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Alienado num Subúrbio do Imaginário

Alienado num Subúrbio do Imaginário

No coração de uma cidade que jamais dorme, em um bairro onde as ruas eram traçadas por mãos invisíveis e os prédios se elevavam ao ritmo dos pensamentos alheios, vivia um homem. Ele andava pelas calçadas como se estivesse suspenso entre duas realidades: uma onde tudo fazia sentido demais, outra onde nada fazia sentido algum. Os dias passavam em uma estranha cadência, como se as horas fossem dobradas e moldadas por uma lógica desconhecida.

Ele, por sua vez, era um visitante frequente das fronteiras do real. Enquanto seus vizinhos se ocupavam com rotinas previsíveis — o trabalho, a família, as contas — ele flutuava por entre as fendas do cotidiano. Ali, no meio da tarde, Se via em diálogos silenciosos com as sombras das árvores, que insistiam em compartilhar segredos ancestrais em um idioma que ele mal compreendia.

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Uma tarde, enquanto caminhava pela Rua da Ausência, onde os postes de luz piscavam em sussurros cadenciados, ele notou uma fissura no concreto. Era pequena, quase imperceptível, mas algo naquela rachadura o puxava como um imã. Agachou-se e, ao tocar a fenda, foi sugado por um vórtice de imagens e sons. Quando abriu os olhos, não estava mais na rua, mas em um vasto deserto onde as dunas eram feitas de páginas de livros que ele nunca havia lido.

O vento soprava trechos de histórias que se desfaziam antes que pudesse entender. As palavras, fragmentadas, formavam frases sem sentido, como se seu subconsciente estivesse despejando memórias de vidas que ele nunca viveu. Caminhava, sentindo o peso da alienação crescer a cada passo, uma desconexão que se tornava quase palpável, como uma neblina densa que o envolvia.

Se encontrou diante de uma torre feita de relógios derretidos, onde o tempo se desmanchava em um contínuo desconexo. No topo da torre, um velho encurvado o observava com olhos que refletiam um universo desconhecido. “Por que se sente tão alienado?”, perguntou o ancião, sua voz ecoando em múltiplas direções.

Tentou responder, mas as palavras se emaranhavam em sua mente. Estava preso em um limbo, entre o mundo que conhecia e um outro, onde as leis da física, da lógica, não se aplicavam. Sentia-se incapaz de distinguir o real do imaginário, como se estivesse à deriva em um mar de conceitos que se dissolviam ao toque.

O velho estendeu a mão, oferecendo um antigo relógio de bolso. “Para encontrar o caminho de volta, deve aprender a ler o tempo de outra maneira.” Pegou o relógio, que marcava horas que não existiam no seu mundo, e sentiu uma estranha conexão com aquele objeto. Ao abrir o relógio, a realidade ao seu redor começou a desmoronar, como uma pintura se desfazendo.

De volta à Rua da Ausência, Abriu os olhos. A fissura no concreto havia desaparecido. As sombras das árvores ainda murmuravam, mas agora em um tom mais suave, quase reconfortante. Se levantou, sentindo-se mais leve, mas ainda assim ciente de que havia mudado. A alienação não havia desaparecido, mas agora parecia menos um fardo e mais uma companhia silenciosa, como uma velha amiga que entendia as complexidades do mundo sem julgar.

Seguiu seu caminho, sabendo que, por mais alienado que se sentisse, havia encontrado algo precioso naquele deserto surreal: a aceitação de que estar fora de sintonia, às vezes, é apenas uma outra forma de dançar ao ritmo invisível do universo.

Seguiu andando pela cidade, mas algo havia mudado dentro dele. As ruas, antes labirintos de concreto e dúvidas, agora pareciam fluxos de uma correnteza suave, levando-o em uma direção que ele não precisava compreender, apenas sentir. Cada passo parecia uma dança com o desconhecido, e as pessoas ao redor, outrora distantes e envoltas em suas rotinas, agora eram parte de um grande espetáculo onde ele também tinha um papel, embora não soubesse exatamente qual.

No entanto, o relógio de bolso que o velho lhe dera ainda pesava em seu bolso, como um lembrete de que a realidade estava sempre à beira de se dobrar em novas dimensões. Ao pegá-lo mais uma vez, notou que o tempo dentro do relógio não se movia de forma linear. As horas se sobrepunham, os minutos dançavam em círculos, e os segundos se estendiam como um eco. Ele percebeu que o objeto era uma espécie de portal, um acesso a momentos que não haviam sido e a outros que talvez nunca fossem, mas todos coexistindo de alguma forma, como notas dissonantes em uma sinfonia incompreendida.

Enquanto andava pela Rua das Revelações, onde os muros eram cobertos de grafites que pareciam respirar, Notou uma figura familiar ao longe. Era uma mulher com um véu branco, quase etéreo, que se misturava com a bruma matinal. Ela estava parada diante de uma vitrine que refletia não os objetos do interior da loja, mas cenas do próprio passado dele, momentos de silêncio, de solidão, de profunda desconexão.

Intrigado, ele se aproximou, e a mulher virou-se para ele, revelando um rosto que era ao mesmo tempo familiar e desconhecido, como um reflexo distorcido de suas próprias memórias. “Você veio buscar respostas?”, ela perguntou, com uma voz que parecia vir de um lugar distante, como o eco de um sonho.

Hesitou, não sabia exatamente o que procurava. Mas algo o impulsionava a seguir adiante. “Procuro… uma forma de entender o que sinto, de me reconectar com algo que talvez nem exista.”

A mulher sorriu, um sorriso triste e compreensivo. “O que você procura não está fora, mas dentro de você. Esse relógio,” ela apontou para o bolso onde guardava o objeto, “é uma metáfora para o seu próprio tempo interior. Não precisa ser entendido, apenas vivido.”

Antes que ele pudesse responder, a mulher se dissolveu na neblina, e ficou sozinho diante da vitrine, que agora refletia apenas seu próprio rosto. Ele sentiu uma onda de compreensão, não exatamente de respostas, mas de aceitação. Talvez a alienação que sentia fosse uma parte necessária de sua jornada, uma etapa que o ajudava a ver o mundo de uma maneira que outros não podiam.

Com essa nova percepção, Decidiu que não tentaria mais combater o sentimento de estar fora de sintonia. O abraçaria, dançaria com ele, exploraria as profundezas do surreal que o cercava e, quem sabe, encontraria um novo ritmo no qual pudesse se encaixar, não como uma peça que faltava, mas como uma nota única em uma melodia sempre em mudança.

E assim, ele continuou a caminhar pela cidade, agora mais em paz com sua condição. As sombras das árvores continuavam a murmurar, os relógios continuavam a marcar horas impossíveis, e as pessoas ao seu redor continuavam suas vidas normais. Mas sabia que, em algum nível, ele havia se reconectado com uma parte de si mesmo que estava além do entendimento racional, um lugar onde a alienação se tornava liberdade e o surreal, a verdadeira realidade.

Caminhava agora com uma nova serenidade, ciente de que a alienação que antes o incomodava havia se transformado em um portal para o inexplicável. Ele compreendeu que a desconexão, longe de ser um fardo, era um convite para explorar territórios internos que outros jamais ousariam pisar. A cidade, antes uma colcha de retalhos de realidades dissonantes, agora pulsava em harmonia com sua própria batida interior, mesmo que essa batida fosse irregular e sem lógica aparente.

Com o passar dos dias, notou que a fissura que o havia sugado para o deserto surreal não era um ponto único na sua vida, mas o início de várias outras rachaduras sutis na sua percepção. E essas rachaduras, longe de o alarmar, o preenchiam com uma sensação de maravilha e descoberta. O relógio de bolso, guardado como um talismã, tornou-se um lembrete constante de que o tempo, assim como a realidade, era maleável, uma dança contínua entre o possível e o impossível.

Em uma manhã qualquer, enquanto o sol nascia sobre os edifícios de concreto que pareciam se estender até o infinito, parou em uma ponte sobre o rio que cortava a cidade. Observou a água correndo abaixo, refletindo o céu em cores que variavam de acordo com o humor do dia. Sentiu, por um breve momento, uma profunda conexão com tudo ao seu redor, como se ele próprio fosse parte do fluxo incessante do universo, em perfeita sincronia com a correnteza.

Respirou fundo, fechou os olhos e soltou o relógio no rio. Observou-o afundar lentamente, girando como se ainda estivesse tentando medir o tempo impossível daquele lugar. Sorriu, sentindo-se finalmente livre. Sabia que não precisava mais de talismãs ou respostas definitivas. A alienação havia se tornado sua aliada, uma lente pela qual ele podia enxergar o mundo com a profundidade que outros não viam.

E assim, com um passo leve, seguiu em frente. Não sabia onde a estrada o levaria, mas isso não importava. O que importava era a jornada em si, a contínua descoberta do que significava existir em um mundo que desafiava todas as convenções. E, em sua nova realidade, a beleza estava precisamente no fato de que ela não precisava fazer sentido.

A cidade, em sua dança surreal, o acolheu como um filho pródigo que finalmente havia encontrado seu lugar, não em algum destino final, mas no próprio ato de caminhar. E com isso, desapareceu na neblina, não como alguém perdido, mas como alguém que havia, finalmente, se encontrado.

Renato Pittas   

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