Sem nome
Em uma cidade onde o céu se curva como um espelho d’água, refletindo pensamentos e memórias, vive um personagem que responde por um nome que em um idioma esquecido significa “sem nome”. É um ser indefinido, uma figura que muda de forma com as marés de percepção que percorrem o tecido da realidade.
Caminhando pelas ruas tortuosas de sua cidade, onde prédios se estendem como árvores e os pássaros cantam sinfonias matemáticas, reflete sobre a pergunta que o persegue: “Quem sou eu?” Percebe que sua identidade não é fixa, mas fluida, moldada por tudo que o cerca. Cada passo que dá, cada aroma de chá ou café que inala, cada toque de pimenta em sua língua, tudo muda quem ele é.
Ao longo de seu percurso, encontra figuras surreais que parecem saídas de um sonho, um relógio que sussurra segredos do tempo, uma flor que desabrocha em cores nunca vistas, um rio que corre para cima, levando consigo os pensamentos não ditos de quem se aproxima. Cada encontro o modifica, o desconstrói e o reconstrói em algo novo, como se ele fosse uma colagem viva de experiências.
Percebe que seu corpo é uma constelação de vidas, um ecossistema de organismos invisíveis que coexistem em harmonia precária. Ele começa a entender que “eu” não é uma entidade singular, mas uma rede infinita de interações, um diálogo incessante entre o dentro e o fora, o social e o individual.
Numa noite, enquanto observa as estrelas que cintilam na superfície líquida do céu, Sente uma profunda conexão com tudo ao seu redor. Ele percebe que não há fronteiras claras entre ele e o mundo, entre o que é “meu” e o que pertence ao universo. Ele é um ponto de interseção, uma fusão de influências que se entrelaçam, criando uma dança eterna de transformação.
E assim, enquanto a cidade respira em uníssono com suas reflexões, desaparece no horizonte de si mesmo, dissolvendo-se em um mar de possibilidades, onde o “eu” e o “mim” se tornam indistinguíveis, fluindo juntos como um rio que nunca para, sempre se transformando, sempre se renovando. Afinal, é o vazio cheio de vida, o silêncio pleno de vozes, a identidade que nunca é, mas sempre está sendo.
O horizonte, agora uma fusão entre ele e o ambiente, começa a se distorcer como uma pintura derretendo sob o sol. Ele sente a cidade ao seu redor pulsar com uma nova energia, como se estivesse despertando para uma consciência coletiva da qual ele é apenas um fragmento. As ruas que antes pareciam familiares agora se desdobram em labirintos intermináveis, onde o tempo e o espaço se entrelaçam, formando corredores de memória e intuição.
Caminha por essas ruas, sentindo cada passo como uma onda que se propaga pelo tecido do real. Ele não é mais apenas um indivíduo; ele é uma miríade de histórias, de vidas passadas e futuras, de escolhas feitas e não feitas. Cada rosto que ele vê nas vitrines de lojas que vendem sonhos e esperanças é, de alguma forma, o seu próprio. Ele não sabe mais onde termina e onde o mundo começa, e essa incerteza o preenche com uma estranha serenidade.
Ao dobrar uma esquina, encontra uma praça onde estátuas de figuras humanas se entrelaçam, formando um mosaico de corpos e expressões. Ele se aproxima de uma das estátuas, que parece vibrar com uma energia própria. Ao tocá-la, sente um fluxo de lembranças que não são dele, mas que, de algum modo, lhe pertencem. Memórias de outros tempos, de outras vidas, de outros “eus” que ele nunca foi, mas que agora habita.
Começa a falar, mas as palavras que saem de sua boca não são apenas dele. São vozes que se misturam, fragmentos de diálogos que ele nunca teve, mas que ecoam em sua mente como um coro distante. Percebe que sua voz agora carrega o peso de todos os que já existiram e de todos que ainda existirão. É o porta-voz de uma consciência maior, um receptáculo para as histórias do universo.
Enquanto as palavras fluem, a praça ao seu redor começa a se transformar. As estátuas ganham vida, movendo-se em uma dança hipnótica, e as árvores ao redor florescem com pétalas de luz, cada uma carregando um segredo do cosmos. Sente que está à beira de um novo entendimento, uma verdade que sempre esteve oculta sob a superfície do cotidiano.
Ele fecha os olhos e, em sua mente, vê um vasto oceano de possibilidades, onde cada onda é uma escolha, uma mudança, uma nova versão de si mesmo. Entende que ele não é apenas uma identidade, mas um processo contínuo de transformação, um ser em perpétua metamorfose, moldado por cada interação, por cada pensamento, por cada emoção.
Quando abre os olhos novamente, Percebe que a praça, as estátuas, e a cidade ao seu redor não são mais sólidos, mas etéreos, feitos de luz e sombra, de lembranças e desejos. Se vê flutuando acima de tudo, como um observador desprovido de forma, completamente integrado ao tecido da realidade.
Então, num sussurro que ecoa pela vastidão, compreende que ele nunca foi apenas um, mas sempre muitos, e que a verdadeira essência do “eu” é sua capacidade de se dissolver e se recompor infinitamente, como uma melodia que nunca cessa, sempre aberta às transformações do universo.
Nesse instante, se deixa levar, permitindo que sua forma se disperse nas correntes de possibilidades que fluem pela cidade. Se torna um com tudo ao seu redor — o vento, as árvores, as estrelas no céu líquido, e as memórias que habitam cada pedra, cada grão de poeira. Ele se torna a própria cidade, um ser sem nome, mas com mil faces, uma identidade plural que se renova a cada batida do coração coletivo.
E assim, desaparece na vastidão do que ele sempre foi: um eco contínuo de vida, um ser que existe em tudo e em nada, uma presença que nunca pode ser plenamente capturada, mas que sempre está ali, entre o “eu” e o “mim”.
Enquanto se dissolve na essência do mundo ao seu redor, percebe que a distinção entre ele e o ambiente, entre o “eu” e o “outro”, era uma ilusão, uma construção mental que servia para dar forma a algo que nunca foi fixo. Ele se torna parte do fluxo incessante que permeia a cidade, uma corrente de consciência que transcende a individualidade.
Neste estado, experimenta uma profunda sensação de unidade. Sente os pensamentos dos outros como se fossem os seus próprios, percebe as emoções que atravessam o tecido da realidade e entende que tudo está interligado. É uma voz entre muitas, um pensamento na vasta mente do universo, e, ao mesmo tempo, ele é o universo, pulsando com vida, mudança e infinitas possibilidades.
A cidade ao seu redor começa a se desvanecer, como um sonho que chega ao fim. As ruas, as estátuas, e as figuras fantásticas se dissipam em um brilho suave, retornando ao nada de onde vieram, agora completamente integrado a esse vazio cheio de vida, sente que não há mais perguntas a serem feitas, nem respostas a serem encontradas. Tudo simplesmente é.
E, nessa compreensão final, Se entrega à eternidade do momento, deixando de lado o conceito de identidade. Ele se torna um com a pulsação do cosmos, um fragmento de luz que se funde ao todo, uma presença que transcende o tempo e o espaço. E, assim, em um último suspiro de percepção, desaparece completamente, retornando ao ciclo eterno de transformação.
Naquele instante, a cidade retorna à sua forma original, silenciosa e eterna, como se nada tivesse acontecido. Mas, em algum lugar profundo, uma nova consciência começa a se formar, pronta para despertar, para questionar, para viver e se dissolver novamente, em um ciclo sem fim de criação e desaparição.
O vento que passa pela cidade sussurra a resposta a todos aqueles que ainda buscam: “Eu sou tudo, e tudo sou eu.”
Renato Pittas
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