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Se Perder para se achar

Se Perder para se achar

Numa cidade, onde o brilho incessante dos outdoors e hologramas distorcidos transformava a noite em um dia artificial eterno, vivia um homem. Sua vida era uma repetição mecânica de dias sem distinção, onde cada movimento parecia programado, cada encontro, ensaiado. As luzes, tão intensas, apagavam as estrelas e qualquer sonho que pudesse germinar em sua mente. A cidade, com seus arranha-céus espelhados e ruas infestadas de propagandas subliminares, tornava impossível distinguir o que ele realmente desejava do que a sociedade esperava dele. Mas, em uma noite como qualquer outra, enquanto caminhava pela Avenida da Saudade, algo em seu interior se rebelou. Uma súbita vontade de quebrar o ciclo o fez virar em uma rua estreita e sombria que ele nunca havia notado antes, uma escolha aparentemente banal, mas que mudaria tudo.

À medida que se aventurava por essa nova rota, a cidade que ele conhecia começou a se desfazer como um sonho desmoronando ao amanhecer. As ruas se tornavam cada vez mais labirínticas, os prédios, antes imponentes, davam lugar a construções decrépitas cobertas de musgo luminescente. Era como se estivesse atravessando camadas de um mundo esquecido, oculto sob o verniz brilhante da metrópole. Ele encontrou praças onde o tempo parecia ter parado, jardins cobertos por plantas que emitiam um leve brilho azulado e becos onde sombras pareciam ganhar vida própria. Ao se afastar do centro luminoso da cidade, percebeu que a névoa que havia tomado conta de sua alma começava a dissipar, dando lugar a uma inquietação quase prazerosa. O medo inicial de estar completamente perdido logo se transformou em uma fome por descobertas, como se cada passo o levasse para mais perto de uma verdade oculta.

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Nessas jornadas noturnas, encontrou figuras enigmáticas que pareciam estar esperando por ele. Um velho encapuzado que sussurrava segredos sobre os dias antigos, antes da era do néon; uma criança que segurava um pássaro mecânico, cujas asas brilhavam com um código desconhecido; uma mulher de olhos prateados que lhe ofereceu um mapa feito de luz. Cada encontro o mergulhava mais fundo em uma realidade paralela, onde o conhecido e o desconhecido se misturavam em um jogo perigoso de identidade e percepção. Ele começou a perceber que a cidade onde vivera até então era apenas uma máscara, uma fachada construída para aprisionar seus habitantes em um ciclo sem fim de monotonia e consumo. Para encontrar a verdadeira Cidade, ele precisaria se perder completamente nas entrelinhas de sua própria existência.

Finalmente, após o que pareceram semanas, mas que poderiam ter sido apenas horas, encontrou um portal escondido em um beco sem saída, envolto em um campo de energia pulsante. Sabia, sem que ninguém lhe dissesse, que ao atravessar aquele limiar, não haveria retorno. No entanto, o desejo de encontrar algo além da ilusão, além das luzes e sombras artificiais, era irresistível. Ao atravessar o portal, foi recebido por uma escuridão absoluta, uma ausência total de luz que, ao contrário de ser opressiva, era libertadora. Naquele espaço vazio, Começou a ver estrelas, pequenas, tímidas, mas reais. Elas formavam constelações que contavam histórias esquecidas, revelando segredos sobre a verdadeira natureza da cidade.
Quando finalmente retornou ao mundo de antes, a cidade já não parecia a mesma. As luzes não tinham mais o brilho ofuscante de antes, e a névoa em sua alma havia sido substituída por uma clareza renovada. Havia descoberto que, para encontrar a si mesmo, precisou perder-se nos mistérios ocultos da cidade. Entendeu que a verdadeira liberdade estava na capacidade de ver além das ilusões e encontrar a beleza nas verdades ocultas, nas estrelas que brilhavam por trás do véu de luz artificial. E assim, ele continuou a caminhar pelas ruas, sabendo que, sempre que necessário, poderia se perder novamente para se reencontrar, não como uma fuga, mas como um retorno à sua essência mais pura.

Agora com um novo olhar, começou a notar fissuras na realidade cotidiana da cidade. Pequenos detalhes antes despercebidos agora saltavam aos seus olhos como sinais de um mundo submerso, escondido sob a superfície reluzente. As sombras projetadas pelas luzes intensas às vezes dançavam de forma irregular, como se seguissem uma coreografia invisível. As propagandas nos hologramas, antes hipnotizantes e opressivas, pareciam exibir mensagens codificadas que ele não conseguia decifrar completamente, mas que traziam uma sensação de urgência e alerta. Ele sentia que a cidade estava viva, observando-o, testando seus limites.
Em uma dessas caminhadas, notou algo diferente na praça central, onde uma gigantesca escultura de vidro refletia as luzes de mil formas, criando uma cúpula de ilusões. No centro da praça, uma figura encapuzada estava de pé, imóvel, como se esperasse por alguém. Ao se aproximar, Sentiu uma onda de reconhecimento, uma conexão inexplicável com aquela figura, como se já tivessem se encontrado antes, talvez em um sonho ou em uma vida passada. Sem trocar palavras, a figura ergueu a mão, revelando um objeto que parecia pulsar com uma energia própria. Era um fragmento de cristal, mas não um cristal comum. Ele brilhava com uma luz interna, emanando uma melodia suave, quase imperceptível, que ressoava nas profundezas da mente.

O fragmento parecia ser uma chave, um pedaço de um quebra-cabeça que ele não sabia estar tentando resolver. Ao tocá-lo, foi imediatamente transportado para um local que desafiava toda lógica. Ele se viu em um vasto deserto de espelhos, onde o céu estava repleto de fragmentos de memória e imagens distorcidas de seu próprio rosto. Cada espelho mostrava uma versão diferente de si mesmo, em diferentes épocas e lugares, mas todos compartilhavam o mesmo olhar: um misto de curiosidade e desespero. Era como se estivesse preso em um labirinto de reflexos, onde cada passo o levava mais longe da realidade que conhecia. O cristal em sua mão começou a vibrar com mais intensidade, e ele percebeu que deveria seguir a melodia até encontrar a saída.

Conforme caminhava pelo deserto de espelhos, os reflexos começaram a interagir com ele, sussurrando verdades incômodas e revelando segredos enterrados. Em um dos espelhos, ele viu uma versão de si mesmo vivendo uma vida que nunca escolhera, preso em uma rotina ainda mais sufocante do que a que havia deixado para trás. Em outro, viu-se como um líder revolucionário, desafiando o sistema de controle que mantinha a Cidade de Néon subjugada. Cada reflexo era uma possibilidade, um caminho não trilhado, mas todos apontavam para a mesma conclusão: O Caminhante era a chave para libertar a cidade das correntes invisíveis que a aprisionavam.

Finalmente, ele chegou a um espelho maior que os outros, onde sua imagem se fundia com a própria cidade. A cidade não era apenas um lugar, mas uma extensão de sua própria mente, um reflexo de seus medos, desejos e incertezas. O Caminhante entendeu que a jornada para se perder e se encontrar não era apenas sobre ele, mas sobre todos que viviam naquele mundo distorcido. Ao erguer o cristal em direção ao espelho, ele viu a imagem se quebrar em mil pedaços, revelando uma luz intensa que o cegou momentaneamente.
Quando seus olhos se acostumaram novamente à claridade, ele estava de volta à praça central, mas algo havia mudado. As luzes da cidade, antes onipresentes e opressivas, agora estavam apagadas, revelando um céu noturno repleto de estrelas. A cidade estava mergulhada em uma escuridão pacífica, onde as estrelas reais podiam finalmente brilhar. As ruas, os prédios, tudo parecia ter ganhado uma nova vida, como se a cidade tivesse despertado de um longo sono. As pessoas começaram a sair de suas casas, olhando para o céu com admiração, redescobrindo um mundo que havia sido oculto por tanto tempo.

Agora sem o fragmento de cristal, sentiu que seu papel havia sido cumprido. Havia se perdido para se encontrar, e ao fazer isso, libertou a cidade de suas próprias ilusões. Com um sorriso sereno, ele se misturou à multidão, sabendo que sempre haveria novos mistérios a serem desvendados, novas jornadas a serem feitas, e que a verdadeira magia da Cidade residia não nas luzes artificiais, mas nas infinitas possibilidades escondidas nas sombras e nas estrelas.

Enquanto se misturava à multidão, sentiu uma leve brisa que trouxe consigo o som de risos infantis e o aroma de algo que ele mal se lembrava: liberdade. As pessoas ao redor, antes figuras anônimas presas em suas rotinas, agora se abraçavam, conversavam, e dançavam sob as estrelas recém-descobertas. A cidade, outrora fria e controladora, pulsava com uma energia nova, quase irreverente. Era como se todos tivessem se livrado de um fardo invisível, e soubesse que essa transformação era, em parte, obra sua.

Com um último olhar para o céu, ele percebeu que, mesmo nas cidades mais artificiais, há sempre uma faísca de algo genuíno e imprevisível, esperando para ser acesa. Sentindo que sua jornada estava completa — ao menos por enquanto —, ele começou a caminhar, sem destino certo, porque, afinal, o que era a vida senão uma sequência de passos erráticos rumo ao desconhecido?
Mas, antes de se perder novamente nas vielas que amava, fez uma pausa e, com um gesto teatral, retirou do bolso uma pequena caixa de fósforos. “A última magia”, murmurou para si mesmo, acendendo um palito e jogando-o casualmente no chão. Ao tocar o pavimento, o fósforo explodiu em um espetáculo de cores vibrantes, criando um breve show pirotécnico que arrancou gargalhadas da multidão. A cidade, agora desperta e brincalhona, respondeu com um sussurro cúmplice, como se agradecesse por ter sido liberada de sua própria rigidez.

Com uma piscadela para ninguém em particular, se despediu da praça com um sorriso travesso. Ele sabia que o mistério não acabava ali, apenas mudava de forma. Porque, em um mundo onde as luzes ofuscavam as estrelas, às vezes o segredo estava em saber quando apagá-las para que a verdadeira mágica pudesse brilhar. Enquanto as estrelas cintilavam no céu acima da Cidade, ele seguiu em frente, pronto para se perder novamente — mas dessa vez, com uma risada nos lábios e a certeza de que, onde quer que fosse, a aventura nunca terminaria.

Renato Pittas   

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