Elas
1
Tensão escorre pela pele, como o suor dos jogadores em um campeonato de cartas, justificada pelo vício que arde como um fogo de brigadeiro caindo dos céus. E os radares, aqueles olhos eletrônicos, enganam-se, confundindo as estrelas com o brilho de ilusões. “We really had a blackout,” sussurram entre os dentes, enquanto a chuva magnética do sol descarrega seu peso sobre nós, gente simples, enfrentando a fila dos mendigos em busca de um corte de cabelo e um prato de sopa, feita com os restos da grande indústria alimentícia, quase um sacrilégio disfarçado de alimento. E ainda assim, afirmamos estar tudo bem. Na verdade, tudo está uma merda.
Como desenganados de uma doença terminal, a overdose de analgésicos nos faz pouco ligar para os infernos pessoais que nos cercam. É um desligamento do cordão de prata que nos liga à matéria, uma frigidez mórbida que nos envolve. Choramos por chocolate e serotonina, enquanto os folhetins suburbanos tentam disfarçar em tragédia mexicana o cotidiano, em casa, exaustos, despimos os encantos que tentamos exibir a quem fantasiosamente pretendemos seduzir, namorados, namoradas, todos aprisionados em uma dança de seriedade que não desejamos mais.
A infelicidade feminina se reflete em rostos pintados, unhas decoradas, um jogo falso de beleza que esconde o extermínio emocional. “Who needs ya?” grita a mulher que lava os panos das crianças, enquanto padece por um sentimento perdido. Cada movimento em busca de um alívio, uma dose a mais, se transforma em um ritual de sobrevivência. Presumimos que as agulhas das seringas nos darão vida, enquanto o calor do sol nos queima, deixando marcas indeléveis na pele.
Assim, vagamos como cachorros perdidos nas esquinas de um subúrbio que não tem favelas, mas sim aeroportos. Em busca de uma fumaça, uma sensação, um remédio para a dor que nunca sabemos por que carregamos. Duro esperar que alguém nos faça companhia, que retorne a esperança de um lar, livre do pesadelo das abstinências. Viver em movimento perpétuo, questionando se existe vida e felicidade neste lado do mundo.
Sentimentos que só os adictos compartilham se misturam com o desespero. Em terapias de grupo, tentamos nos livrar da miséria emocional, enquanto os familiares treinados nos cercam, prontos para não sucumbir à nossa desgraça. “Vicious, you hurt me with a flower,” ecoa a canção, e a imagem de cristais coletados em tecidos rasgados nos lembra que o alívio pode ser tão efêmero quanto a dor.
Seremos sempre dissidentes da vida, carentes de morte. Em nossas realidades inconfessáveis, ajustamos a crueza da nossa adquirida doença com prazeres vastos e inexplorados. O junkie rico sobrevive à sombra da dor, navegando por ruas à noite, desejando esquecer a agulha que já não faz mais diferença. As fotos sensacionalistas nos retratam como cadáveres em um amanhecer monótono, enquanto o combustível da vida se esvai.
“Jesus, build my hot car,” gritamos, ardendo em um inferno pessoal, como criaturas que tentam seduzir o mundo com sorrisos. Ao mesmo tempo, sentindo a pele queima como uma batata quente, passando de mão em mão, entre moralismos vendidos a preço de beleza. Mães desesperadas, vendendo tudo para salvar seus filhos dos serviços forçados, das tinturarias que lavam não apenas roupas, mas também suas almas.
A lei nunca favorecerá os pervertidos, aqueles que anseiam por prazer e dor em igual medida. “We don’t wanna dance,” ecoa a multidão perdida, que já não acredita em um reino prometido. Sentimentos são cabelos rebeldes disfarçados de gel fixador, uma identificação de dores compartilhadas que só o vício pode entender. Sempre há alguém pronto para espetar uma solução temporária em nossas feridas, mas a realidade é um barbeiro que corta o que não queremos.
E assim, seguimos, afirmando o que jamais concordaremos, enquanto a necessidade de amor e compreensão nos escapa. “Stay out of it! Love is not just a kiss away.” Na verdade, tudo se resume a um desejo primário de conexão, de entender o incomum, de buscar provas em um mundo que não nos oferece certezas. Em meio a esse caos, talvez, possamos encontrar um sentido.
2
Na pequena cidade, a tensão se espalhava como uma neblina sobre as ruas. Era uma mistura de excitação e desespero, pulsando nas veias dos habitantes. Jogadores de cartas se reuniam em praças, onde suas mãos tremiam de ansiedade e vício, como se cada aposta fosse uma chance de escapar da realidade cinzenta que os cercava. O fogo de brigadeiro que descia do céu parecia iluminar o caminho para um lugar mais promissor, mas logo se dissipava, deixando apenas uma fumaça doce e enganosa.
“Realmente, estamos próximos á um surto,” murmurava, enquanto se espremia entre os mendigos na fila do sopão. O aroma do caldo quente misturava-se com o cheiro de suor e esperanças desfeitas. As pessoas se acomodavam, tentando ocultar suas vidas em um semblante de normalidade. “Está tudo bem, tudo bem…” se repetia, como um mantra, enquanto a realidade se desvanecia em uma espiral de incertezas.
Em sua casa, o eco das promessas não cumpridas reverberava. O espelho mostrava uma mulher que usava uma máscara de felicidade, mas seu olhar denunciava a solidão. Se despia das ilusões, observando o reflexo de uma vida desgastada pela luta diária. As unhas estavam pintadas, os lábios cuidadosamente maquiados, uma armadura contra o desespero que assombrava cada canto de sua mente. Ela era uma soldada de um exército invisível, lutando contra um inimigo implacável.
“Quem precisa de você?” ela sussurrou, enquanto lavava a roupa das crianças, a água fria misturando-se com as lágrimas não choradas. A vida estava se esvaindo, e ela se via presa em um ciclo interminável de obrigações e expectativas. O vício que antes trazia prazer agora se tornara uma corda apertada em seu pescoço, sufocando-a em cada respiração.
Na rua, os homens se aglomeravam, discutindo os últimos lances de um jogo que não tinha fim. “Cachorra de boca esperando uma dose a mais,” murmurava um deles, as palavras escapando entre risos nervosos e olhares furtivos. Via a cena com uma mistura de pena e compreensão, lembrando-se de como também havia buscado alívio nas sombras. Mas agora, a vida a havia deixado com as sobras, os vestígios de um prazer distante.
Enquanto caminhava, um grupo de jovens passava, rindo e se divertindo. “Sofrendo por um sentimento,” pensou, sentindo a dor da nostalgia. O desejo de uma vida normal, longe dos blackouts emocionais, a perseguia. Mas a cidade, com seus aeroportos e aviões, era apenas uma fachada para um subúrbio repleto de solidão e angústia. Os sonhos de viajar, de escapar, se tornaram uma piada amarga.
Naquela noite, quando a escuridão caiu sobre a cidade, Se viu em um momento de clareza. “A lei nunca pode favorecer pervertidos,” repetiu em voz alta, desafiando o universo a responder.Sabia que não era a única a sentir-se assim. A verdade estava nas sombras, nos encontros furtivos entre aqueles que buscavam o mesmo alívio, escondidos atrás de cortinas pesadas e segredos sussurrados.
O telefone tocou, quebrando o silêncio. Era, sua amiga de longa data, uma mulher que também lutava contra os demônios internos. “Vamos nos encontrar. Precisamos conversar.” A voz dela era um bálsamo, um lembrete de que a conexão ainda era possível.
Se encontraram em um bar abafado, onde as luzes piscavam de maneira instável. As conversas flutuavam como fumaça, entre risos nervosos e olhares furtivos. “A vida é uma merda, não é?” disse a amiga, enquanto levantava um copo de uísque. Sorriu, concordando com a cabeça. “Mas estamos aqui, pelo menos.” Era um pequeno consolo, mas, para elas, fazia toda a diferença.
A noite avançava e, entre histórias de superação e risadas nervosas, a tensão começava a escorregar pelas paredes, como se a cidade estivesse acordando de um pesadelo coletivo. Sentiu uma centelha de esperança brilhar no peito. Talvez, na escuridão, pudesse haver espaço para a luz. Afinal, havia algo poderoso na solidariedade de suas histórias, algo que poderia desmantelar as máscaras que usavam.
“Quem precisa de amor?” Brincou, com um sorriso brincalhão. a amiga riu, seu olhar refletindo a mesma luta. “Acho que todos nós precisamos.”
E sob a luz intermitente do bar, as duas mulheres encontraram um espaço seguro para explorar a vulnerabilidade, uma conexão que superava os blackouts da vida. Elas não tinham todas as respostas, mas juntas estavam dispostas a enfrentar a tempestade. Enquanto a cidade continuava a lutar contra suas próprias sombras, Percebeu que a vida, mesmo com suas feridas, ainda poderia ser bela, se apenas estivéssemos dispostas a vê-la.
A noite se arrastava, e o bar, que antes parecia sufocante, agora pulsava com uma energia renovada. As risadas e as conversas se entrelaçavam, formando um tecido de esperanças e fragilidades compartilhadas. Elas se tornaram o reflexo uma da outra, as vidas entrelaçadas por experiências de dor e busca por redenção.
“Você já parou para pensar no que realmente queremos?” A Amiga perguntou, sua voz tingida de curiosidade. “Não é só sobre sair desse lugar, mas sobre quem queremos ser quando finalmente conseguirmos.” Ponderou, encarando o copo de uísque, como se a resposta estivesse escondida no âmbar líquido.
“Queremos viver,” respondeu finalmente, um sorriso suave brotando de seus lábios. “Viver de verdade, sem as máscaras.” E naquela declaração, uma onda de alívio percorreu seu corpo. Era um passo pequeno, mas significativo, na direção certa. O álcool que antes parecia um aliado na fuga agora se tornava um símbolo de clareza.
“E o que isso significa?” a amiga insistiu, a centelha de esperança se acendendo em seu olhar. “Significa enfrentar os medos, as dúvidas, e talvez até mesmo o amor.” A palavra pairou entre elas como uma dança invisível. Pensou nas relações que havia deixado para trás, na solidão que a acompanhara por tanto tempo.
“O amor é complicado, não é?” disse a amiga, olhando para as luzes piscando lá fora. “Mas é o que nos mantém humanas.” Assentiu, refletindo sobre as promessas não cumpridas, sobre o modo como as expectativas sociais se transformavam em pressões que sufocavam os sentimentos autênticos.
Naquela noite, sob o peso da vulnerabilidade, elas decidiram que era hora de se libertar das correntes que as mantinham presas. “Vamos fazer algo diferente,” sugeriu. “Vamos nos inscrever em um curso de dança ou algo assim. Algo que nos faça sentir vivas.”
A aniga sorriu, os olhos brilhando. “Por que não? Vamos enfrentar o desconhecido, mesmo que isso signifique dançar como se ninguém estivesse olhando.” Elas riram, a ideia de se soltar na dança parecia tão distante e ao mesmo tempo tão próxima. Era um passo rumo à liberdade, um convite à autenticidade.
Nos dias que se seguiram, as duas se jogaram no novo projeto. O estúdio de dança, com suas paredes espelhadas e o som vibrante, se tornou um refúgio. Elas deixavam suas inseguranças à porta e se permitiam ser quem realmente eram, sem julgamentos.
A dança se transformou em um bálsamo. Movimentos fluidos e expressivos afastavam os resquícios de uma vida sufocante. Elas riam das quedas e dos passos errados, encontrando liberdade na vulnerabilidade. A cada aula, o peso das expectativas diminuía, e a conexão entre elas se aprofundava.
No entanto, a vida fora do estúdio ainda insistia em lançar suas sombras. Os blackouts emocionais não desapareciam completamente, mas agora pareciam mais gerenciáveis. Começou a entender que cada passo dado, cada movimento na dança, refletia uma jornada interna.
“E se voltássemos a nos conectar com as pessoas que amamos?” sugeriu a amiga certa noite, enquanto as duas se sentavam no sofá após uma intensa sessão de dança. “Estamos tão perdidas, mas também temos pessoas que se importam com a gente.”
Hesitou. A ideia de reatar laços a deixava ansiosa. “E se nos machucarmos novamente?”
“E se encontrarmos amor?” a amiga retrucou, sua voz suave, mas firme. Sentiu o coração acelerar. Era um risco, mas talvez fosse um risco que valesse a pena correr.
Assim, aos poucos, começou a enviar mensagens para amigos que não via há muito tempo. E ao mesmo tempo, a amiga decidiu que era hora de enfrentar suas próprias relações. Elas se apoiavam mutuamente, compartilhando histórias, risos e até lágrimas.
Certa noite, enquanto se preparavam para mais uma aula de dança, um estrondo ecoou do lado de fora. O barulho de sirenes e gritos misturava-se ao som do seu coração acelerado. As duas olharam pela janela, vendo a cidade iluminada por um incêndio distante.
“É isso que estamos tentando escapar?” Sussurrou, o brilho das chamas refletindo nos seus olhos. “Fogo e caos…”
“Mas também é onde encontramos a luz,” respondeu a amiga, segurando a mão. “Precisamos aprender a dançar no fogo.” E, com essa frase, uma nova resolução nasceu entre elas. Não apenas escapar, mas também enfrentar as tempestades e as chamas da vida.
Com o tempo, a dança tornou-se um ato de resistência. Elas, em seu novo ritual de liberdade, aprenderam a celebrar cada passo, mesmo que tombassem. E em meio ao caos, perceberam que a luz do amor e da amizade era o que realmente iluminava suas vidas.
E assim, sob o céu escurecido por blackouts e chamas, as duas dançavam, desafiando o mundo e as suas sombras, porque agora sabiam que mesmo em meio à desordem, poderiam encontrar sua própria verdade.
As chamas dançavam como espíritos indomáveis, iluminando a escuridão da cidade como uma revolução em chamas. Elas, agora em um estado de fervor e resistência, sentiram a energia pulsante ao seu redor. O caos externo ecoava a tempestade interna que sempre as acompanhara, mas em vez de se deixarem abater, elas decidiram que era hora de incendiar as correntes invisíveis que ainda as prendiam.
“Chega de viver à sombra!” Gritou, sua voz cortando o ar como um grito de guerra. A amiga a olhou, a determinação ardendo em seus olhos. “Vamos nos recusar a sermos definidas pelo que o mundo espera de nós.”
Saíram do estúdio, suas almas agora livres como os fogos que queimavam ao longe. As ruas eram um campo de batalha; a cidade, um microcosmo das lutas de todos que, assim como elas, buscavam liberdade. Com cada passo, a dança se transformava em protesto, cada movimento, um ato de rebeldia.
As mulheres passaram a chamar amigos, aqueles que estavam também presos nas suas próprias labirintos de solidão e vício. “Venham!” Elas gritavam para aqueles que desejavam escapar das correntes do cotidiano. “Está na hora de se libertar!”
Com um grupo crescente, eles tomaram as ruas, a batida de suas almas ressoando como um tambor de guerra. Se antes eram mendigos de amor e compreensão, agora eram guerreiros da autenticidade. A cidade se tornava uma dança, um ato coletivo de resistência.
As sirenes e as vozes das autoridades se misturavam à música pulsante que emanava do grupo. “A vida não é uma linha reta, é uma espiral!” proclamou, a energia crescendo ao seu redor. “Se estamos em um abismo, vamos dançar nele!” E com isso, eles giraram, rodopiaram e deixaram que a liberdade os carregasse.
A noite se tornou um espetáculo surreal. Luzes e sombras se entrelaçavam, e cada grito de alegria ecoava como um manifesto contra as opressões que tentavam silenciá-los. “Ninguém vai nos colocar em caixinhas!” Luciana bradou, e os ecos de suas palavras vibravam nas almas dos que a cercavam. “Nós somos a tempestade e a calmaria! Somos a dor e o prazer!”
E assim, como um furacão em plena força, o grupo se espalhou pela cidade, transformando cada esquina em um palco, cada muro em uma tela onde a arte da vida e da resistência era pintada em cores vibrantes. Não havia espaço para medos ou inseguranças. Apenas o desejo ardente de viver intensamente.
Se tornaram figuras centrais dessa revolução urbana. Não eram mais escravas da sociedade ou do que se esperava delas. Elas eram rainhas de uma nova era, desafiando normas e quebrando estigmas, em um grito ensurdecedor de liberdade e autenticidade.
E ao final daquela noite, com os corpos exaustos mas as almas vibrantes, as duas se encontraram em um beco iluminado pelas estrelas e pelas chamas distantes. “Fomos além do que sonhávamos,” Sussurrou a amiga, um sorriso de pura satisfação em seus lábios.
“E não vamos parar!” respondeu, a determinação ardendo em seu peito. “Vamos incendiar o mundo com nossa verdade, e não haverá blackout que possa nos apagar!”
Com isso, elas levantaram os braços, desafiando o céu, a lua e as estrelas. E enquanto a cidade se iluminava ao longe, cada um de seus batimentos se tornava um testemunho de que a verdadeira liberdade está em ser quem você realmente é, sem medo do que vem pela frente.
Que venham as chamas, os radares e as sirenes! Elas dançariam sob a luz dos blackouts e se ergueriam, firmes e audaciosas, no clamor de um novo despertar.
Renato Pittas
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