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Enquanto isso, o útil se torna inútil

Enquanto isso, o útil se torna inútil

Nos intervalos vazios de seus dias, entre uma tarefa e outra na imensa cidade flutuante, Sentava-se diante da janela panorâmica de seu apartamento. Lá de cima, ele observava os trilhos de aço que serpenteavam pelas ruas, levando os trens flutuantes de engrenagens ruidosas para lá e para cá. Dirigia o olhar para as fábricas, cujas torres de metal expeliam nuvens de vapor enquanto os céus eram cruzados por dirigíveis gigantes que flutuavam como baleias mecânicas.

Esses momentos de silêncio entre uma obrigação e outra eram o refúgio. Apesar do brilho dourado das máquinas e do burburinho incessante da cidade, sentia que havia algo errado. Algo que não conseguia entender de maneira clara. Assim, em meio ao caos, sua mente vagava, tentando encontrar respostas para questões que, à primeira vista, pareciam simples. Por que tudo aquilo existia? Por que as pessoas corriam, competindo pela invenção mais revolucionária, pelo reconhecimento da guilda dos Engenheiros Supremos, pela chance de fazer seu nome brilhar nas lâmpadas incandescentes das ruas?

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Era como se todos vivessem numa corrida interminável, tentando superar uns aos outros, provando o valor de suas criações. As ruas estavam repletas de autômatos e humanos aperfeiçoados com peças mecânicas, cada um tentando mostrar que era mais eficiente, mais forte, mais necessário. No entanto, começava a perceber o vazio por trás disso tudo. Ele havia sido educado para acreditar que esse era o propósito: competir, vencer, conquistar. Mas quanto mais pensava, mais turva ficava sua compreensão desse sistema.

Um dia, enquanto observava o dirigível “Prometeu” passar lentamente pelos céus fumegantes, uma ideia se insinuou em sua mente. E se o verdadeiro sentido da vida não fosse competir, mas simplesmente viver? A pergunta o incomodou por dias, como um zumbido no fundo de seu pensamento. Ele começou a se questionar sobre os valores que todos pareciam seguir cegamente. Por que as pessoas se esforçavam tanto para serem vistas como conquistadoras de um mundo que parecia estar sempre à beira da autodestruição, com suas engrenagens rangendo e faíscas elétricas voando pelas ruas?

Certa noite, ao retornar de uma reunião da guilda, encontrou um estranho objeto à sua porta. Era uma pequena caixa de cobre, ornamentada com detalhes em prata e esmeraldas. Ao abri-la, uma luz suave envolveu o ambiente, e de dentro emergiu um autômato delicado, de não mais que 30 centímetros. Seus olhos brilhavam com uma inteligência incomum, e sua voz, embora metálica, soava acolhedora.

“Olá,” disse o pequeno ser, “uma criação de um tempo que você ainda não viveu, mas que busca entender.”

Intrigado, perguntou: “Entender o quê?”

“Os ciclos. A utilidade que se transforma em inutilidade. A busca incessante por respostas que, na verdade, sempre estiveram ao seu alcance.”

O autônomato, o convidou a caminhar pelas ruas da cidade numa visão diferente. Viu então, através dos olhos da pequena máquina, como tudo o que era considerado essencial, todas as invenções, corridas e conquistas, um dia tornavam-se obsoletas. Engenhocas outrora revolucionárias agora jaziam nos becos, enferrujadas e esquecidas. Homens e mulheres, antes orgulhosos de suas criações, agora caminhavam sem rumo, incapazes de lidar com a inutilidade do que haviam produzido.

“A verdadeira educação,” disse o autômato, “não vem das máquinas ou das conquistas. Vem das reviravoltas. Vem de aceitar que, em algum momento, o útil se torna inútil, e o que julgávamos ser o sentido da vida não era mais que uma engrenagem a ser substituída.”

Então compreendeu. A cidade, com todo seu brilho metálico e sua atmosfera de competição, era apenas um reflexo de um ciclo maior. Um ciclo que ele agora começava a desvendar. A vida não era uma corrida de máquinas e engrenagens. Era uma dança de aprendizado e desapego. A verdadeira conquista era viver, aceitar as mudanças e permitir que, no final, a utilidade não viesse do que construímos, mas do que aprendemos ao longo do caminho.

Assim, sorriu. Não por ter encontrado todas as respostas, mas por finalmente entender que, às vezes, elas não eram necessárias.

Nos dias que se seguiram à revelação do autômato, passou a olhar tudo com novos olhos. Cada máquina que cruzava seu caminho, cada invenção que surgia nas praças centrais e nos laboratórios clandestinos agora parecia parte de um jogo maior, uma engrenagem no vasto ciclo de criação e destruição. Caminhava pelas ruas observando como as pessoas continuavam a se lançar de cabeça nas competições diárias, correndo contra o tempo, mas o que antes lhe causava inquietação agora era motivo de uma estranha paz.

Em suas horas livres, conversava com o autômato, que sempre parecia ter uma nova peça de sabedoria, um enigma ou uma reflexão que deixava suas ideias girando como as hélices dos dirigíveis. Uma tarde, enquanto caminhavam juntos pelos becos repletos de vapor e os sons metálicos da cidade, o autômato parou diante de uma velha fábrica abandonada. Suas portas de aço estavam enferrujadas, e grandes engrenagens pendiam dos tetos quebrados.

“Este lugar,” começou o autômato, “já foi o centro da cidade. Aqui, construíram a primeira máquina a vapor capaz de voar. Por anos, foi o símbolo máximo da inovação, a prova de que os céus poderiam ser conquistados. Mas agora… o que resta?”

Fitou o prédio desmoronando e sentiu uma melancolia profunda. Aquela fábrica, antes a glória da cidade, agora não passava de ruínas. O ciclo se repetia. O que um dia era essencial, agora era esquecido, inútil. “E o que virá depois?” ele perguntou ao autômato.

“Depois? Ah, … virá o novo, como sempre vem. Algo mais brilhante, mais veloz, mais grandioso aos olhos dos que ainda correm atrás de conquistas. Mas, assim como esta fábrica, também passará. O importante é entender que o valor está na jornada, e não no produto final.”

As palavras do autômato ecoaram por semanas na mente dele. Começava a perceber que sua própria vida seguia esse padrão. Seus projetos, suas invenções, tudo o que ele criava com tanto afinco, eventualmente seria superado ou esquecido. No entanto, era o processo criativo, as noites em claro pensando em soluções, os desafios superados, que lhe davam sentido. A utilidade não estava no resultado, mas em quem ele se tornava enquanto caminhava por esse ciclo.

Certa manhã, enquanto tomava seu café ao som das engrenagens que moviam a cidade, Decidiu que não buscaria mais reconhecimento ou sucesso. Passaria a se dedicar a algo diferente: ajudar outros a entenderem o que ele agora via com clareza. Criaria máquinas, sim, mas não para competir. Suas criações seriam voltadas para o simples ato de existir, de facilitar a vida das pessoas sem o peso da glória. Pequenas invenções, talvez imperceptíveis aos olhos do mundo, mas que, no fundo, fariam diferença.

O autômato sempre ao seu lado, aprovava com um leve brilho em seus olhos metálicos. “Você entendeu o ciclo. Não é sobre ser o melhor. É sobre ser. Viver cada engrenagem girando até que se torne desnecessária, mas sabendo que, enquanto gira, ela move algo maior.”

E assim, passou a viver sem pressa, observando a cidade continuar sua dança de vapor, metal e competição, mas com a serenidade de quem compreendia que tudo aquilo fazia parte de um ciclo eterno. As máquinas continuariam a ser criadas, quebradas, substituídas. As pessoas continuariam a correr, competir, tentar provar seu valor. Mas ele, com a sabedoria que só o tempo e as reviravoltas da vida poderiam proporcionar, seguiria seu caminho, focado no que realmente importava: estar presente no aqui e agora, sem a necessidade de ser mais do que já era.

Ao final do dia, o sol se punha sobre as torres de metal e os dirigíveis, tingindo a cidade de cobre com tons dourados e laranjas. Olhava pela janela, agora com um olhar tranquilo, consciente de que, no fundo, o verdadeiro sentido da vida não era conquistar, mas simplesmente vivê-la, sem a pressa de chegar ao final.

Numa noite tranquila, muito tempo depois de ter abandonado a corrida frenética local, recebeu uma última visita inesperada. O autômato, que o havia acompanhado por tanto tempo, estava diferente. Suas engrenagens giravam mais lentamente, e a luz de seus olhos parecia estar se apagando. Sem dizer uma palavra, o pequeno se aproximou e entregou uma chave de metal simples, mas incrivelmente ornamentada.

“Chegou a hora,” disse o autômato com a voz suave, mas enfraquecida. “Você compreendeu o ciclo, viveu fora da competição, e agora merece ver algo que está além deste mundo de máquinas e vapor.”

Intrigado, seguiu o autômato até o centro da cidade, onde uma torre antiga, esquecida pelo tempo, erguia-se no coração dela. Era a primeira construção, erguida muito antes das grandes fábricas e dos dirigíveis. Ninguém mais parecia se lembrar dela, exceto ele e seu pequeno companheiro.

A chave que o autômato lhe dera encaixava perfeitamente em uma fechadura escondida na base da torre. Ao girá-la, uma passagem oculta se revelou. Lá dentro, não havia máquinas, não havia vapor, nem o brilho metálico de engrenagens. Em vez disso, havia silêncio. Um vazio profundo, mas estranhamente acolhedor. Era como se o mundo além das máquinas estivesse aguardando sua chegada.

“O que é isso?” perguntou, perplexo.

“É o fim do ciclo,” respondeu o autômato. “Aqui, você não precisa mais competir, nem criar, nem buscar utilidade. Aqui, simplesmente é. O ciclo se completa quando percebemos que o verdadeiro propósito nunca foi competir, mas aceitar a própria finitude e, no silêncio, encontrar clareza.”

Olhou ao redor, sentindo a paz tomar conta de si. Pela primeira vez em sua vida, não havia necessidade de entender mais nada. As perguntas que antes enchiam sua mente sobre utilidade, conquistas e o sentido da vida se dissolveram em uma simples verdade: não há respostas definitivas, apenas o ato de estar presente e aceitar o que é.

O Observador deu um último sorriso metálico antes de suas luzes se apagarem para sempre. Agora sozinho, compreendeu a mensagem final do pequeno autômato: a vida é um ciclo de perguntas, mas a paz vem ao aceitar que nem todas precisam de respostas.

No silêncio absoluto da torre esquecida, fechou os olhos e sorriu. Não havia mais pressa, nem expectativas. Apenas o agora, e isso era mais do que suficiente.

Renato Pittas   

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