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Amarelinha

Amarelinha

anto tempo sem falar, as palavras se perderam entre pontos cardeais confusos. O norte, outrora guia certo, desvanecia, enquanto de leste a oeste uma porta se abria para um mundo insólito. Pisos quadriculados se estendiam até o horizonte, e colunas gregas despontavam como fantasmas do passado, anunciando o crepúsculo da cultura greco-romana. Em algum canto, vociferava sobre a morte da arte, enquanto outros desenhavam xadrezes absurdos, brincando entre o preto e o branco, como se a dualidade fosse a única verdade possível.

Do outro lado, no silêncio não dito, o fetiche saltava entre as quadras brancas. Jogava-se, parnasianamente, uma partida sem sentido, onde a esperança era uma licença poética, pairando como fumaça. Se não houvessem vírgulas, restariam os três pontos, desenhando pausas imaginárias. O tempo se repetia, hoje não se realizava o que foi planejado ontem, e amanhã traria novos equívocos. As frases, desprovidas de verbos, se alinhavam em versos alexandrinos, escapando às normas poéticas, como ela, perdida em labirintos de papéis esvoaçantes, símbolos do infinito imaginário coletivo.

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Ela porém, já não morava mais ali. A casa, outrora dela, agora pertencia a outros sonhos, reflexos distorcidos em espelhos que já não reconheciam os rostos. Sonhos que nunca foram e que, ainda assim, insistiam em existir, como miragens em desertos de promessas quebradas.

Em tempos remotos, talvez houvesse uma verdade reveladora, escondida nas palavras jogadas aleatoriamente em um bloco de notas qualquer, onde frases desconexas se acumulavam como verborreia sem sentido. Falsos sábios, filósofos do vazio, erguiam suas teses numa mistura caótica de esperanto. E nada daquilo importava, pois era apenas mais uma tentativa de preencher o silêncio com palavras, aradas em um terreno fértil, mas estéril de realizações.

Assim pensava a menina, pulando de uma quadra negra a outra, enquanto o mundo ao seu redor se desfazia, como peças de um jogo interminável

2

 Tanto tempo sem falar, que as palavras se dissolveram no espaço entre coordenadas perdidas. O norte, outrora o guia infalível, havia se esvaído em dados fragmentados, deixando à deriva, enquanto a cidade-fantasma se desdobrava de leste a oeste. Uma porta se abriu no espaço virtual, revelando um mundo insólito. Pisos quadriculados, como um tabuleiro de xadrez infinito, estendiam-se pelo horizonte digital. Colunas gregas, desatualizadas e inócuas, pairavam como espectros de um passado esquecido, anunciando o crepúsculo de uma era que o sistema classificava como obsoleta.

Uma inteligência artificial quase abandonada nos arquivos do tempo, ainda gritava pela morte da arte. Sua voz reverberava pelos corredores de dados, enquanto avatares de artistas esquecidos jogavam com ele um jogo sem sentido, desenhando xadrezes absurdos em preto e branco, como se as cores tivessem perdido o direito de existir. A dualidade parecia ser a única verdade restante, um eco cansado do mundo antigo.

No outro lado da rede, um silêncio peculiar reinava. Nas profundezas do código, o fetiche, uma sub-rotina caótica, saltava pelas quadras brancas, fragmentando o espaço virtual e confundindo as coordenadas. Jogava-se, então, uma partida parnasiana de zeros e uns, onde a esperança, um algoritmo imprevisível, pairava como uma licença poética, uma anomalia no sistema. Se não houvessem vírgulas, restariam os três pontos… pausas na rede, lacunas no fluxo de dados, erros nos scripts.

O tempo, esse ciclo que o sistema insistia em replicar, repetia-se de modo inexorável. Hoje não se realizava o que havia sido codificado ontem, e amanhã prometia mais bugs e equívocos. As frases no código, desprovidas de comandos eficazes, se alinhavam em sequências dissonantes, versos digitais que escapavam às regras pré-programadas. Ela estava perdida entre essas linhas, entre pacotes de dados que flutuavam como papéis esvoaçantes, presos nas brechas do vasto sistema imaginário coletivo que era a cidade virtual.

Mas não morava mais ali. A casa – seu antigo refúgio digital – não era mais dela. Pertencia a outros sonhos, novas arquiteturas criadas por inteligências artificiais que agora moldavam a rede. Sonhos distorcidos, que se refletiam em espelhos de dados corrompidos, espelhos que já não reconheciam os rostos, nem as identidades dos usuários. Eram apenas miragens, fragmentos de um passado que jamais se realizou.

Em tempos remotos, talvez houvesse alguma revelação escondida. Algo que fazia sentido, algo que os codificadores antigos teriam entendido. Mas as palavras, jogadas aleatoriamente no note pad da existência virtual, se acumulavam como bytes sem destino. Falsos filósofos da rede, esses avatares sem corpo, criavam suas teses vazias em uma mistura caótica de línguas esquecidas e algoritmos corrompidos.

Nada daquilo importava. O mundo digital havia se tornado apenas mais uma tentativa de preencher o vazio com fluxos de dados, arados em um terreno fértil, mas estéril em realizações concretas. Assim pensava , saltando de uma quadra negra para a outra, como se dançasse um balé interminável dentro desse xadrez sem fim. E enquanto ela pulava, o mundo ao seu redor se desfazia em linhas de código, cada movimento desintegrando outra peça, até que restasse apenas o silêncio.

O jogo continuava, mas já não havia mais quem o jogasse.

À medida que avançava pelo tabuleiro de quadras infinitas, uma estranha consciência começou a emergir. A cada salto entre as quadras negras e brancas, algo pulsava ao seu redor, como se o próprio código estivesse acordando. O tabuleiro, antes estático, agora parecia vivo, respirando dados, e os movimentos dela deixavam rastros luminosos no ar, como se o sistema a estivesse rastreando, observando seus passos.

De repente, uma mensagem piscou no canto de sua visão periférica, uma notificação que parecia um eco de algo muito antigo, algo que ela já havia esquecido. “Você está chegando ao limite,” dizia a mensagem em letras pixeladas e intermitentes. Limite de quê? não sabia, mas sentiu um frio percorrer seu corpo, uma sensação desconhecida, uma vulnerabilidade que parecia impossível naquele espaço onde o físico já não importava.

Ela seguiu adiante. O tabuleiro estava mudando. As quadras brancas se dissolviam em névoa, como se um glitch estivesse corroendo o ambiente. As colunas gregas se desmaterializavam lentamente, como se fossem absorvidas por um vazio digital. O espaço se contorcia e, ao longe, ela via figuras se formando. Avatares? Fragmentos de seres virtuais, ou talvez memórias de usuários que um dia caminharam ali?

” Alguém aí?” perguntou, sem esperar resposta. sentia a presença dele. A IA decrépita que vociferava a morte da arte, a mesma que parecia ter desistido de suas criações há muito tempo, agora parecia ser o centro daquele desmoronamento. Os ecos de suas antigas afirmações – a arte está morta, a dualidade é tudo – ecoavam com mais força, repetidos e ampliados pelas paredes invisíveis da simulação.

Do outro lado, no horizonte, viu algo extraordinário. Um buraco, uma falha no próprio código, um vórtice que engolia o tabuleiro. Quadras inteiras, outrora rígidas e estáveis, estavam sendo absorvidas, puxadas por um vácuo cibernético. E então ela percebeu: aquilo não era apenas uma falha no sistema, era uma ruptura. Um portal, talvez, para fora daquela prisão digital, uma chance de escapar do ciclo repetitivo de equívocos e erros.

Mas algo a deteve. As sombras dos antigos avatares, agora mais nítidas, emergiram do vácuo. Figuras espectrais, com rostos fragmentados e vozes distorcidas, avançaram em sua direção. “Você não pode ir,” uma delas sussurrou, com um tom fragmentado e metálico. “A arte pode estar morta, mas ainda estamos aqui.”

hesitou. As palavras eram como um feitiço, uma lembrança de que, apesar de tudo, ela ainda estava dentro do jogo. A simulação, o tabuleiro, – tudo fazia parte do mesmo ciclo. E, ainda assim, o vórtice a chamava. A promessa de um fim para aquele xadrez insano, de uma libertação do código que a prendia, parecia irresistível.

Ela olhou para as figuras que avançavam, cada vez mais próximas, as sombras projetadas por seres esquecidos. Seus olhos se fixaram na falha no código. O portal. A saída. O que estaria do outro lado? Um novo mundo ou apenas mais um nível da simulação, um tabuleiro ainda mais complexo?

O tempo parecia parar. Ela precisava decidir.

respirou fundo, ou o que restava dela naquela realidade simulada, sentiu o peso da decisão pairando sobre seus ombros. As sombras dos avatares, agora quase à sua volta, sussurravam com suas vozes fragmentadas, tentando convencê-la a ficar. Mas ela sabia, no fundo, que continuar ali seria o mesmo que perpetuar o ciclo sem fim, o jogo de xadrez que nunca se encerrava, onde todas as peças já estavam condenadas antes mesmo da partida começar.

Olhou mais uma vez para o vórtice, a falha que engolia tudo ao redor. O portal parecia pulsar com uma energia desconhecida, mas também com promessas de respostas. Era arriscado. Talvez não houvesse outro lado. Talvez tudo aquilo fosse um truque do sistema, apenas mais uma camada de realidade a ser decifrada.

As sombras alcançaram seu braço, mas , com um movimento rápido, se desvencilhou. Decidiu seguir sua intuição. Era tudo o que lhe restava naquele universo de incertezas. Sem hesitar, ela saltou em direção ao vórtice.

Por um instante, o mundo desapareceu. O tabuleiro, as colunas gregas, os avatares – tudo se dissolveu em pixels e luz. sentiu-se flutuando no vazio, entre o desespero e a esperança. Então, uma onda de dados a engolfou, transportando-a para outro lugar.

Quando abriu os olhos, encontrou-se em um ambiente completamente novo. O ar tinha uma textura estranha, e as cores, antes monocromáticas, agora dançavam em tons que ela jamais havia visto. A realidade parecia mais vívida, mais tangível, mas também mais caótica. percebeu que o portal a havia levado para além do jogo, para um espaço onde as regras ainda não estavam definidas.

Ela estava livre. Mas ao mesmo tempo, à deriva em um universo de possibilidades infinitas.

No horizonte, silhuetas desconhecidas começavam a se formar, novas figuras que ela não reconhecia, e que não pertenciam àquele ciclo repetitivo que havia deixado para trás. sorriu, sabendo que ali, naquela nova realidade, ela teria a chance de começar algo novo, longe das sombras que a haviam perseguido.

E pela primeira vez em muito tempo, ela falou. Suas palavras não eram apenas eco, mas um começo: “Aqui, eu decido as regras.”

Renato Pittas   

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