A Engrenagem
1
No centro da cidade, o caos pulsava como o coração da engrenagem de um velho relógio, acelerado e, ainda assim, previsível. Homens e mulheres de todas as idades se lançavam nas ruas como peças bem encaixadas, indo e vindo em um ritmo marcado por buzinas, passos apressados e suspiros invisíveis. Na correria de seus dias, estavam todos presos em um rodopio constante e inconclusivo, cada um buscando algo próprio, mas sem saber exatamente o quê.
Entre esses, existia alguém que desejava apenas uma coisa: tranquilidade. Este personagem – alguém comum, de rosto cansado, trabalhador ansiava por uma vida simples, sem o peso de alimentar a maquinaria alheia. Era um desejo quieto, como a semente de uma planta tímida que insiste em brotar entre as rachaduras de uma calçada movimentada. Ele não queria muito, apenas o suficiente para seguir sua vida sem se sentir parte desse jogo artificial, no qual todos pareciam dispostos a sacrificar qualquer coisa em troca de um status que, ao fim, lhes era tão vazio quanto um outdoor apagado.
Nas ruas estreitas, onde passava em meio ao fluxo de pessoas, ele percebia o contraste entre sua busca particular e a roda-viva da cidade. Sentia-se oprimido pelo mecanismo do sistema, que, em um esforço contínuo de alimentar a ganância de uns poucos, esmagava os sonhos dos muitos. Enquanto ele observava os altos prédios de vidro refletindo o céu, questionava se, de fato, ainda havia espaço para alguém que quisesse apenas viver em paz. A sociedade estava avançada, desenvolvendo ciência e tecnologia, e ainda assim – ele se perguntava – por que era tão difícil viver sem a pressão sufocante desse “progresso”?
O barulho do trânsito, o passo apressado dos executivos e o brilho das telas de publicidade continuavam a inundá-lo. Um dia, preso no semáforo, sentiu que precisava de um momento de silêncio. Fechou os olhos por alguns instantes e, quando os abriu, percebeu algo curioso: as pessoas ao redor continuavam seu caminho, alheias à sua parada. E ali, naquele pequeno ato de resistência, descobriu uma espécie de epifania. Talvez, ao invés de lutar contra o sistema ou tentar consertá-lo, ele pudesse simplesmente criar sua própria maneira de lidar com o caos. Um método particular de, mesmo em meio a todo o barulho, encontrar um fragmento de serenidade.
Daquela noite em diante, passou a praticar pequenos atos de recusa. Não era nada grandioso, mas eram suficientes para lembrá-lo de que ainda era dono de suas escolhas. Em um dia, andava mais devagar, ignorando os olhares apressados. Em outro, tirava um tempo para observar o céu entre os prédios, como se ele próprio não estivesse mais na engrenagem. E, pouco a pouco, esses momentos solitários de paz se multiplicaram, protegendo-o, como se construísse um escudo invisível ao seu redor.
Ainda havia dias em que ele se sentia impotente diante da cidade que parecia indiferente ao seu desejo. Mas, no fundo, sabia que sua busca por tranquilidade em meio ao caos não era inútil. Era sua resistência silenciosa, um lembrete de que, às vezes, é preciso parar e redescobrir onde nos encaixamos, não como peças de uma engrenagem voraz, mas como seres livres de seguir um caminho próprio.
2
Ele era como qualquer outro habitante da cidade. De segunda a sexta, seguia o mesmo percurso entre seu pequeno apartamento e o escritório apertado em que trabalhava. Nas manhãs, arrastava-se para o ponto de ônibus em meio ao barulho de buzinas e multidões apressadas. Nas noites, retornava exausto, vendo apenas o reflexo das luzes da cidade desfilar pela janela, como um filme repetido que ele conhecia bem demais.
Por mais que tentasse encontrar tranquilidade, sentia-se cada vez mais sufocado. A cidade parecia uma máquina de ruídos, movimentos e cobranças que não lhe davam descanso. Olhava para as pessoas, em seus ternos e vestidos, e via ali um exército marchando ao som do relógio. Tudo parecia girar em torno de um jogo que ele nunca entendera bem: quem fazia mais dinheiro, quem subia na hierarquia, quem acumulava mais propriedades, como se cada conquista fosse um bilhete dourado para o sossego. Mas sabia que aquilo era uma ilusão. A engrenagem nunca parava.
Um dia, depois de um plantão difícil e de uma fila interminável no mercado, resolveu caminhar sem pressa. Não sabia bem por quê, mas algo dentro dele dizia para desacelerar, e ele se deu ao luxo de obedecer. As pessoas o ultrapassavam com olhares estranhos, como se estivesse em um ritmo descompassado. Sentiu o peito apertar, uma angústia antiga, mas continuou em seu próprio tempo.
Passou pela praça central, onde havia uma velha fonte de mármore, já desbotada pelo tempo. As crianças corriam e brincavam, rindo alto, e um idoso jogava migalhas para os pombos. Sem pensar, sentou-se em um dos bancos. Sentiu o alívio de um peso se soltando de seus ombros e respirou fundo, fechando os olhos por um instante. O silêncio interno foi interrompido por uma voz rouca:
— Difícil encontrar um pouco de paz, não?
Ele abriu os olhos e viu um homem de cabelos grisalhos e semblante sereno, sentado ao seu lado. Parecia tão alheio ao caos quanto gostaria de estar. Os dois trocaram um sorriso cúmplice, como quem se reconhece em uma mesma dor.
— Tudo é rápido demais, e mesmo assim sinto que nunca chego a lugar algum — desabafou.
— A cidade vive de pressa, mas ninguém sabe para onde vai o homem respondeu, olhando para o céu entre os prédios. — Eu mesmo já tentei de tudo, busquei isso que chamam de “sucesso”. Mas, no final, percebi que a paz estava justamente em não precisar mais participar desse jogo.
Ficou em silêncio, digerindo aquelas palavras. Era uma ideia ao mesmo tempo óbvia e libertadora: a engrenagem só funcionava se ele continuasse girando junto com ela.
Naquela noite, em seu apartamento, teve uma epifania. E se a tranquilidade não fosse um lugar, mas uma escolha? No dia seguinte, colocou uma música tranquila em seus fones de ouvido e foi ao trabalho a passos lentos. As pessoas ainda o ultrapassavam, mas, dessa vez, ele não se sentiu deslocado. Durante o expediente, cada intervalo, cada pausa, tornou-se um ritual de desconexão do frenesi ao redor.
Aos poucos, foi criando esses momentos de respiro, como ilhas de serenidade no mar caótico da cidade. Suas pequenas recusas – parar na praça, caminhar devagar, desviar o olhar do relógio – não mudaram o ritmo da metrópole, mas, de alguma forma, mudaram a dele. Cada ato de resistência tornava-se um lembrete de que, mesmo em meio à engrenagem, ele ainda podia encontrar paz.
E, assim, dia após dia, deixou de ser uma peça no grande relógio e passou a ser um ponteiro que, mesmo em um ciclo repetitivo, seguia seu próprio compasso.
Com o passar dos meses, transformou essa busca por tranquilidade em um hábito discreto, quase secreto. Descobriu, por exemplo, que tomar café de manhã olhando pela janela, em vez de engolir apressado antes de sair, lhe dava uma estranha sensação de liberdade. No caminho para o trabalho, passou a se desviar de ruas mais movimentadas para caminhar por vielas antigas e calçadas esburacadas, onde a pressa das avenidas principais não conseguia alcançar. Ali, a cidade parecia respirar mais devagar, e ele sentia que também podia.
As pequenas pausas e desvios transformavam a rotina em algo menos opressor. No trabalho, as cobranças ainda existiam, os prazos ainda pareciam apertados demais e as reuniões continuavam intermináveis. Mas se tornara um mestre em encontrar brechas de respiro: um chá quente na mesa, uma música calma tocando baixinho no fone, um olhar mais demorado para uma planta em um canto esquecido do escritório.
Com o tempo, outros começaram a notar algo diferente. Alguns colegas até perguntavam, entre a curiosidade e a ironia, se ele tinha “descoberto o segredo da paz”. Ele ria, dando de ombros, sem saber exatamente como responder. Em vez de explicar, convidava-os para um café na praça ou sugeria que tirassem alguns minutos para “olhar para o nada”. Poucos entendiam, mas alguns, especialmente aqueles já cansados da correria, se permitiam tentar.
O impacto dessas pequenas atitudes começou a se espalhar, como ondas em um lago calmo. Alguns colegas de trabalho, que antes corriam para tudo, também passaram a fazer pausas, buscar rotas mais silenciosas, respirar fundo entre um compromisso e outro. A engrenagem da cidade continuava rodando, mas, pouco a pouco, percebia que não estava mais sozinho em sua resistência. Havia agora um sutil movimento, uma corrente quase imperceptível de desaceleração, que se infiltrava pelos becos, ruas e cafés, onde pessoas redescobriam a arte de viver em seu próprio ritmo.
No fim das contas, não precisou abandonar a cidade ou fugir para um lugar remoto. A paz que ele buscava estava ali o tempo todo, na escolha consciente de escapar, ainda que por segundos, da roda-viva que o cercava. E, ao descobrir esse segredo, percebeu que a tranquilidade era menos sobre o lugar onde estava e mais sobre a maneira como vivia.
Na cidade que nunca dormia, se tornara um sonhador desperto, e, a cada dia, a engrenagem girava menos ao seu redor.
Ao longo dos anos, o movimento, silencioso e persistente, tornou-se sua própria revolução. A paz que ele encontrou, embora pequena e invisível para o caos do mundo ao redor, era poderosa. Ele não precisava mais provar nada à cidade ou ao sistema que tentava engoli-lo. Na realidade, quanto mais ele se distanciava da pressão e das expectativas alheias, mais a engrenagem do mundo parecia girar sem tocá-lo, como uma máquina distante e inofensiva.
Outros se uniram a ele nesse novo compasso, e, embora a cidade não notasse, pequenas ilhas de serenidade brotavam nos lugares mais inesperados: um grupo de amigos que se reunia sem pressa, trabalhadores que compartilhavam um sorriso leve em vez de um relógio tenso. Eles se tornaram como redutos de tranquilidade, minúsculas insurgências de paz em um mundo que mal sabia desacelerar.
Então, compreendeu: era um sobrevivente, não por fugir do caos, mas por aprender a coexistir com ele sem ser consumido. Com um último olhar para a cidade que continuava em seu ritmo desenfreado, ele sorriu, sabendo que sua paz estava ali, intacta, invulnerável. E como uma gota d’água que insiste, transformou-se em um rio calmo, imperturbável, que, contra toda a corrente, escolhia fluir em paz.
Para ele, isso era mais do que resistência; era vitória.
Renato Pittas
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