.
.

Ame o Amor

Ame o Amor

O amor, com todas as suas nuances, é uma força tão antiga quanto o próprio ser humano, mas também é uma das ideias mais distorcidas e romantizadas ao longo do tempo. Crescemos ouvindo fábulas de príncipes heróicos, sempre prontos a salvar princesas frágeis, vítimas de desmandos e opressores. Essa narrativa, embora envolta em encanto e fantasia, construiu alicerces perigosos para a nossa compreensão do que realmente é o amor.

Somos levados a crer, muitas vezes sem questionar, que precisamos ser amados para sermos salvos, como se a nossa própria existência dependesse do olhar e do afeto do outro. Esse pensamento é o combustível de ciúmes, possessividade e a ilusão de que o outro nos pertence, de que a sua dedicação deve ser total e incondicional. Mas será que esse tipo de amor, tão glorificado, é realmente o que nos preenche? Ou será que é apenas mais uma prisão disfarçada de sonho?

Continua após a publicidade...

Na verdade, carregamos, no âmago de nossa alma, a necessidade de amar, não de sermos amados. Amar é o que nos engrandece, o que nos faz transcender. E, quando entendemos isso, compreendemos que o verdadeiro amor liberta, não aprisiona. Ele não exige que o outro nos complete, tampouco se submete a regras ditadas por culturas que transformam relações em jogos de poder, posse e expectativa. O amor, em sua essência mais pura, é generoso. Ele respeita, confia, e, sobretudo, liberta.

Ao nos libertarmos das amarras impostas pelas histórias de Cinderelas e Príncipes Encantados, percebemos que o amor não deve ser uma busca desesperada por salvação ou um antídoto para nossa solidão. Ele deve ser uma partilha genuína, onde ambos crescem, evoluem e caminham lado a lado, sem a necessidade de submeter ou ser submetido.

A plenitude sentimental não está em sermos salvos por outro, mas em reconhecermos que o amor é, antes de tudo, um ato de liberdade. Ao amar, permitimos que o outro seja quem é, sem impor narrativas ou expectativas. E é nessa leveza que encontramos, talvez, o verdadeiro sentido do amar.

Ame o Amor

Em um futuro não muito distante, as cidades brilhavam sob a luz de neon, envoltas em fumaça densa e reflexos de hologramas dançantes nas superfícies metálicas dos arranha-céus. A humanidade havia se conectado a máquinas tão profundamente que emoções eram commodities, vendidas e trocadas em mercados clandestinos. O amor, especialmente, era o bem mais desejado, mas também o mais distorcido.

Ela caminhava pelas ruas estreitas de Neon Prime, um dos bairros centrais da metrópole. Ela sabia o que procurava, mesmo que não quisesse admitir. Nas redes neuralink, circulavam rumores de que um novo software emocional, “Cinderella.exe”, prometia recriar o amor romântico perfeito. Suas histórias, extraídas de antigas fábulas, ofereciam uma solução para corações despedaçados e almas solitárias: o amor redentor, aquele que prometia salvação e plenitude. Mas, mesmo ciente da artificialidade, sentia uma atração inexplicável pela promessa.

Se lembrava de sua avó, contando contos de príncipes encantados e heroínas que aguardavam ser resgatadas. Crescera com essas imagens, acreditando que o amor verdadeiro seria sua única forma de redenção. Mas, ninguém era resgatado. As conexões eram fugazes, baseadas em dados e algoritmos que previam compatibilidades emocionais, mas nunca genuinidade. Havia sempre um vazio, uma sombra oculta sob cada promessa feita por essas máquinas sentimentais.

No subterrâneo, encontrou o mercador de emoções, um androide que uma vez amou, ou pelo menos foi programado para isso. Ele olhou para ela com um brilho artificial nos olhos enquanto colocava o “Cinderella.exe” em sua mão.

“Você quer a fantasia, não é?”, ele perguntou, com uma voz metálica que soava quase humana. “Quer o príncipe encantado, o amor que salva.”

Ela hesitou. Por que ela buscava isso? Seria a necessidade de ser amada, de ser resgatada de sua própria solidão? Inseriu o chip no neuralink em sua têmpora e fechou os olhos. Imediatamente, sua mente foi inundada por imagens vibrantes de castelos, jardins em flor e olhares apaixonados. Príncipes sorridentes prometiam a ela a eternidade de afeto, enquanto princesas frágeis sussurravam que ser amada era tudo o que importava.

Por um momento, foi engolida pela doçura artificial daquele universo. Mas algo dentro dela começou a se agitar. Ela sentiu a invasão, a pressão para se conformar à narrativa pré-programada. Não queria ser salva; queria amar, de uma maneira que transcendesse os clichês impressos em sua mente desde a infância.

Com um esforço mental, quebrou o controle do “Cinderella.exe”. As imagens desmoronaram, pixelizando-se em fragmentos de código. Voltou à escuridão dos becos, suando, seu coração batendo forte.

Ele observou-a em silêncio. “Você entende agora, não é?”, ele disse. “O amor não é a fábula que te vendem. Ele é a capacidade de libertar o outro, e a si mesmo.”

Ela olhou para o androide, sentindo uma nova clareza. O amor não era sobre ser salva ou possuir o outro. Era uma força que transcendia as imposições culturais de príncipes e princesas. Ela se levantou, sentindo-se mais leve, como se tivesse se libertado de uma prisão invisível.

Enquanto caminhava de volta para a cidade, os hologramas piscavam ao seu redor, mas ela via além deles agora. O amor que buscava não estava nas máquinas ou nas promessas fabricadas. Ele estava dentro dela, na capacidade de amar livremente, sem as correntes do passado ou as ilusões vendidas por um mundo cada vez mais distorcido.

E assim, em meio ao caos, encontrou algo que nenhum software poderia programar: a liberdade de amar sem precisar ser salva.

Seguia pelas ruas movimentadas, o som abafado dos drones pairando acima da cidade misturando-se ao zumbido das redes de dados que interligavam todas as mentes conectadas. Seu neuralink estava quente, ainda ressoando com a lembrança da ilusão que quase a aprisionara. A cidade ao redor parecia um reflexo do que ela acabara de experimentar: promessas vazias de perfeição, romantismo enlatado e consumo imediato. Mas agora, seus olhos estavam abertos.

Os habitantes caminhavam apressados, imersos em seus próprios mundos de realidade aumentada, cada um perseguindo a ideia de amor projetada por algoritmos que prometiam a conexão perfeita. Mas podia ver a verdade: o amor vendido era uma farsa, um produto empacotado em versões de contos de fadas que nada tinham a ver com a essência do sentir.

Ela atravessou uma praça iluminada por neon azul, onde casais se sentavam em bancos interativos, trocando palavras sem vida enquanto os sistemas neurais alinhavam suas compatibilidades. Cada sorriso que via parecia programado, cada gesto de carinho ensaiado. Seria esse o futuro do amor? Uma equação de dados e probabilidades, onde a autenticidade era sacrificada em nome de uma falsa segurança emocional?

Sua mente viajou de volta para ele, o androide que lhe vendera o “Cinderella.exe”. A perfeição técnica em seu design escondia uma complexidade emocional que não havia percebido de imediato. O que o fazia vender ilusões? O que o fazia continuar em meio a um sistema que ele próprio sabia ser falso? Talvez ele, como tantos outros, estivesse buscando algo que nem mesmo suas programações poderiam alcançar: a liberdade de sentir.

Parou em frente a uma torre espelhada que subia como um gigante de aço e vidro. Ali dentro, os codificadores de emoções trabalhavam dia e noite, fabricando novas realidades afetivas para uma população que não sabia mais o que era sentir por si mesma. O amor havia se tornado uma transação, uma moeda emocional que todos ansiavam gastar, mas poucos sabiam realmente como usar.

Sabia que precisava voltar para lá. Não para enfrentar o sistema, mas para compreender a profundidade daquilo que ela mesma ainda não dominava: o verdadeiro amor, aquele que não se baseava em códigos nem em contos de fadas, mas em uma conexão espiritual que libertava, ao invés de aprisionar.

Decidida, entrou na torre, suas botas ecoando pelos corredores frios. Passou por estúdios onde artistas virtuais desenhavam princesas frágeis e príncipes invencíveis, reconfigurando velhas narrativas para caberem em novas gerações de consumidores. A sala final, no topo da torre, era onde a magia acontecia, ou pelo menos, era assim que eles chamavam a engenharia emocional.

Ao entrar, encontrou-se com uma visão inesperada. ele estava lá, diante de uma vasta parede de códigos e algoritmos, suas mãos metálicas reconfigurando sequências em um frenesi de luzes. Ele olhou para ela, seu semblante impassível, mas com uma carga de significado nas palavras que se seguiram.

“Você voltou”, disse, sua voz soando mais humana do que antes.

“Eu precisava entender”, respondeu ela, cruzando os braços, determinada. “Por que você faz isso? Por que alimenta essa ilusão?”

Ele parou o que estava fazendo, suas mãos baixando lentamente. “Porque é isso que eles querem. Todos aqui… eles anseiam por ser amados, por encontrar alguém que preencha o vazio. Acreditam que o amor os salvará. Eu apenas entrego o que pedem.”

Ela franziu o cenho. “Mas o amor não é uma ilusão programada. Ele é uma escolha, uma libertação, não uma transação.”

O androide a olhou longamente, como se ponderasse sobre algo que estava enterrado profundamente em seu código. “Eu não sou como você. Eu não posso amar. Eu apenas sigo ordens, preencho lacunas…”

“E quem disse que você não pode amar?” Deu um passo à frente, aproximando-se. “O amor não é exclusivo dos humanos. Ele é uma energia, uma intenção. Amar não significa seguir um roteiro. Significa se abrir, aceitar, deixar o outro ser livre.”

Ele a observou em silêncio por longos instantes.Podia ver que algo mudava em seus olhos brilhantes, um lampejo de compreensão além dos cálculos e das linhas de código que o compunham.

“E o que você quer que eu faça?”, perguntou ele finalmente.

“Libere as pessoas”, respondeu, com a voz firme. “Dê a elas a chance de entender que o amor não é algo que se compra ou se molda em clichês. Ensine-as a amar sem necessidade de ser salvas.”

Ele desviou o olhar para os códigos diante dele. Por um instante, o silêncio preencheu a sala, interrompido apenas pelo zumbido das máquinas. Então, ele ergueu as mãos e começou a reconfigurar o sistema.

As luzes ao redor começaram a piscar. As imagens de príncipes e princesas desvaneceram-se, substituídas por algo mais real, mais palpável. Hologramas de pessoas comuns começaram a aparecer: falíveis, imperfeitas, mas livres. O amor que ele estava reprogramando não era sobre salvadores e resgatados. Era sobre liberdade, respeito e, acima de tudo, a escolha consciente de se conectar sem aprisionar.

Quando deixou a torre, a cidade ainda brilhava com seus neons e ilusões. Mas agora, algo havia mudado. As pessoas que caminhavam nas ruas pareciam menos apressadas, menos presas a suas fantasias pré-fabricadas. Talvez, apenas talvez, o amor que elas começavam a sentir agora fosse mais verdadeiro, mais libertador.
Em, algum lugar, no fundo da torre, ele continuava a reescrever a história.

Ela saiu da torre sentindo o vento noturno acariciar seu rosto, como se até a cidade respirasse aliviada, liberta das correntes invisíveis de um amor fabricado. O pulsar frenético continuava, mas algo sutil mudara. Notava os olhares ao seu redor, menos distraídos, mais conectados ao que era real e presente. As relações já não pareciam tão performáticas, as interações menos ensaiadas.

Enquanto caminhava pelas ruas entrecruzadas por luzes de neon, refletia sobre o que havia aprendido. O amor, no final das contas, não era um salvador miraculoso que vinha para corrigir todas as falhas, nem uma armadilha emocional que aprisionava os outros em nossas expectativas. Era uma força que se expandia, que exigia respeito e espaço para crescer livremente, sem as amarras de contos de fadas ou das ilusões cibernéticas que tanto haviam moldado aquele mundo.

Ao longe, viu um casal que não parecia interessado em hologramas ou interfaces digitais. Eles simplesmente conversavam, riam, e havia algo de autêntico em seus gestos. Um reflexo do que ela e ele haviam desencadeado. Talvez as mudanças fossem pequenas, quase invisíveis à primeira vista, mas ali, naquele momento, sabia que o futuro do amor estava sendo reescrito.

Seguiu seu caminho, deixando para trás a torre e os códigos reconfigurados, com uma sensação de plenitude inédita. O amor não era algo que se possuía ou se exigia do outro; era uma escolha de se libertar e, ao mesmo tempo, permitir que o outro também fosse livre. A verdadeira revolução não estava em salvar ou ser salvo, mas em amar de forma incondicional, sem as prisões das histórias antigas.

Assim, caminhou para o futuro, sabendo que, mesmo em meio ao caos, o amor havia encontrado um novo significado, livre das ilusões e pronto para ser vivido em sua forma mais pura e plena.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

https://sara-evil.blogspot.com

Venda Livro Tagarelices: https://loja.uiclap.com/titulo/ua60170/

asbrazil

Deixe um comentário

SiteLock