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A quem pertence o rosto no espelho

A quem pertence o rosto no espelho

Em um vilarejo remoto, aninhado entre montanhas cobertas por florestas serenas, havia um tempo em que os espelhos eram raros, quase míticos. Era um desses dias em que um campesino, ao revirar o fundo empoeirado de uma caixa esquecida, encontrou algo que jamais havia visto: um espelho. A superfície polida refletia sua imagem, e ele, maravilhado, acreditou que a caixa abrigava um ser extraordinário que o observava com atenção.

Encantado com o que julgava ser a presença de um sábio, comprou a caixa e a levou para casa, escondendo-a cuidadosamente no armário, longe dos olhares curiosos. Diariamente, ele passava horas conversando com a imagem que via no espelho, buscando conselhos e orientações para suas tarefas diárias e decisões importantes. Sentia que o ser na caixa compartilhava com ele uma profunda sabedoria, guiando-o com benevolência.

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Sua esposa, porém, observava-o à distância. Notando o tempo que ele dedicava àquela caixa misteriosa, a curiosidade tomou conta de seu coração. Certo dia, enquanto o marido trabalhava nos campos, ela se aproximou do armário e, com as mãos trêmulas, destampou a caixa. Ao olhar dentro, seu coração disparou. Em vez de ver o sábio que seu marido mencionava, ela viu uma mulher, bela e misteriosa, a quem interpretou como uma rival que lhe roubava o afeto do marido.

Atormentada pela visão, aguardou o retorno do esposo. Quando ele chegou, a casa estava impregnada de um silêncio denso. Com os olhos marejados, ela confessou sua dor:

— Você me trai! A ti entreguei os melhores dias da minha vida, e agora você se volta para aquela mulher que habita a caixa!

O campesino, surpreso, tentou acalmá-la:

— Não, minha querida. Naquela caixa não há mulher alguma, mas sim um sábio que me orienta para o bem de ambos. Ele é quem me guia em nossas decisões.

A discussão se arrastou, cheia de emoção e confusão, até que ambos decidiram procurar um mestre, um monge zen budista que vivia nos arredores do vilarejo, para esclarecer a questão. Caminharam juntos até o mosteiro, levando a caixa consigo.

Ao encontrarem o monge, expuseram-lhe o dilema, e com os rostos marcados pela incerteza, entregaram-lhe a caixa:

— Mestre, pedimos que nos ajude. Quem habita essa caixa? Um homem ou uma mulher?

O monge, com um sorriso tranquilo, abriu a caixa e olhou para o espelho. Após um breve momento de reflexão, ele respondeu, com a sabedoria que apenas o silêncio da mente pode proporcionar:

— Na caixa, vive um monge.

Os olhos do casal se arregalaram em confusão. O monge, então, explicou:

— O que vocês veem na caixa é a projeção dos próprios pensamentos e sentimentos. O espelho reflete aquilo que carregam dentro de si. O sábio que o marido vê é a sabedoria que ele busca em seu coração. A mulher que a esposa viu é o reflexo de suas inseguranças. Mas, acima de tudo, na caixa, está o monge que habita em todos nós — aquele que observa sem julgar, que reflete a realidade como ela é, sem adicionar nada além do que já existe.

Com essas palavras, o casal compreendeu que as visões no espelho eram manifestações de suas próprias mentes, e não realidades externas. Agradeceram ao monge e, ao retornarem para casa, guardaram a caixa não como um objeto de discórdia, mas como um lembrete da necessidade de cultivar a paz interior e a clareza de espírito.

Com o entendimento que o monge havia lhes oferecido, o casal começou a olhar para a caixa de forma diferente. Em vez de vê-la como um mistério externo que precisava ser resolvido, passaram a encará-la como um espelho de suas próprias almas.

Nos dias que se seguiram, o campesino e sua esposa decidiram meditar juntos, buscando compreender as emoções que a caixa havia despertado em ambos. Sentavam-se frente a frente, a caixa entre eles, e com os olhos fechados, mergulhavam em um silêncio profundo. Nas primeiras sessões, as imagens ainda surgiam em suas mentes — o campesino via o sábio, sua esposa via a mulher —, mas aos poucos, essas visões começaram a se dissipar.

Com o tempo, perceberam que a verdadeira sabedoria não estava no reflexo, mas na compreensão de si mesmos. Começaram a dialogar de maneira mais aberta, compartilhando seus medos, inseguranças e desejos. O campesino confessou que, em seu trabalho duro e repetitivo, muitas vezes se sentia perdido e sem direção, e que o espelho lhe oferecia uma sensação de conforto, um guia para seguir em frente. Já sua esposa revelou que temia ser esquecida, temia que o amor do marido se esvaísse com o tempo, como as estações que passavam.

Essas conversas trouxeram uma nova luz para o relacionamento deles. Juntos, descobriram que suas preocupações eram comuns, e que, na verdade, ambos ansiavam por segurança e compreensão. O espelho, antes visto como uma fonte de conflito, agora se tornava um símbolo de união, um lembrete da importância de olhar para dentro de si e para o outro com compaixão.

Um dia, ao voltarem do campo, notaram que a caixa, que antes parecia tão importante, estava esquecida em um canto. Eles sorriram, percebendo que não precisavam mais do espelho para se verem. A sabedoria que o monge mencionara não era uma entidade externa, mas algo que havia florescido dentro de seus corações.

O casal decidiu levar a caixa de volta ao mosteiro e oferecê-la ao monge como sinal de gratidão. Ao entregá-la, disseram:

— Mestre, com seu ensinamento, descobrimos que o verdadeiro reflexo que importa é aquele que encontramos em nossos próprios corações. Gostaríamos que essa caixa fosse usada para ensinar outros a encontrar a paz e a clareza que encontramos.

O monge aceitou o presente com um sorriso sereno e colocou a caixa em um dos altares do mosteiro. A partir daquele dia, os visitantes que chegavam ao templo eram convidados a olhar dentro dela, não como um teste, mas como uma prática de autoconhecimento. Muitos viam diferentes coisas: alguns viam crianças, outros velhos, alguns viam montanhas, outros mares. E o monge, pacientemente, guiava cada um a entender que o que viam não era mais que o reflexo de suas próprias mentes.

Assim, a caixa, outrora motivo de confusão, se tornou um instrumento de iluminação. E o casal, agora mais unido e em paz, vivia sua vida simples com uma nova profundidade, sabendo que a verdadeira sabedoria é encontrada na clareza do coração e na serenidade da mente.

Com o passar dos anos, o casal envelheceu, mas sua harmonia permaneceu intacta. Eles continuaram a cultivar a sabedoria que haviam encontrado juntos, vivendo com simplicidade e gratidão.

O espelho na caixa, que uma vez havia causado tanta inquietação, agora era lembrado com carinho. Embora já não precisassem mais dele, a lição que ele lhes ensinou perdurou: a paz interior nasce da compreensão mútua e da aceitação do que somos, sem ilusões.

Quando o tempo chegou para que deixassem este mundo, o vilarejo se reuniu para honrar suas vidas. O monge, que os havia ajudado a encontrar a clareza, fez uma breve prece, humilde e serena, diante do altar onde a caixa repousava. Ele sabia que o verdadeiro legado daquele casal não estava no espelho, mas na forma como haviam escolhido viver — com amor, sabedoria e humildade.

E assim, suas histórias se tornaram parte do tecido do vilarejo, uma lembrança suave de que, na simplicidade do cotidiano, podemos encontrar a mais profunda das sabedorias. E no silêncio de um coração sereno, podemos refletir a verdadeira essência de quem somos.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

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