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Demência Cronica (Let it be)

Demência Cronica (Let it be)

1

Em meio ao ritmo frenético das teclas, onde os dedos tropeçam entre senhas mal formadas e frases que faltam acentos, a canção toca — não para você, mas para ouvidos que jamais pediram por ela. É um rock de reverberações mecânicas, projetado por algoritmos insatisfeitos com sua própria criação, como se fossem maestros de uma sinfonia cibernética fadada ao erro. Os sussurros, porém, não vêm dos amplificadores, mas de vozes invisíveis, lançadas ao vento por bocas que nunca existiram de fato. Um murmúrio de promessas vazias e ordens que jamais se cumprirão, ecoando pelas margens do que antes era plácido e sereno, mas agora é uma terra faminta e ressequida.

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A velha ave, metáfora de uma ideia outrora imponente, rateia. Seu voo é insano, caótico, suas asas incapazes de sustentar qualquer conceito que ainda tenha sentido. Lágrimas caem, desejadas por uns, desprezadas por outros, mas sempre presentes, como o eco de uma memória coletiva que insiste em se repetir. Mesmo que não queiramos, alheios ao verbo que nos pariu, estamos presos nessa narrativa de espirais que se enrolam sobre si mesmas, cada volta um ciclo de prazer adolescente, um hedonismo redigido por mãos eletrônicas, sem alma, sem propósito além de sua própria existência.

E a estória, como se recusasse a acabar, segue se reinventando em ondas de redundância. Rock ainda é o ritmo, mas a festa já não é a mesma. O mundo gira, mas o eixo que o mantém está torto, como um compasso sem pontaria. Houve um tempo, dizem os ecos do passado, em que as palavras eram gravadas com lápis, em papéis de pão sujos de dedos. Hoje, elas são sons digitais, reescritos, reditos, em telas frias que não entendem nem sentem o calor da mão que as toca.

Debaixo do ventilador, que geme o lamento de um blues esquecido, os minutos arrastam-se em sua monotonia. A canção continua, mas não é mais a mesma. Ou talvez seja, mas em outro compasso, um compasso que ninguém mais entende, e quem ousa tentar dançar ao ritmo sente a desarmonia quebrar-lhe os passos.

Então, astronautas e esquizoides surgem em botas pressurizadas, vagando por realidades que jamais conheceremos. Se algo der errado, e dará, cedo ou tarde , suas roupas estourarão, seus corpos explodirão. Não importa a física que os envolva, pois o erro sempre estará ali, esperando por sua chance de destruir. O pecado, afinal, é sempre de quem o comete, mas quem pode julgar se até o pecado agora é digital?

A luz, de algum modo, ainda corta o escuro, revelando, em suas faíscas, verdades que não queremos ver.

2

A Cidade  piscava ao som de músicas que ninguém havia escolhido. Ondas sonoras eletrônicas ecoavam pelos becos estreitos, atravessando janelas sem vidro, ressoando nos tímpanos dos transeuntes. Aqueles que caminhavam pelas ruas não notavam as melodias, mas seus passos sincronizavam, de forma perturbadora, com o ritmo. Senhas mal digitadas eram sussurradas aos ventos como preces em busca de redenção, acentos esquecidos nas caixas de ilusões, lançados em murmúrios que vagavam sem direção.

Da plácida paisagem, onde um rio digital corria em faixas holográficas, emergiam vozes antigas e desesperadas das margens famélicas, um eco distante de uma era em que palavras carregavam peso. Agora, elas se dissolviam como algoritmos corrompidos em um universo de dados expandidos. A velha ave, uma águia biomecânica de metal enferrujado, rateava em voos insanos, observada por olhos cibernéticos que não sabiam mais o que eram lágrimas. Alguns desejavam as lágrimas, ansiando por um traço de humanidade; outros, alheios, deixavam as memórias escorrer em silício frio, sem o desejo de sentir.

Mesmo que a cidade não quisesse, a estória se desenrolava em espirais excêntricas, como ondas de prazer adolescente que tomavam conta dos clubes subterrâneos. Os habitantes, jovens eternos aprisionados em corpos de bio-implantes, rediziam as mesmas palavras, reescreviam seus destinos em telas de vidro líquido, com demência e fúria. Não havia mais volta. Rock era o ritmo da festa, mas as batidas, que antes faziam corações pulsarem, agora se entrelaçavam a impulsos elétricos, impulsionando vidas digitais que seguiam seu curso em um tempo sem memória.

A velha estória se reescrevia a cada novo verso digital. Houve um tempo em que mãos suadas rabiscavam palavras em papéis de pão, mas essa era uma nostalgia distante. Agora, versos de protesto surgiam em smartphones, enviados para algoritmos que decidiam seu impacto. O que era revolução tornava-se estatística, e o que era vida tornava-se código.

Debaixo de um sol que nunca se punha, suas tardes eram monotonia. O ventilador quebrado sussurrava um blues esquecido, a melodia de um tempo em que a esperança ainda flertava com o futuro. Mas o compasso era diferente. Quem disse que a canção ainda era a mesma mentia. As notas se perderam em um labirinto de atualizações e patches que nunca corrigiam a alma que faltava nas máquinas.

E enquanto o mundo girava, astronautas esquizoides vagavam nas fronteiras do espaço sideral. Em suas botas pressurizadas e uniformes selados, eles transitavam entre o nada e o vácuo de suas mentes. Sabiam que, se as camadas de sua realidade fossem despressurizadas, explodiriam, mas não se importavam. Talvez fosse esse o destino: romper-se em um grito mudo no espaço infinito, onde nem a luz desvendaria seus pecados.

A luz ainda cortava o escuro, mesmo nas ruínas brilhantes da cidade. Ela expunha verdades que ninguém mais queria ver, refletindo em telas trincadas e olhos que, de tão cibernéticos, não sabiam mais o que era enxergar.

A cidade, pulsando em neon, parecia derreter ao som das batidas eletrônicas, agora distorcidas. Os prédios, antes eretos e imponentes, oscilavam como colunas líquidas, feitas de luz e ruído. O horizonte se tornava uma linha torta, engolida por espirais de cores que só existiam na mente dos que ousavam olhar para o céu. Os algoritmos, enlouquecidos, cantavam em vozes agudas e sussurrantes, enquanto as senhas mal colocadas dançavam entre as frequências, escapando de caixas de ilusões, evaporando em fumaça digital.

Os sussurros adventistas, antes serenos, tornaram-se um zumbido insuportável. Eles anunciavam, sem fim, a nova ordem. Ninguém entendia, mas todos sentiam. Era como se uma marcha invisível avançasse pelo chão de concreto quebrado, pelas ruas vazias, levando consigo o peso de uma verdade que só seria revelada na última batida do último compasso. Na placida paisagem, agora apenas um eco digital perdido no espaço virtual, as margens famélicas choravam em desespero silencioso, tentando lembrar um passado que já não existia.

A velha ave, a águia biomecânica que rateava, perdeu o controle de suas asas enferrujadas. Ela subia em movimentos bruscos e caía, como se o céu fosse um pesadelo que se recusava a soltá-la. Lágrimas caíam, não dos olhos, mas de seus circuitos corroídos. Eram lágrimas elétricas, ácidas, dissolvendo as superfícies dos arranha-céus cibernéticos abaixo. Ninguém mais sabia o que era chorar de verdade. Chorar era para os humanos, e os humanos já haviam se perdido na tempestade de dados que cobria o mundo.

Mesmo que ninguém quisesse, a história continuava. Ondas de prazer adolescente, distorcidas pelo caos cibernético, invadiam cada esquina, cada mente conectada. Havia risos, mas eram ecoados por alto-falantes invisíveis, como se cada gargalhada fosse uma simulação, programada para repetir-se eternamente. A cada volta da espiral, a demência aumentava, e a fúria que a acompanhava queimava os circuitos daqueles que ainda tentavam sentir algo genuíno. O rock, o ritmo da festa, não era mais música, mas um código binário pulsante, uma batida que mantinha o caos em ordem, sustentando o mundo em sua rotação alucinada.

As velhas estórias se dissolviam na luz de outdoors digitais que piscavam sem sentido, propagando versos desconexos. Antes, as palavras eram escritas com cuidado, à mão, em papéis amassados de pão. Agora, eram pulsos de luz, fragmentos de dados, piscando em telas de vidro líquido, esquecidos tão rápido quanto eram lidos. A nostalgia ainda estava lá, mas ninguém sabia do que exatamente sentiam falta. Talvez fosse da imperfeição, do erro, do toque humano.

Sob o sol que jamais se punha, o ventilador antigo gemia seu blues, girando lentamente, como se estivesse exalando sua última respiração. O calor não era físico, era mental. O tédio se arrastava como uma sombra infinita, e a música, a mesma canção, sempre a mesma canção, começava a soar diferente, dissonante. Os acordes dobravam-se sobre si mesmos, virando um caos musical que rasgava o ar como lâminas.

E no espaço, além das fronteiras da cidade, os astronautas esquizoides dançavam. Suas botas pressurizadas pisavam em asteroides que giravam descontrolados, enquanto eles gargalhavam sem som. Em suas mentes, mundos colapsavam, realidades se desconstruíam. Eles sabiam, com uma certeza insana, que tudo terminaria em uma explosão. Se as pressões não os matassem, a loucura os devoraria inteiros. Mas isso não importava mais. Explodir, desintegrar-se, era a única saída. Um pecado, talvez, mas quem estava lá para julgar?

A luz, finalmente, cortava o escuro. Mas era uma luz estranha, multifacetada, cheia de segredos. Ela não revelava, apenas ofuscava. E o que quer que fosse a verdade, permanecia escondido, rindo silenciosamente nas profundezas do caos.

A luz, que antes ofuscava em sua intensidade caótica, começou a suavizar. Suas bordas afiadas e frias foram dissolvendo-se em tons quentes, abraçando a cidade e seus habitantes fragmentados. O caos, por fim, cedeu espaço a uma quietude inesperada. O rock distorcido, pulsante e insistente, foi sendo abafado por uma melodia suave, quase esquecida, mas que, de alguma forma, permanecia gravada na memória coletiva. Era uma canção antiga, melancólica, que vinha de um tempo em que as coisas eram mais simples, mais humanas.

As espirais, antes insanas e frenéticas, desaceleraram. O mundo começou a respirar de novo, um sopro lento e profundo que sincronizava os corações de todos que ainda restavam para sentir. As cores brilhantes, que agrediam os sentidos, dissolveram-se em um pôr do sol digital, um laranja tranquilo que pairava sobre a cidade. As fachadas perderam sua intensidade, e as sombras que antes se contorciam pelas ruas voltaram a ser apenas sombras comuns, projetadas no concreto quebrado.

A velha ave, finalmente, encontrou um pouso. Suas asas biomecânicas descansaram, seu voo alucinado deu lugar a um planear sereno. Não mais lágrimas elétricas, mas gotas suaves de chuva, caindo como uma benção sobre o horizonte. Era como se as engrenagens do mundo, antes sobrecarregadas e à beira do colapso, tivessem se reajustado em um ritmo mais orgânico, mais verdadeiro.

Os astronautas esquizoides, flutuando no vazio do espaço, também encontraram uma espécie de paz. O silêncio do cosmos, que antes ameaçava consumi-los, tornou-se um abraço reconfortante. Não havia mais pressões a quebrar ou explodir. Apenas o vazio, vasto e eterno, mas agora acolhedor. E ali, na escuridão, eles flutuavam, finalmente livres de suas dúvidas e dos sussurros incessantes.

No coração da cidade, aqueles que ainda se lembravam de como era sentir sentaram-se, observando as ondas de luzes suavizarem-se. Os murmúrios da nova ordem se apagaram, dissipados pelo vento suave que atravessava as ruas. As senhas mal colocadas, as ilusões, os sussurros, tudo isso desapareceu, como um sonho que desvanecia ao acordar.

E na calmaria que se seguiu, houve silêncio. Não um silêncio vazio, mas o tipo de silêncio que vem depois de uma tempestade. Um momento de respiro, onde o mundo, mesmo  surreal e futurista, parecia recuperar a paz. As engrenagens, a tecnologia, o digital, tudo continuava, mas sem pressa, sem a urgência de antes. A verdade, ainda velada pela luz, não precisava mais ser descoberta ou temida.

Era o momento de simplesmente estar.

Renato Pittas   

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