mais importantes. Propositalmente adaptei a letra impressa para a forma como ele canta, deixando de lado qualquer regra gramatical. As frases entre aspas são de Felipe de Melo Gomes Feitosa.
1 —
“‘Tá rebocado meu compade
Como os dono do mundo piraram
Eles já são carrascos e vítimas
Do próprio mecanismo que criaram”
— “‘Tá rebocado” é uma gíria nordestina para dizer: “não tem jeito”. O eu-lírico fala que as classes dominantes estão enlouquecendo e sendo vítimas dos seus próprios mecanismos de controle.
2 —
“O monstro sist é retado
E tá doido pra transar comigo
E sempre que você dorme de touca
Ele fatura em cima do inimigo”
— “Monstro sist” é o Sistema que engloba os tais donos do mundo. “Retado” ou “arretado” é uma palavra utilizada também no Nordeste do Brasil que qualifica pessoas ou coisas com atributos positivos, como bom, inteligente, bonito, etc. Então, nesse ponto tem uma interpretação dúbia, já que claramente no restante da estrofe, os atributos não são nada positivos. O sentido geral é que o Sistema sempre quer nos engolir.
3 —
“A arapuca está armada
E não adianta de fora protestar
Quando se quer entrar
Num buraco de rato
De rato você tem que transar”
— Bastante pessoal, aqui Raul se refere à sua entrada na indústria cultural, e de como usou de seus mecanismos para divulgar seus pensamentos dentro da zona de restrição imposta pela própria indústria cultural.
4 —
“Buliram muito com o praneta
E o praneta como um cachorro eu vejo
Se ele já não guenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo”
— Nesta estrofe o eu-lírico volta a denunciar os atos das camadas dominantes contra o planeta, mas com a diferença que passa a raciocinar, sobre como deveria ser a resposta do planeta diante desses atos, usando a metáfora do cachorro e as pulgas. Aqui cabe um questionamento meu: foi proposital que Raul Seixas usou essa metáfora consciente de que o fato de um cachorro se sacolejar não o livrará das pulgas, assim deixando nas entrelinhas de que não adianta lutar contra as “pulgas” apenas se chacolhando? Se foi proposital esse trecho se torna mais genial ainda.
5 —
“Hoje a gente já nem sabe
De que lado estão certos cabeludos
Tipo estereotipado
Se é da direita ou da traseira
Não se sabe mais lá de que lado”
— Nesta estrofe vejo várias camadas de interpretação. Uma delas é a política, e lembrando que a música foi feita no início dos anos 1970, quando a cultura “hippie”, uma cultura baseada em ideais de “Esquerda”, ainda era forte, e ele observa que não se sabe mais de que lado estão. Nessa interpretação, “direita ou da traseira” pode significar “Direita” ou “Esquerda”. A outra é, digamos, mais sacana, e é baseada no fato de que Raul era um grande gozador, e pode ser apenas uma tiração de sarro, dizendo que não se sabe se cabeludos são mesmo homens. “traseira” assim, teria uma conotação sexual.
6 —
“Eu que sou vivo pra cachorro
No que eu ‘tou longe eu ‘to perto
Se eu não estiver com Deus, meu fio
Eu ‘tou sempre aqui com o olho aberto”
— Novamente ele usa a metáfora do cachorro, mas no geral a estrofe fala sobre como ele está sempre atento e “com Deus, meu filho” para não cair nas garras do “monstro sist”.
7 —
“A civilização se tornou complicada
Que ficou tão frágil como um computador
Que se uma criança descobrir
O calcanhar de Aquiles
Com um só palito pára o motor”
— “Nesta estrofe aparece uma metáfora que usa elementos de tecnologia, como o computador e motor, e da mitologia, como o mito grego de Aquiles, para expressar a possibilidade de um início de processo revolucionário”. Uma das estrofes que acho mais interessantes de toda a letra, pois vejo muitas figuras ali. O paralelo entre coisas que são ao mesmo tempo complicadas que se tornam frágeis, tão fracos que até uma criança poderia derrotar. Outra coisa que chama a atenção é falar em computador, em 1974, era algo fora do comum, porque a maioria quase absoluta das pessoas do mundo só tinham ouvido falar. Para mim é também um recado aos que lutavam contra o tal do “sist”. Do tipo: vejam aí, só achem o ponto fraco do monstro.
8 —
“Tem gente que passa a vida inteira
Travando a inútil luta com os galho
Sem saber que é lá no tronco
Que ‘tá o coringa do baralho”
— A alusão aqui é clara, com relação àqueles que lutam de forma pequena, ineficaz, brigando por coisas pequenas quando o que precisa ser atacado é um mal maior.
9 —
“Quando eu compus fiz Ouro de Tolo
Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse
Mas eles só vão entender o que eu falei
No esperado dia do eclipse”
— “A ideia de processo revolucionário continua nesta estrofe, dessa vez, utilizando a metáfora de um eclipse.” Ou talvez nem seja isso. É possível que sua intenção foi de dizer que as pessoas só o iriam compreender no dia do fim do mundo. Raul cita sua própria obra e xinga aqueles que não entenderam, na sua visão, o papel que ele representava.
10 —
“Acredite que eu não tenho nada a ver
Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira
A única linha que eu conheço
É a linha de empinar uma bandeira”
— Esta estrofe é muito pessoal, com Raul usando do eu-lírico, expõe sua posição com relação a então predominante “MPB”, formada pela turma também da Bahia como ele, e que dominava o mercado da música brasileira. A “linha de empinar uma bandeira” pode ter o significado de “linha de empinar pipa”, ou algo mais profundo, com referência à bandeira brasileira e a “Linha Dura” dos militares da época. Ou simplesmente uma palavra para forçar a rima, mesmo.
11 —
“Eu já passei por todas as religião
Filosofias, políticas e luta
Aos onze anos de idade eu já desconfiava
Da verdade absoluta”
— Nesta penúltima estrofe, “o eu-lírico aponta para uma ideia de que nada pode ser entendido de forma absoluta e imutável. A verdade sempre teve de passar por provas, que são dadas pelo movimento do real.” Aqui há a declaração de que apenas o acúmulo intelectual, filosófico, e as experiências de todo tipo, são essenciais. E quando ele fala sobre desconfiar da verdade absoluta numa idade de inocência só reforça a ideia.
12 —
“Raul Seixas e Raulzito
Sempre foram o mesmo homem
Mas pra aprender o jogo dos rato
Transou com Deus e com o lobisomem”
— Raul fecha a música de forma confessional, tratando em poucas palavras de sua trajetória profissional, desde quando era “Raulzito”, dos Panteras, compositor brega, passando por uma carreira de executivo de multinacional de discos e depois se tornando Raul Seixas, encarnando essas diversas personas para aprender o jogo do Sistema. Pena é saber que ele seria engolido pelo tal do monstro sist, tendo feito especiais para a Globo e outras coisas, Raul dormiu de touca e 15 anos depois apenas, sucumbiu e se entregou. Para sempre.
— Uma análise final é justamente sobre o título: “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”. Seria apenas um título chamativo, que ele como produtor da CBS sabia criar para vender? Teria alguma relação com a primeira faixa do disco “Super Heróis”, onde ele brinca com os “heróis” brasileiros da época? Que relação, enfim há com o “Deus do Trovão”, filho de Odin, o Deus dos Deuses? Raul se achava um semideus, digno de morar em “Asgard”, a cidade dos deuses nórdicos? Acho mesmo que era só mesmo mais uma piada de Raul Seixas.
12/04/2024
As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor
Raul Seixas
‘Tá rebocado meu compadre
Como os donos do mundo piraram
Eles já são carrascos e vítimas
Do próprio mecanismo que criaram
O monstro SIST é retado
E tá doido pra transar comigo
E sempre que você dorme de touca
Ele fatura em cima do inimigo
A arapuca está armada
E não adianta de fora protestar
Quando se quer entrar
Num buraco de rato
De rato você tem que transar
Buliram muito com o planeta
E o planeta como um cachorro eu vejo
Se ele já não aguenta mais as pulgas
Se livra delas num sacolejo
Hoje a gente já nem sabe
De que lado estão certos cabeludos
Tipo estereotipado
Se é da direita ou dá traseira
Não se sabe mais lá de que lado
Eu que sou vivo pra cachorro
No que eu estou longe eu ‘to perto
Se eu não estiver com Deus, meu filho
Eu estou sempre aqui com o olho aberto
A civilização se tornou complicada
Que ficou tão frágil como um computador
Que se uma criança descobrir
O calcanhar de Aquiles
Com um só palito pára o motor
Tem gente que passa a vida inteira
Travando a inútil luta com os galhos
Sem saber que é lá no tronco
Que está o coringa do baralho
Quando eu compus fiz Ouro de Tolo
Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse
Mas eles só vão entender o que eu falei
No esperado dia do eclipse
Acredite que eu não tenho nada a ver
Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira
A única linha que eu conheça
É a linha de empinar uma bandeira
Eu já passei por todas as religiões
Filosofias, políticas e lutas
Aos onze anos de idade eu já desconfiava
Da verdade absoluta
Raul Seixas e Raulzito
Sempre foram o mesmo homem
Mas pra aprender o jogo dos ratos
Transou com Deus e com o lobisomem
Fonte : Barata Verso
Autor : Barata Cichetto
Contato: (16)99248-0091