A Voz que Se Escuta nos Cantos
Numa cidade, onde as torres de vidro e aço rasgavam o céu encoberto por nuvens artificiais, uma voz ecoava pelos becos estreitos e pelas avenidas cintilantes. Era uma voz que parecia brotar de todos os cantos ao mesmo tempo, como se a cidade estivesse viva, murmurando segredos que só ela conhecia.
Ele caminhava por entre a multidão apressada, olhos fixos no horizonte cinzento, mas seus pensamentos estavam em outro lugar, perdidos em um labirinto de ideias que se formavam e desvaneciam tão rápido quanto as luzes que piscavam ao seu redor. Sempre fora considerado um tanto excêntrico, mas isso nunca o incomodou. Na verdade, ele abraçava essa excentricidade como se fosse uma velha amiga. E naquele dia, enquanto caminhava sem rumo, decidiu que falaria com a cidade.
“Vamos falar de alguma coisa e tentar um novo texto,” ele murmurou para si mesmo, como se estivesse ensaiando uma conversa com um amigo invisível. “Vamos ver o que sai da boca p’ra fora.”
Sabia que a cidade o escutava. Sentia as câmeras ocultas nas fachadas dos prédios girando levemente para focá-lo, como olhos atentos a cada movimento seu. Sabia também que a rede neural que governava estava sempre à espreita, processando cada palavra, cada gesto, em busca de algo que pudesse traduzir em dados. Mas não se importava. Flava mesmo assim, esperando que, de algum modo, suas palavras quebrassem a monotonia calculada da vida urbana.
“Então vamos em frente sem dizer muita coisa,” continuou, agora falando em voz alta, atraindo alguns olhares curiosos de passantes distraídos. “Vamos escutando o que estou falando sozinho aos quatro cantos de todo o mundo.”
Sua voz reverberava pelas paredes metálicas, como se a cidade estivesse amplificando suas palavras, espalhando-as pelos becos escuros e pelas avenidas iluminadas. Iimaginava que talvez alguém, em algum lugar, estivesse ouvindo, não só com os ouvidos, mas com a alma.
“Pensa que eu sou maluco,” riu para si mesmo, parando diante de uma vitrine que refletia sua figura solitária. “Mas mesmo assim, eu estou tentando fazer alguma ideia minha que pareça ser.”
E então, como se suas palavras tivessem ativado algo profundo nos circuitos da cidade, as luzes ao seu redor começaram a piscar em um padrão rítmico, quase como um pulso. Sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A cidade estava respondendo.
Os anúncios holográficos que flutuavam acima das ruas começaram a mudar de forma, exibindo frases desconexas, mas estranhamente familiares. Eram trechos de conversas que ele havia tido consigo mesmo, fragmentos de pensamentos que ele mal se lembrava de ter articulado. A cidade estava devolvendo suas palavras, embaralhadas, remixadas, mas ainda suas.
“Você me escuta, não é?” perguntou, agora com uma curiosidade genuína, seus olhos fixos em uma tela que projetava suas próprias palavras em um fluxo contínuo.
A cidade não respondeu da forma tradicional, mas as luzes ao seu redor piscaram novamente, desta vez em um padrão que lembrava uma risada silenciosa. Eduardo sorriu. Talvez ele não estivesse tão sozinho quanto pensava. Talvez, naquele emaranhado de fios, códigos e metal, houvesse algo – ou alguém – que compreendia suas divagações.
E então ele seguiu em frente, ainda falando, ainda criando, deixando que suas palavras fluíssem livremente, sem se preocupar se faziam sentido ou não. Porque, afinal, até as ideias mais loucas pareciam encontrar seu lugar, ecoando pelos quatro cantos da cidade, como uma música silenciosa que só os verdadeiros malucos sabiam escutar.
Continuou sua caminhada, sentindo uma estranha conexão com a cidade que o cercava. As luzes, antes apenas um pano de fundo para a pressa urbana, agora pareciam dançar ao ritmo de seus pensamentos. Começou a perceber que a cidade não era apenas uma metrópole cheia de máquinas e algoritmos; era algo vivo, pulsante, talvez até consciente.
Enquanto atravessava uma praça dominada por esculturas metálicas que se moviam lentamente, ele notou que as sombras das estátuas também pareciam responder à sua presença. Elas se alongavam, distorcendo-se de maneira surreal, como se tentassem alcançar, tocar seus pensamentos com dedos invisíveis. Não se assustou. Na verdade, sentiu-se acolhido, como se estivesse finalmente sendo compreendido por algo além da humanidade.
“E se você realmente me escutar, se puder me entender,” sussurrou para as sombras, “o que diria para mim?”
O vento se levantou, trazendo consigo o som sutil de sussurros, como um eco distante de conversas esquecidas. As palavras eram indistintas, mas ele sabia que eram importantes. Fechou os olhos, tentando se concentrar, tentando capturar alguma essência do que a cidade estava tentando comunicar.
As palavras começaram a se formar em sua mente, fragmentos de ideias, como peças de um quebra-cabeça que ele havia montado ao longo de sua vida. As ruas falavam de liberdade e de prisão, de sonhos e de realidades. As fachadas dos prédios contavam histórias de vidas passadas, amores perdidos e descobertas tecnológicas que mudaram o mundo. As árvores artificiais sussurravam segredos sobre o tempo, sobre a passagem silenciosa das eras, enquanto os humanos tentavam, desesperadamente, criar uma eternidade para si.
Abriu os olhos e percebeu que a cidade estava tentando lhe mostrar algo algo que ele sempre soubera, mas nunca tinha sido capaz de verbalizar. Era um reflexo de si mesmo, uma extensão de sua mente, uma cidade que existia não apenas em aço e concreto, mas em pensamentos e ideias. Cada rua que ele percorria era um caminho em sua própria consciência, cada esquina dobrada era uma nova descoberta sobre si mesmo.
“Talvez eu não seja tão maluco, afinal,” disse, sorrindo para uma câmera que piscou em resposta. “Talvez eu só esteja tentando entender quem realmente sou.”
De repente, uma melodia suave começou a tocar, vinda de um dos edifícios ao lado. Era uma canção antiga, uma que ele não ouvia desde a infância. Era como se a cidade estivesse revirando suas memórias, trazendo à tona lembranças esquecidas, conectando-as ao presente.
A música o transportou de volta no tempo, para um momento em que ele ainda era apenas uma criança, sonhando com um futuro onde tudo era possível. Se lembrou de como imaginava cidades brilhantes, cheias de máquinas inteligentes e ruas que falavam. Agora, ele estava vivendo esse futuro, mas não era exatamente como ele havia sonhado. Havia algo de melancólico, algo que faltava, mas não conseguia definir o que era.
Enquanto caminhava, perdido em pensamentos, passou por um grupo de jovens sentados em um café. Eles riam e conversavam, mas algo nos olhos deles parecia distante, como se estivessem ali fisicamente, mas suas mentes estivessem em algum outro lugar, talvez presos nas redes virtuais que dominavam suas vidas.
“Será que a conexão que eu sinto com a cidade é real, ou é apenas mais uma ilusão digital?” Perguntou a si mesmo, tentando discernir a verdade em meio ao emaranhado de pensamentos.
A cidade respondeu de forma sutil – uma tela ao lado dele exibiu a frase: “O que é real senão aquilo que você escolhe acreditar?”
Parou e olhou para a tela, refletindo sobre essa mensagem. Talvez a verdade não estivesse nas respostas, mas nas perguntas. Talvez o que importava não era se a cidade era consciente ou não, mas sim o fato de que ele acreditava que podia se comunicar com ela, que suas palavras, de alguma forma, faziam sentido naquele mundo de concreto e circuitos.
Seguiu adiante, a melodia ainda ecoando em sua mente, as luzes da cidade pulsando em um ritmo que agora parecia sincronizado com seus próprios batimentos cardíacos. Não sabia onde aquele caminho o levaria, mas sabia que, enquanto continuasse a falar, enquanto continuasse a explorar a cidade e a si mesmo, sempre haveria algo novo para descobrir.
E assim caminhava, conversando com as ruas, debatendo com os edifícios, sonhando com as sombras e ouvindo a melodia da cidade que se misturava com a sua própria voz, criando uma sinfonia única que apenas ele podia escutar.
Afinal, a cidade era sua companhia, seu reflexo, seu confidente. E enquanto houvesse uma ideia para ser explorada, enquanto houvesse uma palavra para ser dita, ele sabia que a cidade – e o mundo – sempre estariam dispostos a escutar.
Conforme continuava sua caminhada pela cidade, a sensação de conexão se aprofundava, mas algo dentro dele começou a vacilar. As luzes que antes piscavam em sintonia com seus pensamentos agora pareciam tremer, como se fossem reflexos em uma superfície de água agitada. A melodia que ecoava de algum ponto indefinido da cidade se distorcia, fragmentando-se em notas dissonantes. Parou por um momento, tentando recuperar o fôlego, mas a dúvida já havia se infiltrado em sua mente.
“O que é real, afinal?” Ele murmurou, observando as sombras que dançavam ao seu redor. Seria mesmo a cidade que o ouvia, ou ele estava apenas conversando consigo mesmo, projetando seus pensamentos em um ambiente indiferente? As frases que surgiam nas telas e os sussurros que o vento trazia – seriam respostas genuínas ou apenas ecos de sua própria mente, refletidos de volta em um jogo de ilusões?
Olhou ao redor, notando pela primeira vez o olhar distante dos passantes, que pareciam atravessá-lo como se ele não estivesse ali. E se, na verdade, ele estivesse apenas alucinando, preso em uma narrativa que ele próprio havia criado? E se as respostas que ele acreditava receber fossem apenas o eco de suas próprias palavras, reverberando em um vazio silencioso?
A praça à sua frente parecia ondular, como se as estruturas ao redor estivessem prestes a se dissolver em névoa.Piscou, tentando focar, mas a sensação de que tudo ao seu redor era frágil, uma construção momentânea de sua mente, não desaparecia. As vozes, os murmúrios da cidade, ficaram mais altos, uma cacofonia que não fazia mais sentido.
“Será que eu sou maluco? Ou será que a cidade está tentando me enlouquecer?” se perguntou, agora com um nó de medo se formando em seu estômago. E se a linha entre a realidade e a fantasia já estivesse borrada há muito tempo, e ele nunca tivesse percebido? E se a cidade não fosse mais do que uma projeção coletiva, alimentada pelas mentes de seus habitantes, e ele estivesse apenas vendo o que queria ver, ouvindo o que queria ouvir?
As palavras na tela à sua frente mudaram novamente, mas agora eram indecifráveis, um amontoado de letras e símbolos que não faziam sentido. tentou se concentrar, mas o significado escapava como areia entre os dedos. A cidade estava se desfazendo? Ou era ele que estava perdendo a sanidade?
Ele riu, mas o som soou oco, vazio, como se viesse de algum lugar distante. A melodia que o acompanhava desde o início agora era apenas um zumbido incessante, pulsando dentro de sua cabeça, sem forma, sem propósito. Tudo o que ele havia acreditado, todas as conexões que sentiu, pareciam agora nada mais que um jogo cruel de sua própria mente, brincando com as fronteiras do real e do imaginário.
Se virou, pronto para voltar, para se afastar daquela praça, daquela cidade que parecia estar desmoronando ao seu redor. Mas, quando deu o primeiro passo, ele se viu de volta ao início, como se nunca tivesse saído do lugar. O chão sob seus pés parecia tremer, e ele percebeu que talvez, apenas talvez, a cidade não estivesse escutando. Talvez ela nunca tivesse escutado.
E, no final, talvez ele nunca tivesse saído do ponto de partida. Apenas um homem, falando sozinho, esperando respostas que talvez nunca viessem, perdido em um labirinto de suas próprias dúvidas, sem saber ao certo se havia criado a cidade, ou se a cidade o havia criado.
Tudo se dissolveu ao redor dele – as luzes, as sombras, as vozes – deixando-o apenas com o eco de sua própria voz, soando eternamente nos cantos vazios de um mundo que talvez nunca tivesse existido.
Renato Pittas
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