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Gaia na Gandaia

Gaia na Gandaia

As engrenagens do grande relógio central giravam incessantemente, sempre em harmonia com os sons dos pistões e o silvo das caldeiras. A cidade, um emaranhado de tubos, válvulas e estruturas metálicas, suspensa sobre nuvens de vapor, parecia uma criatura viva, pulsando em sincronia com as máquinas que a sustentavam. No entanto, sob essa ordem aparente, havia murmúrios que vinham de além dos limites da razão. Diziam que a cidade era apenas um reflexo, uma projeção de algo que existia em outro plano, num espaço entre o real e o irreal.

Era nesse cenário que , um inventor de segunda classe, caminhava pelas ruas envolto em neblina densa, observando como as engrenagens da cidade pareciam às vezes deslizar, quase como se a realidade estivesse a escorregar entre seus próprios trilhos. Havia dias em que o som dos martelos a vapor parecia não seguir mais o ritmo perfeito de outrora. Algo invisível começava a interferir nos mecanismos precisos da cidade.

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O rumor de que os mundos paralelos, sempre separados, estavam se tocando se espalhava como fumaça. As máquinas, sempre rigorosas, começavam a mostrar sinais de uma consciência estranha, como se fossem tomadas por vontades próprias. Relógios de precisão absoluta agora marcavam horas incertas; elevadores flutuantes levavam os cidadãos para andares que não existiam; e mais de uma vez, jurou ter visto figuras nebulosas, vestidas com roupas de época de outros mundos, passeando pelos becos escuros, apenas para desaparecerem quando ele piscava.

Naquela manhã, ao caminhar até sua oficina, viu algo que perturbou sua mente. Uma figura corpulenta, com braços de bronze, estava em pé diante de uma loja de relógios. Não parecia humana, tampouco inteiramente máquina. Carregava um grande cachimbo de cobre e chinelos gastos, fumando tranquilamente enquanto observava o grande relógio da praça central. Era uma visão tão absurda que mal conseguia acreditar.

De chinelos? No meio da cidade, onde tudo era engrenagem e precisão? Piscou, esfregou os olhos, mas a figura continuava ali, e agora ela acenava para ele, um sorriso travesso estampado em seu rosto metálico.

“Venha, vamos brincar com o tempo!” disse a figura, a voz ecoando como o som de válvulas se abrindo. “Os mundos estão se encontrando, e as normas já não importam mais. Nós caímos na gandaia!”

A figura girou, e o vapor ao seu redor começou a assumir formas surreais, desenhando escadas que levavam ao céu e portas flutuantes que se abriam para o nada. Hesitou por um momento, mas sentiu que o próprio chão sob seus pés se movia, como se fosse feito de engrenagens sem controle, convidando-o a seguir por aquela nova e insana trilha de chinelos e vapor.

Sem ter tempo para pensar, ele deu um passo à frente, e logo o mundo começou a se dobrar sobre si mesmo, as ruas desaparecendo em redemoinhos de metal líquido, enquanto novas passagens surgiam. Mas para onde levariam?

Sentiu o chão pulsar como um organismo vivo enquanto o mundo ao seu redor se desdobrava em formas impossíveis. As estruturas de ferro e cobre, que antes seguiam a lógica de uma engenharia rigorosa, começaram a se curvar, contorcendo-se em formas surreais. Torres espiralavam em direção ao céu e, em um segundo, dissolviam-se em vapor denso, apenas para reaparecerem em ângulos absurdos, como se as leis da física tivessem decidido tirar folga.

A figura de bronze, agora flutuando acima de uma escada que se desenrolava no ar, continuava a observá-lo com aquele sorriso enigmático. “Você sente, não sente?” perguntou, soltando uma nuvem de vapor que se transformou em pequenos pássaros metálicos antes de desaparecer. “Os mundos já não estão alinhados. Estão se tocando, misturando-se. Você foi escolhido para ver.”

Ainda incrédulo, avançava lentamente. Cada passo que dava parecia abrir uma nova camada da realidade, revelando porções de Vaporis que ele nunca havia imaginado. A cidade sempre fora um lugar de ordem — caótica em aparência, mas governada pela precisão do maquinário — e agora estava se dissolvendo em um sonho febril.

Ao longe, ele avistou uma praça familiar, mas algo estava errado. O grande relógio que marcava o tempo exato do dia estava deturpado. Seus ponteiros não giravam mais em torno de um eixo fixo, mas flutuavam, ziguezagueando sem rumo, como se o tempo em si estivesse brincando com a lógica. Ao redor da praça, as pessoas andavam em transe, algumas calçadas com chinelos, outras com botas finamente polidas, mas todas com os olhares perdidos, presas em conversas silenciosas com interlocutores invisíveis.

Chegou mais perto e ouviu fragmentos dessas conversas. Eram sobre realidades que ele desconhecia, como se os cidadãos estivessem conversando com ecos de outros mundos, compartilhando segredos que transcendiam sua própria existência. Uma mulher de vestido vitoriano discutia sobre a criação de máquinas que moldavam sonhos, enquanto um homem com um monóculo falava de algo chamado “a ciência dos ecos”. Tudo isso fazia sentido, mas de uma maneira que desafia qualquer lógica cartesiana.

De repente, o ar ao redor dele começou a vibrar, e se sentiu puxado por uma força invisível em direção ao centro da praça. O chão sob seus pés girou como uma engrenagem gigante, e ele foi levado para uma passagem oculta que se abriu diante dele. Uma escada espiral de bronze se estendia para baixo, levando a uma escuridão sem fundo.

O homem de bronze, ainda pairando ao longe, riu com o cachimbo de cobre fumegante em sua mão. “Bem-vindo ao ponto de convergência, onde as máquinas e os sonhos se encontram. A física desfez suas amarras aqui. E você, está preparado para cair na gandaia?”

Hesitou, mas a escada o puxava como se fosse feita de um magnetismo irresistível. Enquanto descia, as paredes da cidade ao seu redor tornavam-se nebulosas, transparentes, e ele pôde ver através delas outros mundos — versões alternativas de Vaporis, mas cada uma com suas próprias regras distorcidas. Numa delas, os edifícios flutuavam, amarrados a grandes balões de ar quente. Em outra, tudo parecia feito de vidro quebradiço, e as pessoas caminhavam cuidadosamente para não rachar a própria realidade.

Ele continuou a descer, cada passo trazendo uma nova revelação, até que…

Finalmente chegou ao último degrau da escada de bronze, e diante dele, a escuridão se abriu em uma vasta sala, onde engrenagens colossais flutuavam no ar, girando sem suporte aparente. Correntes de vapor dançavam entre elas, formando figuras etéreas que pareciam sussurrar segredos antigos. No centro da sala, uma enorme máquina, uma fusão de metal, vidro e vapor, pulsava como um coração. Cada batida reverberava nas paredes da realidade, fazendo com que as estruturas do mundo parecessem ondular, como se estivessem presas entre o real e o imaginário.

A figura de bronze apareceu ao lado dele, ainda sorrindo. “Este é o mecanismo central,” disse ele, apontando para a máquina viva. “Ela mantém os mundos paralelos em ordem, mas algo mudou. As fronteiras entre eles se tornaram tão finas que já não podemos distingui-las. Agora, ele, cabe a você decidir o destino.”

Atordoado pela grandiosidade do que via, sentiu o peso da responsabilidade esmagar seus ombros. Ele, um simples inventor, estava agora diante de uma escolha que transcendia tudo o que conhecia. O mecanismo central pulsava mais forte, como se esperasse sua decisão. Ele podia sentir a convergência das realidades ao seu redor — ordens e caos se entrelaçando, mundos se misturando em um só.

“E se eu não decidir?” perguntou, olhando para o homem de bronze.

A figura deu uma longa tragada em seu cachimbo de cobre, soltando uma nuvem de vapor que formou uma risada leve no ar. “Ah, meu caro… mesmo o silêncio é uma escolha. E o tempo aqui… não espera.”

Com um último olhar para o mecanismo, soube que o próximo movimento definiria o destino de tudo. Levantou a mão, pronto para tocar a engrenagem central, sentindo o magnetismo da escolha que viria.

E no momento em que seus dedos quase tocaram a superfície metálica, uma vibração ressoou pelo ar, e as fronteiras entre os mundos desapareceram completamente. Vaporis, seus habitantes e ele foram envolvidos em uma explosão de luz, vapor e silêncio absoluto, enquanto tudo ao redor se desfez e se reorganizou…

Mas em que forma? O que surgiria daquele colapso? A resposta estava perdida nas engrenagens do tempo, nas sombras de mundos que já não podiam mais ser separados.

E assim, caiu na gandaia entre os sonhos e as máquinas, onde a física se libertava e o impossível era rotina.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

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