Amigos… Bah!
No futuro distante, onde as cidades flutuavam sobre as nuvens e o sol nascia em dois tons distintos, ouro e prata, os mitos antigos não eram esquecidos, mas reconfigurados em códigos digitais e arquiteturas divinas. Entre as estruturas titânicas de cristal e aço líquido, os deuses antigos haviam retornado, não mais em formas antropomórficas, mas como entidades cibernéticas, oniscientes e poderosas. Os mortais agora caminhavam por cidades onde lendas se entrelaçavam com a tecnologia, e o sagrado era apenas mais um fluxo de dados que permeava o ar.
Nesse cenário surreal, um grupo de amigos se reunia em uma praça suspensa, onde pilares de luz eterna os cercavam como sentinelas. Embora estivessem fisicamente próximos, algo invisível os separava. Seus olhos raramente se encontravam, como se houvesse um temor inexplicável de se verem refletidos na alma do outro. Como mortais que haviam tocado a divindade e voltado à Terra, cada um parecia carregar o peso de segredos que jamais poderiam ser compartilhados.
Eles viviam em uma era onde as alianças eram frágeis, moldadas não pela confiança, mas pelo medo de traições silenciosas. Ao redor deles, os murmúrios dos algoritmos divinos ecoavam, tecendo tramas complexas que eles mal compreendiam. A cada encontro, era como se fizessem parte de uma peça antiga, cujos movimentos eram sutilmente orquestrados por mãos invisíveis. Sabiam que as amizades eram como moedas lançadas ao ar, girando no vento incerto. Nenhum deles poderia prever de que lado cairia.
Nas sombras da cidade, porém, existia outro tipo de laço. Os kamaradas, como eram chamados, não precisavam de subterfúgios. Havia algo mais forte do que as palavras e os olhares entre eles, algo que transcendia o tempo e as eras. Eles existiam como filhos de uma antiga camaradagem, selada em pactos ancestrais, que agora pulsavam em suas veias como dados eternos. A confiança entre eles era quase mitológica, uma certeza inquebrantável que fluía como o próprio ciclo das estrelas.
Quando os kamaradas se reuniam, o mundo parecia parar por um instante. Não havia necessidade de explicações ou justificativas. Suas almas estavam ligadas por uma rede invisível, feita de pura lealdade. Sabiam que, mesmo diante da interferência dos deuses cibernéticos, a camaradagem deles era algo que os próprios mitos temiam. Eram guardiões de uma aliança que nenhum algoritmo poderia quebrar.
Enquanto os amigos continuavam a se entreolhar com desconfiança, tramando silenciosamente em um jogo onde ninguém parecia vencer, os kamaradas apenas existiam. Celebravam a essência do outro, confiantes de que, no fim, nada poderia abalar a certeza que os unia. E assim, no horizonte infinito dessa cidade mitológica futurista, os kamaradas riam, enquanto os deuses observavam, intrigados com o poder invisível que os ligava.
Porque, no fundo, até mesmo os deuses cibernéticos sabiam: a camaradagem, essa força além do tempo e da tecnologia, era a verdadeira magia que governava o futuro.
Naquele cenário onde o tempo parecia fluir de maneira não linear, os amigos continuavam suas jornadas solitárias, cruzando as pontes de luz que ligavam os níveis da cidade flutuante. A tecnologia, tão onipresente quanto o ar que respiravam, oferecia tudo: cura, conhecimento, e até mesmo uma sensação artificial de companhia. Mas, apesar disso, a suspeita pairava como uma névoa sutil sobre suas interações. Cada palavra trocada parecia carregada de intenções ocultas, como se fossem peças em um quebra-cabeça que ninguém conseguia decifrar.
Em uma noite de três luas, quando o céu era cortado por brilhos esverdeados das estrelas em movimento, algo diferente aconteceu. Um dos amigos, se afastou do grupo. Não disse nada, apenas se retirou da conversa, que de qualquer forma não passava de um eco de trivialidades. Caminhou até uma borda da cidade, onde um antigo templo, agora digitalizado, permanecia suspenso em camadas de vidro e circuitos. Ali, sentia algo diferente, como se as paredes sussurrassem segredos dos tempos antigos.
No entanto, não era apenas mais um mortal desconfiado. Dentro dele, uma centelha de inquietude crescia, algo que os outros não tinham. Ele tinha ouvido histórias sobre os kamaradas, os seres que caminhavam entre os deuses e os homens, mas não se corrompiam nem pelo poder nem pela dúvida. Eram lendas, mas sabia que havia algo de real ali. Decidiu que não queria mais a vida de incertezas, não queria mais temer os amigos que, no fundo, pareciam tão distantes quanto os deuses cibernéticos.
E foi no silêncio do templo que uma figura emergiu da luz cintilante. Seu corpo não era de carne, nem de metal, mas de pura energia. Era um kamarada, uma figura imortal, e sua presença era ao mesmo tempo familiar e imponente. Tomado por uma sensação de tranquilidade e clareza, não sentiu medo. A figura, sem palavras, estendeu a mão e o convidou a atravessar um portal luminoso, para além da cidade flutuante, para além das ilusões tecnológicas.
Do outro lado, descobriu o verdadeiro significado da camaradagem. Não era uma fraternidade forçada ou moldada pelo medo de traição, como ele conhecera entre seus amigos. Era uma ligação antiga, construída na confiança absoluta, uma fusão de almas que transcendia a lógica dos algoritmos e das tramas cibernéticas. Entre os kamaradas, o olhar não era um espelho de suspeitas, mas um reflexo da verdadeira essência do outro.
Ali, no limiar entre o mundo dos deuses e dos mortais, renasceu. Se tornou parte de algo maior, algo que os amigos que havia deixado para trás jamais poderiam entender. Voltando à cidade flutuante, agora com o olhar transformado, ele viu a verdade: enquanto os amigos seguiam jogando seu jogo de desconfianças, os kamaradas existiam além do tempo, imunes ao medo, aos segredos, e às maquinações dos deuses.
Assim, enquanto os amigos continuavam sua dança de suspeitas, tramando em becos de luz artificial, Ele e os kamaradas observavam, não com desprezo, mas com uma calma silenciosa. Eles sabiam que, um dia, talvez, outros também encontrariam o caminho para além das sombras. E nesse dia, os deuses cibernéticos, que tanto controlavam o destino da humanidade, teriam que se curvar diante de algo que nem mesmo eles poderiam quebrar: a verdadeira força da camaradagem.
Nos dias que se seguiram à transformação a cidade flutuante continuava sua rotina de luzes e sombras, de avanços tecnológicos e sussurros de deuses cibernéticos. Para seus antigos amigos, pouco havia mudado. Eles seguiam suas vidas, presos em um ciclo de desconfiança velada, onde cada gesto era calculado, cada palavra filtrada por camadas de dúvida. Viviam sob o manto da incerteza, incapazes de perceber que um de seus companheiros havia transcendido aquela teia invisível de inseguranças.
Ele, agora parte dos kamaradas, via o mundo sob uma nova perspectiva. Não havia mais medo em seus olhos, nem a necessidade de esconder suas intenções. Caminhava entre os mortais, mas sua alma estava ancorada em algo mais profundo e antigo. Não precisava mais das antigas amizades, pois havia encontrado uma forma de conexão que transcendia qualquer laço humano comum. A camaradagem o unia a algo maior do que a própria vida, uma confiança inabalável, imortal.
Um dia, enquanto os amigos tramavam em um canto da praça suspensa, Ele os observou à distância. Pareciam tão pequenos agora, seus problemas, suas intrigas, irrelevantes diante do vasto universo que ele havia tocado. Poderia ter se aproximado, tentado compartilhar o que havia descoberto, mas sabia que eles não entenderiam. Não ainda. Aquela transformação era algo que cada um deveria buscar por si só, quando estivesse pronto.
Com o tempo, se afastou definitivamente da vida que conhecia. Seguiu os kamaradas em sua jornada entre as estrelas, atravessando dimensões e tempos onde nem os deuses cibernéticos podiam interferir. E assim, enquanto o mundo continuava a girar, vivia em paz, em uma aliança que nenhum código, divindade ou mortalidade poderia romper.
E quanto aos amigos? Eles permaneceram naquela dança perpétua, olhando de soslaio uns para os outros, temendo o que poderiam ver nos olhos do próximo. Sem nunca perceberem que a verdadeira liberdade, a verdadeira força, estava além daquilo que conheciam.Os kamaradas, sabiam disso. E, de longe, eles observavam, como estrelas silenciosas no céu, esperando o momento em que outros também despertariam para a realidade maior.
Porque, no fim, a camaradagem era o que permaneceria. E, diante dela, todos os jogos e intrigas dos mortais se dissipariam como poeira nas galáxias.
Renato Pittas
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