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Crítica

Crítica

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Em uma cidade onde os ventos sussurravam segredos esquecidos, um homem, conhecido por sua habilidade peculiar, via as críticas como algo tangível. O que para outros eram apenas palavras invisíveis, para ele eram fragmentos de vidro afiados, flutuando no ar, cortantes e perigosos. Desde jovem, aprendera a desviar desses ataques sutis, observando como as críticas tomavam forma ao seu redor, envolviam pessoas e espaços, e depois desapareciam, deixando cicatrizes silenciosas.

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O homem vivia como um arqueólogo das palavras, desvendando significados ocultos nas críticas que passavam despercebidas pelos outros. Ele sabia que cada comentário cortante carregava não apenas julgamento, mas também medo, insegurança e, às vezes, a busca desesperada por atenção. Com o tempo, ele se tornou um espectador atento, desviando-se dessas flechas verbais, acreditando que estava imune ao seu impacto.

Mas um dia, algo mudou. Ao caminhar pelo centro da cidade, percebeu que as críticas, geralmente sutis e dispersas, estavam crescendo de forma incomum. Elas inchavam e se multiplicavam como criaturas famintas, absorvendo o rancor e o julgamento acumulado nas pessoas ao redor. Ele ficou paralisado ao ver que essas críticas, antes invisíveis e inofensivas, agora se tornavam monstros vivos, alimentando-se dos sentimentos mais obscuros da cidade.

Movido pela curiosidade e um crescente desconforto, ele seguiu essas criaturas até uma praça. Lá, encontrou um homem cercado pelas formas críticas, encurvado sob o peso de suas próprias inseguranças. Sem saber o que fazer, o homem que via as críticas decidiu enfrentar aquelas palavras afiadas com algo simples: gentileza. Ele ofereceu palavras suaves, honestas e sem julgamento, e para sua surpresa, as criaturas começaram a diminuir, dissolvendo-se no ar.

A partir daquele dia, o homem percebeu que não podia mais apenas observar. Ele precisava agir. Passou a caminhar pela cidade, enfrentando as críticas não com desvio ou indiferença, mas com compreensão. Ele aprendeu que, por trás de cada crítica, havia uma história, uma dor, e que o simples ato de ouvir e responder com compaixão podia desarmar até mesmo as criaturas mais ferozes.

Com o tempo, as pessoas passaram a vê-lo de forma diferente. Ele não era mais apenas um observador distante, mas alguém que trazia paz onde havia conflito. Diziam que ele tinha o poder de dissipar brigas, de transformar julgamentos em diálogos. Mas o homem sabia que não era magia. Era apenas a compreensão de que as críticas só tinham o poder que lhes era dado e que, ao enfrentar o medo e a vulnerabilidade, todos podiam, finalmente, encontrar a paz.

2

Em uma cidade onde os ventos pareciam sussurrar segredos esquecidos, vivia um homem, conhecido por sua habilidade única: ele via a crítica como algo tangível. Para ele, as palavras ditas em tom de julgamento flutuavam no ar como pequenos fragmentos de vidro, imperceptíveis para todos os outros, mas visíveis e cortantes para seus olhos treinados.

Desde jovem, aprendera a conviver com essas afiadas palavras invisíveis. Quando criança, ouvia seus pais discutindo na sala ao lado, as críticas mútuas tomando forma e se enroscando ao redor das lâmpadas e cadeiras, ameaçando rasgar o tecido da casa. Ele observava aquilo em silêncio, como quem assiste a uma tempestade se formando no horizonte. Com o tempo, aprendeu a desviar desses fragmentos — um desvio do olhar, um leve movimento de cabeça — e as críticas passavam por ele como flechas disparadas, sem nunca acertar o alvo.

Ao longo dos anos, se tornou um espectador da crítica alheia, sem nunca se envolver demais. Era como um arqueólogo de conversas, escavando significados ocultos em palavras ásperas, buscando o que havia além do vidro cortante. Sabia que a crítica não era sempre justa, mas era quase sempre necessária, moldando a realidade e testando a força de quem a recebia. Assim, seguia em frente, acreditando que podia escapar desse ciclo com seus desvios e sua observação cuidadosa.

Até que, certo dia, algo estranho aconteceu.

Em uma tarde tranquila, passeava pelo centro da cidade, quando sentiu algo diferente no ar. As críticas que geralmente flutuavam ao redor das pessoas começaram a se acumular de maneira incomum. Ele notou que as palavras — normalmente curtas, diretas e dolorosas — estavam crescendo, inchando como balões prestes a explodir. As conversas comuns entre estranhos, os comentários casuais, tudo parecia carregar uma força maior do que deveria. E foi então que ele percebeu: essas críticas não estavam mais apenas no ar. Elas estavam vivas.

No início, as criaturas eram pequenas, formadas pelas críticas miúdas e inofensivas que costumavam ser jogadas sem pensar. Pequenos seres translúcidos, quase etéreos, rastejavam entre as pernas dos transeuntes, alimentando-se dos murmúrios maldosos, dos olhares enviesados e dos sussurros nas esquinas. Cresciam rápido, inchando de proporções grotescas conforme mais e mais julgamentos lhes eram dados.

Ficou paralisado. A crítica, algo que sempre observara à distância, agora tomava forma e andava entre eles, faminta. Via essas criaturas se multiplicarem, espalhando-se pelas ruas, entrando pelas portas e janelas das casas, absorvendo os ressentimentos e as amarguras acumuladas por anos. Pessoas que nunca se importaram com as críticas agora estavam cercadas por esses monstros, incapazes de ignorá-los.

Curioso e um tanto temeroso, seguiu uma dessas criaturas até uma praça. Lá, encontrou um homem sentado em um banco, cercado por várias dessas figuras críticas. Elas pareciam sussurrar algo incessantemente em seu ouvido. O homem, que a princípio parecia alheio, começou a se encolher, como se as palavras estivessem pesando em seus ombros. Viu que as criaturas estavam se alimentando da própria reação do homem, crescendo com sua insegurança, seus medos.

A crítica, percebeu, não era apenas algo jogado no ar. Ela tinha vida própria e se alimentava daquilo que encontrava. Mas, como todo ser vivo, ela também podia ser domada. Com essa compreensão, decidiu agir.

Ele caminhou até o homem cercado pelas criaturas. Sem saber exatamente o que fazer, começou a falar. Não uma crítica, mas uma observação gentil, algo simples e honesto sobre o que via na situação, sem julgamento. As criaturas hesitaram, como se tivessem sido interrompidas no meio de seu banquete. Continuou, falando com cuidado, equilibrando suas palavras, e, aos poucos, as criaturas começaram a desaparecer, encolhendo-se até se dissolverem no ar.

O homem, atordoado, olhou para ele, murmurou um agradecimento. Mas sabia que o real trabalho não era o que ele fizera naquele momento, mas o que todos precisavam aprender: a crítica era inevitável, mas não precisava ser uma sentença. Se aprendêssemos a reconhecer sua presença e encontrar maneiras de usá-la construtivamente, ela deixaria de ser um monstro devorador e se tornaria apenas mais um elemento da vida — como o vento que sopra, frio, mas necessário.

E assim, continuou sua jornada pela cidade, não mais desviando das críticas, mas as enfrentando, com a certeza de que elas só teriam o poder que lhes fosse dado.

Sentiu, ao caminhar pelas ruas da cidade, que algo em sua percepção havia mudado. As críticas, antes tão cortantes e ameaçadoras, não o assustavam mais. Ele percebia a vida das palavras e dos julgamentos com uma clareza desconcertante, mas também uma nova serenidade. As criaturas, outrora enormes e famintas, pareciam agora sombras passageiras. Ele entendia que elas só existiam porque lhes davam vida — e esse poder, ele agora sabia, estava nas mãos de cada pessoa.

Nos dias que se seguiram, passou a observar mais atentamente as interações ao seu redor. Notou que as criaturas críticas se formavam nas pequenas desavenças cotidianas: um olhar reprovador de um comerciante, uma palavra atravessada entre vizinhos, ou até mesmo os diálogos internos de pessoas que se criticavam em silêncio. Ele se aproximava dessas situações, oferecendo sempre um contraponto: uma palavra de reconhecimento, um gesto simples de compaixão, ou uma observação que desarmava o peso das críticas. E, em resposta, as criaturas diminuíam, desvanecendo-se como fumaça ao vento.

Certa manhã, encontrou uma situação diferente. Na praça principal, um grande grupo de pessoas havia se reunido em torno de um homem que discursava com fervor. Ele falava sobre os “desmandos” da sociedade, sobre os erros dos outros, sobre a “falta de caráter” que via em todos à sua volta. Suas palavras, repletas de julgamento, criavam uma massa de criaturas críticas ao seu redor. Elas cresciam a uma velocidade alarmante, alimentando-se do fervor das acusações e do medo coletivo.

Sentiu um frio na espinha. Nunca tinha visto tantas criaturas críticas juntas, tão grandes e densas. Elas se entrelaçavam no ar, tornando o ambiente opressivo, quase sufocante. As pessoas ao redor começavam a reagir de maneira estranha: algumas pareciam concordar com o orador, alimentando ainda mais as criaturas, enquanto outras se encolhiam, esmagadas pelo peso das críticas.

Sabendo que precisava agir, se aproximou do centro da praça. Mas desta vez, algo o impedia de encontrar as palavras certas. A massa crítica ao redor do orador era poderosa, sentia que qualquer palavra mal colocada poderia piorar a situação. Então, ele fez algo que nunca havia tentado antes: ficou em silêncio.

Ele fechou os olhos, respirou fundo e ouviu, não as palavras de crítica que flutuavam no ar, mas o silêncio que havia por trás delas. Nesse vazio momentâneo, entiu algo diferente. Percebeu que as criaturas críticas não eram apenas palavras cruéis ou julgamentos severos. Elas também eram frutos de medo, insegurança e, sobretudo, uma profunda necessidade de ser ouvido. A crítica, ele percebeu, muitas vezes era um grito desesperado por atenção, uma tentativa de ser notado em um mundo que parecia indiferente.

Com essa nova compreensão, abriu os olhos e encarou o orador. Quando o homem o viu, suas palavras tropeçaram por um instante, como se algo o tivesse desestabilizado. Não disse nada, mas seu olhar era de empatia. Era como se ele estivesse dizendo: “Eu vejo sua dor. Eu entendo o que está por trás de suas palavras.” O orador hesitou, sua voz perdeu força. As criaturas críticas ao seu redor começaram a vacilar, suas formas antes sólidas e ameaçadoras agora tremiam, como se não soubessem para onde ir.

Então deu um passo à frente, mas ainda sem falar. Ele apenas ficou ali, presente, como uma testemunha silenciosa da dor e do medo que alimentavam aquelas críticas. E, aos poucos, as pessoas ao redor também começaram a se acalmar. O ar ficou menos denso, as criaturas começaram a diminuir de tamanho, e o orador, finalmente, parou de falar.

O silêncio que se seguiu foi poderoso. Não um silêncio de desconforto, mas um silêncio de entendimento. As críticas, que haviam inflamado o momento, desapareceram como neblina ao sol, deixando para trás uma sensação de alívio e de vulnerabilidade compartilhada. As pessoas começaram a se dispersar, sem as palavras duras que antes pareciam essenciais.

Ficou parado no centro da praça, observando o céu se abrir acima dele. As criaturas críticas não desapareceriam para sempre — ele sabia disso. Elas sempre estariam presentes, rondando os pensamentos e as interações humanas. Mas agora ele compreendia que não era preciso lutar contra elas, nem fugir. Bastava olhar além da crítica, além do julgamento, para encontrar o que realmente importava: a conexão humana, o reconhecimento de que, por trás de cada palavra áspera, havia uma história não contada, uma dor não dita.

E com essa percepção, continuou sua caminhada pela cidade, sabendo que, ao enfrentar as críticas, ele não estava apenas desarmando palavras — estava abrindo portas para que as pessoas pudessem, finalmente, se ouvir de ver
Nos dias seguintes, passou a ser visto de forma diferente. Aqueles que antes o viam como um observador distante, agora o reconheciam como alguém capaz de algo raro: trazer paz onde havia ruído, dissolver conflitos apenas com a presença. Ele não usava palavras mágicas, nem buscava evitar as críticas como outrora. Seu poder estava em compreender que as palavras afiadas que ferem tanto não eram, na verdade, espadas invencíveis, mas máscaras que escondiam fragilidades.

As criaturas críticas continuaram a vagar pela cidade, como sempre o fizeram. Mas ele, e todos aqueles que haviam sido tocados por sua compreensão silenciosa, aprenderam a lidar com elas de outra forma. Não se tratava de evitá-las, nem de desafiá-las diretamente, mas de reconhecer sua origem: o medo, a carência, a necessidade de ser visto.

Com o tempo, se tornou quase um mito entre os moradores. Diziam que ele tinha o poder de dissipar as brigas mais acirradas, de transformar julgamentos em diálogos. Alguns, em tom de brincadeira, o chamavam de “O Homem que Enxergava o Invisível”. Outros, mais céticos, diziam que ele simplesmente sabia ouvir como ninguém. Mas para ele, isso pouco importava. Ele havia aprendido que o verdadeiro desafio não era combater a crítica, mas acolhê-la, entendê-la e, através desse entendimento, desarmá-la.

Em uma tarde de outono, quando o vento soprava suavemente e as folhas caíam pelas ruas tranquilas da cidade, caminhava sem pressa, ouvindo os murmúrios do mundo ao seu redor. As críticas ainda estavam lá, flutuando como sempre, mas ele as via agora como parte da paisagem, sem peso. Seu olhar ia além delas, em direção ao que realmente importava: a conexão silenciosa entre todos que, como ele, apenas buscavam ser ouvidos e compreendidos.

Assim, seguiu sua jornada, não como um herói ou salvador, mas como alguém que, em meio à crítica, havia encontrado a verdadeira força: a compaixão diante da vulnerabilidade humana.

Renato Pittas   

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