Freak Show
No coração de um circo mambembe, uma atração macabra competia pelo terror do público com o trem fantasma. Um corpo inchado, parecido com uma batata esquecida em um balde d’água por dias, estava exposto ao lado da tenda principal. A visão grotesca desafiava o sol causticante de um verão longínquo, perdido entre canções pop e festivais neocapitalistas, no meio dos muros caídos das vergonhas nacionais e da repressão policial.
Na bilheteria, um anão grotesco em pernas de pau, quase do meu tamanho, gritava a plenos pulmões:
— Venham todos ver o homem e a mulher que fundiram os corpos na crença das paixões!
Ao entrar na tenda, a densidade do ambiente era palpável entre cheiros e vapores dos corpos que se deliciavam com as bizarrices do estranho casal. Eles nunca chegavam a um consenso, socando-se e batendo as cabeças com as próprias testas. A afetividade se manifestava em olhares de soslaio e falsos gestos de bem-querer, enquanto cada mínima palavra os inundava com uma estupidez enojante, constrangendo a plateia.
Parecia que corações tentavam se libertar daquele corpo, que outrora abrigara gemidos e sussurros em promessas de encontro de almas. Os minutos ali dentro passavam como anos, e era perceptível que muitos outros corpos estavam tomando aquela forma, mentiras e cinismos criando um clima de frustração que assustava os jovens namorados na primeira fila. Eles assistiam de camarote ao espetáculo das desesperanças amorosas.
Um solitário espectador, idealizando o grotesco espetáculo de outra maneira, era também vítima de desilusões. Ele tinha no semblante o olhar sofrido das suas desesperanças, no corpo as cicatrizes de todas as suas carências, e apoiado em si mesmo, exprimia a necessidade de colo. Porém, tentava com todas as forças manter-se íntegro, buscando encontrar não só um gozo de corpo, mas também de cabeças.
Nos olhos, traduzia-se a profunda necessidade de um encontro. Já não havia motivo para supervalorizar as perdas; todos os ganhos eram aproveitados para mudar e tornar mais paciente a experiência adquirida nos anos ascéticos de cárcere. Olhos noturnos, desejosos de corpo, mente quieta e silenciosa, riam-se e se predispunham a ouvir todas as outras vozes daquela tenda. Em um abstrato discurso de entrelinhas, conversava com a cabeça feminina daquela deformidade andrógina exposta à sua frente, por mera necessidade de sobrevivência.
Em dado momento, aquele monte de carne e amor reativo começou a se separar. Gritos, dores e cicatrizes se abriram em um espetáculo dantesco. Os infernos emergiam em um acerto de contas monogâmico-compulsivo, carregado de perversões e traições. Para espanto de todos, os corpos se separaram, explodindo como fogos de artifício. Merda, sangue e miolos espalharam-se por todos os lados. Uma parte ficou perdida pela sala, tentando se reestruturar, enquanto a outra se fundia com o solitário espectador, que até então só se destacava pelo brilho dos olhos.
Agora, iluminado, o solitário uniu-se aos fluidos e ideias da outra metade, e juntos atravessaram a tenda, rindo-se de si mesmos e trocando necessidades. Sumiram pelo horizonte, enquanto um novo sol nascia, prometendo vida para todos aqueles estupefados espectadores.
Hoje em dia, aquele anão não usa mais pernas de pau, e o circo suburbano expõe outro corpo de duas cabeças em um interminável show de excentricidades amorosas.
— Oh! Merci, merci me!
Os aplausos e murmúrios de incredulidade continuavam a ressoar na tenda enquanto o espetáculo bizarro chegava ao seu clímax. O anão grotesco, agora sem as pernas de pau, desceu lentamente, agradecendo ao público com uma reverência exagerada. Sua figura diminuta mas imponente era uma prova viva das transformações que aquele circo proporcionava.
Naquela noite, o circo parecia diferente, uma aura de renovação pairava no ar. O velho diretor do circo, um homem de olhos cansados e barba grisalha, observava tudo de sua cadeira no canto da tenda. Ele sabia que algo extraordinário havia acontecido, algo que mudaria para sempre o destino daquele circo mambembe.
Após a apresentação, os espectadores se dispersaram, ainda sussurrando sobre o espetáculo que haviam presenciado. Muitos juraram nunca mais voltar, enquanto outros prometiam trazer mais pessoas para verem a próxima exibição. No meio da multidão, um jovem casal, ainda atordoado pelo que testemunhara, caminhava em silêncio. Seus olhos trocavam olhares cúmplices, como se tivessem aprendido algo profundo sobre o amor e suas complexidades.
Enquanto isso, no interior da tenda, o solitário espectador, agora fundido em um novo ser, explorava sua nova existência. A fusão havia sido completa, e ele sentia-se mais forte, mais inteiro. Sua mente, antes repleta de incertezas e angústias, agora estava serena. A conexão com a outra metade havia lhe dado uma nova perspectiva sobre a vida e o amor.
O diretor do circo aproximou-se, observando o novo ser com curiosidade e admiração. Ele sabia que aquele espetáculo tinha o poder de mudar vidas, mas nunca imaginou que a transformação pudesse ser tão literal e poderosa.
— Bem-vindo ao novo mundo — disse o diretor, estendendo a mão ao novo ser. — Você é a prova viva de que o amor, mesmo em suas formas mais bizarras, pode criar algo belo e significativo.
O novo ser sorriu, aceitando a mão do diretor. Juntos, saíram da tenda, prontos para enfrentar as novas aventuras que o futuro lhes reservava.
O circo mambembe continuou sua jornada, viajando de cidade em cidade, sempre com novas atrações e histórias para contar. A lenda do espetáculo das paixões fundidas cresceu, atraindo curiosos e céticos de todos os cantos. E em cada apresentação, o anão, agora sem suas pernas de pau, gritava com orgulho:
— Venham todos ver o homem e a mulher que fundiram os corpos na crença das paixões!
E assim, o circo perpetuava sua magia, mostrando que, mesmo nas situações mais grotescas e inacreditáveis, havia beleza e significado a serem encontrados. A tenda, antes um lugar de meras excentricidades, tornou-se um símbolo de transformação e esperança, onde cada espetáculo era uma nova chance de renascimento e descoberta.
O circo mambembe, agora com uma aura renovada, tornou-se um ponto de encontro para aqueles que buscavam mais do que simples entretenimento. Ele se transformou em um refúgio para almas perdidas, um lugar onde as bizarrices do mundo se entrelaçavam com a beleza e a esperança.
Naquela noite, sob o céu estrelado, a tenda do circo parecia brilhar com uma luz própria. O diretor, agora com um semblante mais leve, observava o novo ser que surgira do espetáculo. Ele sabia que aquele momento seria lembrado para sempre, não só por ele, mas por todos que presenciaram a fusão mágica.
O novo ser, sentindo-se completo pela primeira vez, caminhou até a bilheteria, onde o anão, agora com um sorriso sincero, o recebeu com um abraço caloroso. Aquela demonstração de afeto simples e genuína contrastava com o espetáculo grotesco que havia acontecido, mas simbolizava algo profundo: a aceitação e o amor em todas as suas formas.
O jovem casal, que havia assistido de camarote, ainda estava lá, segurando-se pelas mãos, seus corações mais leves. Eles perceberam que, apesar das dificuldades e das desilusões, havia sempre uma chance de recomeçar, de encontrar um novo caminho juntos.
Ao longe, o solitário espectador, agora parte de um ser maior e mais completo, sentia-se em paz. Ele sabia que sua jornada não havia terminado, mas que estava no caminho certo. Sua mente, antes cheia de dúvidas, agora estava clara, pronta para enfrentar o que viesse.
Enquanto o circo se preparava para fechar as cortinas naquela noite, uma sensação de tranquilidade envolveu a todos. As estrelas pareciam brilhar mais intensamente, e um novo dia prometia trazer novas esperanças e possibilidades.
O diretor, observando o céu, murmurou para si mesmo:
— A magia do circo não está nas excentricidades, mas nas transformações que ele proporciona.
E assim, o circo mambembe continuou sua jornada, espalhando amor e esperança onde quer que fosse. Cada apresentação era uma celebração da vida, com suas imperfeições e belezas, lembrando a todos que, no fim das contas, o amor e a aceitação eram as maiores forças transformadoras.
O anão, o novo ser, o jovem casal e todos os outros que faziam parte daquele mundo peculiar, encontraram no circo um lar. E, enquanto as luzes se apagavam e a tenda se fechava, um sentimento de pertencimento e afeto perdurava, prometendo um amanhã cheio de novas histórias e encontros.
Porque no circo mambembe, cada coração tinha um lugar, e cada alma, uma chance de recomeçar.
— Oh! Merci, merci me! — repetia o anão, agora não mais com ironia, mas com uma gratidão sincera, refletindo o sentimento de todos naquela noite mágica.
Renato Pittas
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