Reflexos
Em um reino suspenso entre as nuvens, onde as torres dos castelos flutuavam como se dançassem ao som de uma música antiga, vivia um povo que não conhecia a dúvida. Chamavam este lugar de “Mirabilis”, uma terra onde as montanhas eram feitas de cristal líquido, refletindo o céu de mil cores e transformando a luz em melodias que embalavam o vento. Lá, as árvores sussurravam segredos antigos e as estrelas, em noites de céu claro, se uniam em constelações que narravam histórias esquecidas.
No centro deste reino, havia um espelho colossal, conhecido como “O Espelho de Todas as Faces”. Diziam que quem se aproximasse dele e deixasse de lado todas as incertezas, poderia ver o real em suas múltiplas formas. Mas poucos ousavam tentar, pois o medo de encarar a verdade absoluta os mantinha afastados. Era mais fácil viver nas sombras das dúvidas, onde a mente podia tecer suas próprias ilusões e confortos.
Um dia, uma jovem, cujos olhos brilhavam como as águas dos lagos encantados, decidiu que era hora de se libertar das incertezas que a cercavam. Acreditava que o mundo escondia mais do que aquilo que seus olhos podiam ver, e que a verdade, por mais assustadora que fosse, deveria ser encarada. Com determinação, ela cruzou as pontes etéreas que ligavam as ilhas flutuantes até chegar ao espelho.
Ao se aproximar, sentiu uma presença quase tangível, como se o próprio ar ao redor dela estivesse vivo, respirando em sincronia com seu coração acelerado. O espelho parecia pulsar, emanando uma luz suave que convidava, mas também desafiava. Ela fechou os olhos por um instante, deixando suas dúvidas caírem como folhas ao vento. Quando os abriu novamente, não viu apenas seu reflexo.
O espelho mostrou uma infinidade de faces, cada uma representando uma parte dela mesma, de seu mundo e dos mundos além. Viu-se como uma criança, livre e despreocupada, mas também como uma anciã sábia, carregando o peso de vidas passadas. Viu-se como um espírito da floresta, correndo entre as árvores, e como uma estrela, brilhando solitária no vasto cosmos. Cada face revelava uma verdade oculta, uma faceta do real que ela jamais imaginara.
Mas o que mais a surpreendeu foi o que viu além de si mesma. O espelho revelou o próprio tecido do universo, mostrando como cada fio de realidade estava interconectado, formando um padrão tão complexo quanto belo. As dúvidas que antes a assombravam se dissolveram, substituídas por uma compreensão profunda de que o real não era uma única verdade, mas uma tapeçaria de múltiplas realidades, cada uma refletindo diferentes aspectos do todo.
Quando finalmente se afastou do espelho, sentiu-se transformada. Compreendia agora que a dúvida era uma sombra necessária para que a luz do real pudesse brilhar em toda a sua glória. E, ao aceitar todas as faces do real, ela se tornou parte do próprio espelho, uma guardiã da verdade, livre para explorar os mistérios do universo sem medo, sabendo que cada passo que dava era apenas mais um reflexo na infinita dança da existência.
Assim, em Mirabilis, onde o tempo fluía como um rio de sonhos, a história dela se tornou uma lenda, inspirando outros a deixarem suas dúvidas para trás e a permitirem que o real se mostrasse, em todas as suas faces.
Retornou à sua vila, mas algo dentro dela havia mudado profundamente. Enquanto antes via o mundo com olhos limitados, agora enxergava a vastidão de possibilidades que existiam em cada detalhe. As flores que desabrochavam ao amanhecer não eram mais apenas flores; eram símbolos de renascimentos, espelhos de vidas que se entrelaçavam e se recriavam a cada nova estação. As águas do rio não eram mais apenas correntes; eram as veias do próprio planeta, conectando o passado, o presente e o futuro em um ciclo eterno.
A vila, porém, permanecia imersa em suas dúvidas. As pessoas ali continuavam a viver no conforto das sombras, preferindo as ilusões do que encarar as verdades desconhecidas. Mas ela, agora detentora de uma sabedoria silenciosa, sentia o chamado de compartilhar o que havia aprendido. Sabia que não poderia forçar ninguém a encarar o espelho, mas também sabia que as sementes da curiosidade já estavam plantadas.
No centro da vila, havia uma praça onde as pessoas se reuniam para contar histórias. Ali, ela começou a narrar suas experiências. Falava com suavidade, sem a pretensão de ensinar, mas apenas de compartilhar o que havia visto. Suas palavras dançavam como as brisas que sopravam pelos campos, tocando suavemente os corações de quem as ouvia.
As crianças, com seus olhos brilhantes e curiosos, foram as primeiras a se aproximar. Elas sentiam que havia algo de mágico nas palavras dela, algo que ressoava com a pureza de seus próprios corações. Aos poucos, elas começaram a brincar de “ver o real”, um jogo onde fechavam os olhos e tentavam imaginar o mundo além das aparências. Seus risos e brincadeiras criaram um campo de energia na vila, que começou a despertar um senso de maravilha nos mais velhos.
Os adultos, inicialmente céticos, também começaram a ouvir com mais atenção. Eles se perguntavam se, talvez, houvesse algo mais do que aquilo que seus olhos podiam ver. Pequenos grupos começaram a formar-se ao redor dela, debatendo e compartilhando suas próprias percepções do real. As dúvidas ainda estavam lá, mas algo começava a mudar.
Então, uma noite, quando a lua estava cheia e o céu estrelado parecia mais próximo do que nunca, Ela convidou todos a segui-la até o Espelho de Todas as Faces. Curiosos e cheios de expectativa, eles a seguiram pelas pontes flutuantes até o local sagrado. Quando chegaram, ela não disse uma palavra. Simplesmente se aproximou do espelho e tocou sua superfície com delicadeza.
Um por um, os aldeões fizeram o mesmo. Alguns viram rostos familiares; outros, reflexos de vidas passadas e futuras. Houve aqueles que não viram nada além de si mesmos, e mesmo assim, esse encontro foi transformador. A vila inteira, unida naquele momento, experimentou uma mudança coletiva. O medo do desconhecido se dissipou, substituído por um desejo ardente de explorar o que antes era velado.
Nos dias que se seguiram, a vila floresceu como nunca antes. As dúvidas deram lugar à curiosidade, e a vida, com todas as suas complexidades e mistérios, foi acolhida em sua totalidade. A realidade, com suas muitas faces, foi aceita como uma dança eterna, uma espiral de possibilidades onde cada indivíduo tinha seu papel único a desempenhar.
Ela continuou a caminhar entre eles, não como uma líder, mas como uma guardiã de histórias, sempre lembrando a todos que o real é algo que se revela continuamente, e que cada nova face que se mostra é uma oportunidade de crescer, aprender e evoluir. Assim, em Mirabilis, o espelho se tornou não apenas um objeto sagrado, mas um símbolo vivo da jornada que cada um deve empreender para encontrar a verdade dentro de si e no mundo ao seu redor.
Com o passar do tempo, a vila de Mirabilis tornou-se um lugar onde o extraordinário e o comum se entrelaçavam como fios de uma teia mágica. As montanhas de cristal líquido brilhavam com ainda mais intensidade, refletindo os corações transformados dos habitantes. As árvores, agora mais altas e majestosas, continuavam a sussurrar segredos, mas aqueles que se permitiam ouvir podiam compreender suas canções antigas, que falavam de eras passadas e mundos paralelos.
A presença do Espelho de Todas as Faces no centro da vida cotidiana fez com que as pessoas começassem a perceber que a realidade era muito mais vasta do que imaginavam. Era como se o véu que separava o visível do invisível tivesse se tornado permeável, e aqueles que ousavam se aproximar do espelho descobriam não apenas suas próprias verdades, mas também os mistérios que permeavam o universo.
Nas noites silenciosas, quando as estrelas se reuniam para contar suas histórias, os habitantes de Mirabilis se sentavam ao redor do espelho, compartilhando suas visões e experiências. Cada relato era único, impregnado de nuances e significados que iam além das palavras. Alguns viam paisagens de reinos distantes, onde criaturas de luz dançavam em harmonia com sombras que nunca assustavam, mas que, em vez disso, ofereciam conforto e sabedoria. Outros percebiam que as respostas que buscavam estavam escondidas nos detalhes mais simples, como no balançar das folhas ao vento ou no brilho de uma gota de orvalho.
No entanto, o maior mistério que o espelho revelava era a compreensão de que a realidade não era fixa, mas fluida, moldada pelas intenções e pelo coração de quem a contemplava. Aqueles que se libertavam de suas dúvidas descobriam que poderiam caminhar entre diferentes camadas do real, explorando mundos que coexistiam em harmonia com o seu próprio. Mirabilis tornou-se um ponto de convergência, onde diferentes realidades se encontravam, entrelaçando seus destinos em uma tapeçaria infinita de possibilidades.
Ela, continuava a ser uma figura silenciosa, mas sempre presente. Era vista como uma guia, uma guardiã dos portais que levavam ao desconhecido. Quando alguém estava pronto para explorar um novo mistério, era ela quem os acompanhava até o espelho, oferecendo nada além de sua presença serena. Pois sabia que o verdadeiro poder não estava em revelar os segredos do universo, mas em permitir que cada pessoa descobrisse por si mesma o que estava além do espelho.
Assim, em Mirabilis, a vida continuava impregnada de mistérios, sempre evoluindo, sempre expandindo. A vila tornou-se um lugar onde as fronteiras entre o real e o imaginário se dissolviam, onde as dúvidas eram apenas o primeiro passo para um entendimento mais profundo. E, no coração de tudo, o Espelho de Todas as Faces permanecia, brilhando com uma luz eterna, um lembrete de que o real, com todas as suas facetas, está sempre esperando para se mostrar — basta que alguém tenha a coragem de deixar as dúvidas para trás e se permita ver.
Renato Pittas
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