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Andando nas sombras

Andando nas sombras

Caminhava pelas ruas da cidade como quem atravessa um sonho quebrado, cada esquina um eco distorcido de lembranças que não eram suas, mas que o seguiam como sombras. Era apenas um desconhecido, navegando entre fragmentos de vidas que mal compreendia, um errante em um mar de memórias alheias. O concreto, úmido e frio, ressoava sob seus pés, vibrando com um pulsar que ele sentia nas entranhas, como se cada passo fosse uma tentativa de captar a essência de um real que parecia escapar-lhe por entre os dedos.

Os prédios ao redor pareciam derreter sob o peso de histórias não contadas, suas fachadas ondulando em um ritmo anárquico, desafiando as leis da física que ele outrora conhecera. As janelas não refletiam o mundo exterior, mas abismos de vácuos emocionais, vazios que o olhavam de volta com um desdém silencioso. Ele sabia que o que via não era a verdade, mas uma verdade, uma versão distorcida de um passado que se recusava a ser esquecido, mesmo que nunca houvesse sido vivido por ele.

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As emoções que sentia vinham em ondas, baratas e artificiais, como melodias de uma canção tocada em uma fita desgastada, lembranças de um tempo que ele não podia alcançar, mas que o envolvia em uma névoa densa. Às vezes, elas pareciam próximas, como se fossem reais, mas quando ele tentava segurá-las, se desvaneciam como fumaça, deixando apenas o vazio e a frustração de não ter compreendido.

As ruas, cada vez mais irreais, esticavam-se diante dele em uma perspectiva impossível, como se o mundo estivesse dobrando sobre si mesmo, e ele era forçado a navegar por entre as dobras de uma realidade que não mais seguia as regras que conhecia. Mas, mesmo assim, continuava, porque era o que restava a fazer, continuar caminhando por entre memórias que não eram suas, buscando sentido em um real que nunca poderia entender completamente.

Assim, ele seguiu, um desconhecido em um mundo que se desdobrava diante de seus olhos, um marinheiro em um mar de vácuos emocionais e lembranças desbotadas, esperando, talvez, encontrar um porto que jamais existiu.

A cada passo, sentia o chão se deformar sob seus pés, como se a cidade estivesse viva, pulsando em sintonia com as batidas de um coração que ele não conseguia localizar. As ruas agora serpenteavam como rios de concreto, levando-o por caminhos que não faziam sentido, mas que, paradoxalmente, pareciam familiares. Era como se ele estivesse retornando a um lugar que nunca visitara, mas cujas marcas estavam impressas em sua mente, fragmentos de um quebra-cabeça cuja imagem final permanecia oculta.

As pessoas que cruzavam seu caminho eram meros borrões, espectros de uma realidade que ele já não reconhecia. Seus rostos eram máscaras sem expressão, recortes de uma revista antiga colados sobre manequins que passavam por ele sem deixar vestígios, como se a cidade estivesse povoada por fantasmas que não sabiam que estavam mortos. Cada olhar que lançava sobre eles era devolvido com indiferença, ou talvez com uma compreensão que ele não conseguia alcançar, uma percepção do absurdo que ele próprio se recusava a aceitar.

Era impossível determinar quanto tempo ele havia vagado por essas ruas que se estendiam e se dobravam, misturando-se em uma topografia mental onde passado e presente se fundiam em um contínuo delirante. A noção de tempo havia se tornado irrelevante, como se o próprio conceito estivesse se despedaçando diante da vastidão de sua ignorância. E, no entanto, ele não conseguia deixar de sentir que estava à beira de uma revelação, uma compreensão que poderia iluminar os vácuos que atravessava.

Ao dobrar uma esquina, encontrou-se diante de um edifício que parecia respirar, suas paredes inflando e desinflando em um ritmo que o hipnotizava. As janelas eram olhos que o observavam, e a porta, uma boca que parecia prestes a pronunciar segredos que ele não sabia se estava pronto para ouvir. Sentiu uma necessidade quase irresistível de entrar, de descobrir o que se escondia atrás daquela fachada pulsante. Mas algo o deteve, uma hesitação inexplicável, como se soubesse que cruzar aquele limiar seria abandonar toda a segurança do desconhecido.

No entanto, a atração era forte demais, e antes que pudesse resistir, a porta se abriu por conta própria, convidando-o a entrar em um espaço que parecia existir fora do tempo e do espaço. O interior era um labirinto de corredores que se estendiam infinitamente, suas paredes cobertas de espelhos que refletiam não apenas sua imagem, mas cenas de vidas que ele não reconhecia. Cada passo ecoava pelo corredor, reverberando como um sussurro que parecia se aproximar dele, trazendo consigo fragmentos de palavras, frases sem sentido que, mesmo assim, ressoavam com uma verdade que ele não conseguia ignorar.

E então, ele percebeu que não estava sozinho. Figuras emergiam das paredes, sombras indistintas que se aproximavam, observando-o com uma intensidade que o fazia estremecer. Eram os habitantes dessas memórias alheias, os guardiões do real que ele se esforçava por compreender. Eles não falavam, mas suas presenças eram eloquentes, carregadas de uma sabedoria que ele não podia alcançar, mas que o envolvia em uma sensação de inquietação profunda.

Sabia que estava à beira de descobrir algo, mas também compreendia que essa descoberta poderia desmoronar o frágil equilíbrio de sua percepção. As sombras começaram a se mover em torno dele, como se estivessem esperando por uma decisão que ele ainda não havia tomado. Cada uma delas representava uma possibilidade, um caminho que ele poderia seguir, mas todos levavam a um destino incerto, onde o conhecido e o desconhecido se entrelaçavam de forma inseparável.

O ar ao seu redor parecia vibrar com a tensão de escolhas não feitas, enquanto ele se mantinha imóvel, hesitando entre avançar e recuar. Mas antes que pudesse decidir, o som de uma gargalhada distante cortou o ar, reverberando pelas paredes do labirinto. Era uma risada fria e sem humor, que parecia zombar de sua indecisão, sugerindo que, talvez, não houvesse escolha a ser feita. Talvez tudo já estivesse predeterminado, um ciclo infinito de tentativa e erro, onde o significado e o vazio se alternavam, sem nunca realmente se resolverem.

Assim, ficou, parado no meio do labirinto, cercado por sombras e espelhos, esperando por uma revelação que nunca viria, navegando eternamente por um mar de memórias que nunca poderia chamar de suas.

As sombras continuavam a cercá-lo, como se o labirinto estivesse vivo, respirando ao ritmo de suas indecisões. A risada distante ecoava repetidamente, transformando-se em um ruído contínuo, uma cacofonia que parecia abalar as próprias fundações da realidade ao seu redor. Ele sentia o peso do tempo, ou da ausência dele, como uma pressão invisível que o empurrava para a frente, mas algo ainda o mantinha preso naquele limiar entre o real e o irreal, entre o possível e o impossível.

Finalmente, ele deu um passo à frente, decidido a confrontar o que quer que estivesse à sua espera. A porta à sua frente, que antes parecia uma entrada para o desconhecido, agora se abriu como um convite inevitável. Ao cruzá-la, encontrou-se em uma vasta sala iluminada por uma luz suave e difusa, onde não havia sombras, mas apenas um vazio acolhedor.

No centro da sala, uma mesa simples de madeira estava posta com um único livro. Ao se aproximar, ele percebeu que as páginas estavam em branco, exceto por uma frase inscrita no centro da primeira página: “Tudo que é real é uma interpretação, e tudo que não compreendemos, uma oportunidade de criação.”

Ao ler a frase, algo dentro dele se soltou. A risada distante cessou, as paredes do labirinto começaram a se desfazer, e a sala ao seu redor foi engolida por um brilho dourado. Ele percebeu que a resposta que tanto buscava não estava no exterior, mas dentro de si, nas escolhas que ele fazia a cada instante, nas memórias que ele decidia carregar e nas que ele escolhia deixar para trás.

O brilho se intensificou até que ele foi completamente envolto por uma luz cálida e tranquilizadora. Ele fechou os olhos, sentindo-se flutuar em meio àquele calor reconfortante, e quando os abriu novamente, estava de volta à cidade, mas agora as ruas eram claras, definidas, e os vultos das pessoas tinham rostos e propósitos.

Era, finalmente, parte daquele mundo, mas não mais um desconhecido. Havia encontrado sua própria interpretação do real, e com ela, um sentido para sua existência.

Com um último olhar para trás, em direção ao labirinto que agora era apenas uma lembrança distante, sorriu, sabendo que, mesmo que o caminho à sua frente fosse incerto, sempre teria a capacidade de criar, de transformar o incompreensível em algo novo, e de navegar por esse mar infinito com a convicção de que, no final, o real era aquilo que ele escolhesse compreender.

Assim, seguiu em frente, deixando o passado para trás, pronto para descobrir o que mais o aguardava além das curvas daquela cidade que agora ele podia, finalmente, chamar de sua.

Renato Pittas   

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