Apito de Cachorro
As paredes da cidade erguiam-se como monólitos abstratos, as sombras alongando-se e entrelaçando-se em um balé de geometrias impossíveis. Cada edifício parecia desafiar a lógica, sustentado por cálculos que flutuavam no limiar entre o real e o imaginário. A malha urbana, um labirinto de concreto e aço, era o produto de uma aliança insólita: visionários que sonhavam com o divino e calculistas que reduziam esses sonhos a números, enquanto empreendedores velhacos convertiam esses devaneios em lucros instantâneos.
Caminhando pelas ruas, vê as estruturas que são mais do que simples prédios; são milagres petrificados, portais para outras realidades disfarçados de arquitetura funcional. A cada esquina, a cidade revela um novo mistério, um novo ângulo de sua natureza multifacetada. Passando de um ponto ao outro, a realidade parece se fragmentar, como se cada movimento seu fosse capaz de redefinir a forma das coisas.
Em meio a esse cenário, pessoas transitam como atores em uma peça sem roteiro. Suas roupas, uma miscelânea de modas e épocas, refletem a diversidade caótica da cidade. Alguns caminham apressados, seus rostos iluminados pelas telas dobráveis dos celulares, como se buscassem respostas em suas superfícies lisas e sensíveis ao toque. Outros, de mãos dadas, sussurram palavras de amor que se dissolvem no ar, enquanto os mais distraídos olham para seus relógios smarts, insensíveis à passagem do tempo.
Observa a panaceia arquitetônica ao seu redor, um teatro urbano onde cada elemento, por mais mundano que seja, carrega a promessa de algo além do visível. Ao dobrar uma esquina, o cheiro de salsichão na brasa invade seus sentidos, ancorando-o brevemente no presente. É frente a uma estação de trem, um portal para novos destinos ou um retorno ao mesmo ponto de partida, onde a fantasia urbana se entrelaça com a realidade.
E então, sem aviso, sente a mudança. A direção antes clara agora se torna nebulosa. O desejo de encontrar um destino específico se transforma em um impulso de se perder, de explorar cada rua, cada viela, cada possibilidade que a cidade oferece. O ato de realizar torna-se menos importante do que a jornada em si, e a cidade, com todos os seus segredos, permanece como um enigma, esperando ser desvendado.
Decide desvendar o enigma que a cidade apresenta, mergulhando mais fundo em suas entranhas. Cada rua, cada beco parece ser uma camada a ser descascada, uma pista em um quebra-cabeça que nunca se revela por completo. À medida que avança, os contornos familiares começam a se desfazer, e o concreto se torna fluido, os prédios se curvam, inclinando-se para sussurrar segredos em seus ouvidos.
O som do salsichão na brasa, antes tão comum, agora é uma melodia dissonante, como se os chiados fossem códigos Morse, enviando mensagens que não consegue decifrar. Ao se aproximar da estação de trem, percebe que ela não é apenas um lugar de partida e chegada, mas um ponto de convergência de realidades paralelas. As pessoas ao seu redor começam a mudar, suas feições se dissolvendo e se rearranjando em figuras que parecem familiares, mas não totalmente reconhecíveis.
Ao entrar na estação, nota que os trens não seguem trilhos normais. Eles flutuam, pairando sobre a plataforma, enquanto portas se abrem para revelar vagões que não pertencem ao nosso tempo. Um trem, em particular, chama sua atenção. Sua estrutura é feita de um metal que brilha com uma luz interior, pulsante, como se estivesse vivo. As janelas, em vez de vidro, mostram paisagens que não correspondem ao mundo exterior, mas a cenários oníricos de montanhas flutuantes, mares de névoa e cidades invisíveis.
Impulsionado por um desejo incontrolável, entra nesse trem. As portas se fecham silenciosamente atrás, e o trem começa a se mover. Não há sensação de velocidade, apenas a impressão de que está atravessando camadas de realidade, passando de uma dimensão a outra. O espaço dentro do vagão é maior do que o exterior sugeriria, uma catedral de possibilidades onde cada passo reverbera como um eco na eternidade.
Ao olhar ao redor, percebe que não está sozinho. Outras figuras, tão perplexas quanto você, ocupam os assentos. Cada um parece estar envolvido em sua própria jornada interior, navegando por paisagens mentais que se sobrepõem ao ambiente físico. entende que este trem não tem um destino final no sentido convencional; ele é um veículo de transformação, um meio de atravessar o limiar entre o que é conhecido e o que está por ser descoberto.
E então, a revelação acontece: a cidade, com toda sua complexidade e maravilha, não é apenas um lugar físico, mas uma metáfora viva para a busca incessante do ser humano pelo entendimento e pela transcendência. Cada rua que percorreu, cada rosto que viu, era um reflexo de sua própria mente, um eco das perguntas que nem sabia que tinha. O trem desacelera, e as portas se abrem novamente, mas desta vez não sente necessidade de sair.
A cidade, em sua grandiosidade abstrata e surreal, tornou-se parte de você, e você parte dela, ambos inseparáveis em uma dança eterna de descoberta e maravilha.
Enquanto permanece dentro do trem, sentindo-se conectado de forma profunda e inexplicável com a cidade e seus mistérios, uma voz suave preenche o ar, aparentemente emanando das próprias paredes metálicas do vagão.
“Preparado para despertar?” pergunta a voz, carregada de uma familiaridade desconcertante.
Confuso, olha ao redor procurando a fonte da voz, mas tudo o que encontra é o reflexo de si mesmo nas superfícies brilhantes. Porém, algo está diferente nesse reflexo: os olhos que o encaram possuem uma profundidade e um conhecimento que transcendem sua compreensão atual.
De repente, o ambiente ao seu redor começa a se dissolver em uma cascata de cores e formas, como uma pintura sendo lavada pela chuva. O trem, as pessoas, a própria estrutura da realidade se desintegra em partículas luminosas que giram em torno de você em um vórtice caleidoscópico.
Fecha os olhos diante da intensidade da luz e, ao abri-los novamente, encontra-se sentado em uma cadeira confortável, em uma sala minimalista iluminada por uma luz suave. E então, a verdade se revela: você estava participando de uma experiência imersiva de realidade virtual projetada para explorar os limites da consciência e percepção humanas.
À sua frente, um painel holográfico exibe dados e métricas da simulação pela qual acabou de passar. Uma voz mecânica, porém acolhedora, anuncia: “Simulação concluída com sucesso. Nível de introspecção alcançado: máximo. Deseja revisar os insights obtidos?”
Enquanto processa essa revelação, a porta da sala se abre e uma figura entra é você mesmo, ou pelo menos uma versão mais velha e serena de si mesmo. O sósia sorri e diz: “Cada vez que passamos por essa simulação, descobrimos algo novo sobre nós mesmos. Desta vez, o que você aprendeu?”
Perplexo, mas curioso, percebe que esta não é a primeira vez que participa dessa experiência. Cada ciclo é uma oportunidade de autodescoberta, uma jornada contínua para desvendar os mistérios da existência e da própria identidade. A cidade surreal, os personagens enigmáticos, o trem dimensional — tudo parte de um processo cuidadosamente elaborado para explorar as profundezas da alma humana.
Seu eu mais velho se aproxima e coloca uma mão reconfortante em seu ombro. “Pronto para outra viagem?” pergunta ele com um brilho nos olhos.
Sorri, sentindo uma excitação renovada crescer dentro de si. “Sempre,” responde, sabendo que cada jornada o leva mais perto da compreensão completa de quem você é e do potencial ilimitado que reside dentro de você.
Enquanto a sala começa a se transformar novamente, moldando-se em novos cenários e possibilidades infinitas, Se prepara para mergulhar mais uma vez no desconhecido, ciente de que as fronteiras entre realidade e imaginação são tão fluidas quanto você permite que sejam.
E assim, a jornada continua, em um ciclo eterno de descoberta e maravilha, onde cada fim é apenas um novo começo, e o verdadeiro mistério a ser desvendado é a infinita capacidade humana de reinventar a própria realidade.
Renato Pittas
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