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Á um passo

Á um passo

No caos de um futuro distante, as ruas da cidade ecoavam com os ritmos fragmentados de um rock digital, um som que reverberava nas paredes holográficas dos arranha-céus. O céu, um misto de néon e escuridão, lançava uma luz artificial que banhava a todos em uma claridade fria, onde o tempo parecia se desdobrar em espirais, cada momento se esticando até o próximo com uma insistência mecânica.
Nas esquinas, senhas mal colocadas dançavam nos painéis de vidro, como símbolos esotéricos lançados ao vento, promessas cifradas de uma nova ordem, sussurros de um advento tecnológico que ainda não havia chegado, mas que todos esperavam com uma ansiedade famélica. Os murmúrios desesperados dos marginais ecoavam pelas fendas entre os edifícios, sussurros de uma liberdade perdida, enquanto o antigo rio, agora canalizado e controlado por sistemas de purificação automatizados, gemia como uma memória esquecida, uma canção sem ritmo, uma melodia sem ouvidos.
A velha ave, uma criatura que parecia ter emergido de um delírio coletivo, voava em círculos insanos pelo céu, suas asas batendo em ritmos descoordenados, como se o próprio ar estivesse contra ela. Seus olhos, secos e sem brilho, observavam a cidade abaixo, enquanto lágrimas teimosas escorriam pelos rostos dos que a viam, sem saber se choravam pela criatura ou por si mesmos.

Mas o mundo continuava a girar, movido por uma energia invisível, alimentado por ondas de prazer que varriam os sentidos dos habitantes. As espirais excêntricas da realidade se misturavam com as ondas sonoras, criando um tecido de ilusões onde a verdade e a mentira se tornavam indistinguíveis. Nessa dança, os versos digitais, escritos apressadamente em smartfones, se tornavam o novo evangelho, redigidos e reescritos com demência e fúria, como se cada palavra pudesse definir o destino de todos.

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A festa, que parecia nunca acabar, era marcada por acordes que se repetiam, ecoando em um loop infinito. Rock era o ritmo que embalava o tempo, mas o compasso parecia errado, como se algo estivesse sempre fora de lugar. Deitado sob o sol artificial, em frente a um ventilador que sussurrava um blues melancólico, alguém se perguntava se a canção ainda era a mesma. O tédio da tarde se arrastava, cada segundo uma eternidade.
E enquanto astronautas em botas pressurizadas flutuavam pelos céus, suas sombras longas se estendendo pelo asfalto, a questão permanecia: o que acontece quando a pressão se torna insuportável? Explodiriam como estrelas antigas, ou simplesmente desvaneceriam no vazio? A certeza era uma luxúria que ninguém mais podia se dar ao luxo de ter.

O pecado, afinal, era uma invenção daqueles que ousavam nomeá-lo, e a luz, essa entidade caprichosa, revelava apenas o que queria. O escuro, sempre presente, escondia as verdades mais incômodas, mas também guardava os segredos mais doces. E assim, no final de tudo, restava apenas a música, o último vestígio de uma humanidade que ainda lutava para se lembrar de si mesma.
Enquanto a cidade pulsava com sua música incessante, uma figura solitária caminhava pelas ruas, sua silhueta ondulante refletida nas fachadas espelhadas dos edifícios. Vestia um casaco longo, que parecia feito de sombras líquidas, fluindo ao redor de seu corpo como se o tecido estivesse vivo. Seus passos eram silenciosos, mas cada movimento reverberava na realidade, como uma dissonância que perturbava o equilíbrio frágil do mundo.
Essa figura, conhecida apenas como Vigilante um mito um mitoentre os habitantes, uma lenda urbana que se espalhava através das redes digitais, contada em sussurros e criptografada em versos codificados. Diziam que ele era o último vestígio de uma era esquecida, um ser que sobrevivera à transição entre o analógico e o digital, carregando consigo os segredos do antigo mundo.
Enquanto caminhava, os ecos da cidade pareciam se afastar dele, as melodias eletrônicas se dissipando no ar rarefeito. Carregava uma antiga caderneta de papel amarelado, onde rabiscava com um lápis quase invisível, palavras que ressoavam com um poder arcano. A cada página virada, uma nova onda de caos e ordem se propagava pela cidade, como se suas anotações pudessem reescrever a própria estrutura do universo.

Em uma encruzilhada onde o tempo parecia se dobrar sobre si mesmo, Parou e olhou para cima. No céu, a velha ave continuava seu voo errático, suas asas batendo como tambores de guerra. Um sorriso quase imperceptível surgiu no canto de seus lábios. Sabia que a ave era mais do que uma criatura perdida; ela era um símbolo, um sinal de que algo estava prestes a mudar.
Com um movimento rápido, arrancou uma página da caderneta e a soltou ao vento. A folha flutuou por um momento, antes de ser levada para longe, suas palavras se espalhando como sementes de caos pela cidade. Os efeitos foram imediatos. Os hologramas nas fachadas dos prédios começaram a tremer, suas imagens distorcidas se desintegrando em pixels que caíam como chuva sobre os transeuntes. O céu de néon piscou, sua luz se fragmentando em milhares de cores, e por um breve instante, a cidade inteira pareceu respirar.

Mas essa respiração trouxe consigo uma nova melodia, um som que não era nem rock nem blues, mas algo inteiramente novo. Era como se a própria essência do mundo estivesse se rearranjando, ajustando seu compasso a uma batida desconhecida, e os habitantes da cidade, sem saber por que, começaram a dançar. A dança era caótica, errática, mas havia uma sincronia subjacente, uma harmonia que conectava cada movimento ao próximo, como se todos fossem parte de uma única entidade viva.

Observou, seus olhos brilhando com uma sabedoria ancestral. Sabia que essa transformação era apenas o começo. As palavras que havia escrito não eram finais, mas sementes de uma nova realidade, uma onde o passado e o futuro se fundiriam, criando algo completamente inesperado. O que surgiria desse caos, nem mesmo ele poderia prever.

Enquanto as espirais da nova melodia envolviam a cidade, virou-se e continuou sua caminhada, desaparecendo nas sombras que pareciam segui-lo como uma segunda pele. No céu, a ave gritou, um som agudo que ressoou como um aviso ou um grito de libertação. Lágrimas caíram dos olhos dos habitantes, lágrimas que não eram de tristeza ou alegria, mas de pura compreensão.
Naquele instante, a cidade deixou de ser apenas uma construção de concreto e vidro; ela se tornou um organismo vivo, respirando e pulsando com a energia de uma nova era. E enquanto a música tocava, as palavras digitais continuaram a se espalhar, se multiplicando em telas e mentes, reescrevendo a história, uma letra de cada vez.

A verdade, agora revelada pela luz, era clara: o pecado, a música, a luz e as sombras, tudo fazia parte do mesmo ciclo. O futuro era uma página em branco, pronta para ser preenchida com as palavras de quem ousasse escrevê-las. E, aquele que caminhava entre os mundos, continuaria a escrever, sabendo que cada palavra carregava o poder de moldar o destino.

Ao caminhar em direção ao horizonte, sentia o peso das palavras que tinha lançado ao vento, sabendo que cada uma delas carregava o potencial de desdobrar realidades inteiras. No entanto, não era com orgulho ou temor que ele caminhava, mas com uma calma serena, como se estivesse em paz com o papel que desempenhava.
A cidade, agora transformada em um organismo pulsante, continuava a dançar ao som da nova melodia que ecoava por suas ruas e avenidas. O ritmo não era mais uma repetição monótona de compassos conhecidos, mas uma sinfonia caótica, onde cada nota criava uma nova possibilidade. As pessoas, antes presas em suas rotinas digitais, começaram a perceber algo diferente no ar. Era como se um véu tivesse sido levantado, revelando um mundo onde as regras não eram mais rígidas, mas maleáveis, prontas para serem moldadas por aqueles que ousassem sonhar.

Os hologramas nas fachadas dos prédios, agora livres de suas antigas programações, começaram a exibir imagens que não faziam sentido à primeira vista: símbolos antigos, cenas de tempos passados misturadas com visões de futuros alternativos, rostos conhecidos que se transformavam em figuras mitológicas. As palavras digitais, que antes eram meras ferramentas de comunicação, tornaram-se veículos de criação, cada frase escrita ou falada carregando em si a semente de uma nova realidade.

E a velha ave, símbolo de um tempo esquecido, finalmente encontrou seu lugar. Com um último grito, ela deixou de voar em círculos e partiu em linha reta para o infinito, desaparecendo no horizonte de néon, como se tivesse cumprido sua missão. Sua partida deixou um silêncio profundo na cidade, um momento de quietude em que todos prenderam a respiração, esperando pelo que viria a seguir.
Nesse silêncio, uma nova voz começou a emergir, não de um ser único, mas da própria cidade. Era como se as ruas, os edifícios e as pessoas tivessem se fundido em uma consciência coletiva, uma entidade que existia para além de qualquer compreensão individual. A voz era suave, mas poderosa, e suas palavras não eram ditas, mas sentidas, reverberando nos corações e mentes de todos os que ainda estavam acordados para ouvi-la.

“A história continua,” disse a voz, “mas agora ela pertence a todos nós. Não há mais um autor, nem um destino predeterminado. Cada um de vocês carrega em si a capacidade de escrever o próximo capítulo, de moldar o futuro com suas palavras, seus pensamentos e suas ações. A música, o ritmo, a luz e as sombras, tudo isso é parte de quem somos. E juntos, podemos criar algo novo, algo que nunca foi visto antes.”

Ele, agora apenas mais uma sombra na cidade, sorriu ao ouvir essas palavras. Sabia que seu papel estava completo, mas o trabalho, o verdadeiro trabalho, estava apenas começando. A cidade estava viva, e com ela, um novo mundo de possibilidades.
Assim, enquanto a música continuava a tocar e as palavras continuavam a se espalhar, a cidade dançava em sua nova realidade. Não era mais um lugar de tédio ou conformidade, mas um espaço onde cada momento era uma chance de criar, de reinventar, de reescrever a história.

O futuro, esse mistério que antes parecia inalcançável, agora estava ao alcance de todos. E com um último passo, desapareceu, sabendo que o mundo que ajudara a criar continuaria a evoluir, impulsionado pela imaginação e pelo desejo de todos aqueles que ousassem sonhar.

Assim, a cidade continuou a girar, um eixo de criação infinita, onde cada ser, cada voz, cada pensamento, contribuía para a melodia interminável que ecoava pelo universo. E no final, não havia mais nada a ser dito, exceto que a história, essa grande sinfonia de palavras e sons, estava apenas começando.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

https://sara-evil.blogspot.com

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