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Autoban

Autoban

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Em um dia qualquer na auto-estrada, o vento levanta espirais invisíveis ao retrovisor. Olhos entreabertos, cada curva parece um convite para escapar dos muros de vidro que formam a paisagem ao redor. A estrada não leva a lugar nenhum em especial, talvez a promessa de uma semana melhor, uma que possa oferecer sentido em meio ao ruído e à monotonia disfarçada de progresso. De qualquer forma, se avança – e isso, mais do que qualquer outro conceito, parece ser o verbo com o qual se constrói a esperança moderna.

Pela janela, paira uma sensação que oscila entre nostalgia e sarcasmo, um reflexo vintage do que antes era apenas a insistência por um mundo mais claro, com menos promessas vazias. Enquanto os pensamentos oscilam, tudo ao redor parece uma mescla de sonho e realidade, como um reflexo espelhado de um sistema que persiste em autodeclarar-se perfeito, ainda que rachaduras surjam com a mesma frequência dos buracos na estrada. Talvez fosse mais fácil se comunicar em linguagem de sinais, onde o subtexto não poderia se esconder entre camadas de verborragia; ou talvez o problema esteja nas palavras que, aos poucos, parecem perder o significado.

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Ao som dos motores e do asfalto, uma reflexão brota: quais promessas realmente cumprem a jornada? Os ideais da democracia repousam, moribundos, nas gavetas do sistema; mas há aqueles que continuam, como eu, à espera de algo mais. Seguimos pelas vias, às vezes cegos, acreditando em um novo dia, em um sistema renovado, em uma segunda chance.

O cansaço é um detalhe inevitável. Como a insônia que acompanha as águias de olhar vigilante, questiono o custo real da vigília. A saúde é um jogo de resistência, cada noite mal dormida uma dívida que se acumula. Nos primeiros quilômetros, tento encontrar as respostas nas placas, em metáforas baratas que se dispersam no ar. Mas logo percebo que essa busca leva apenas a uma renovada perplexidade: até que ponto seguimos vivendo, despertos, sem nunca descansar? E mais: o que acontece quando a estrada que nos propusemos a percorrer se torna labirinto, e o cansaço é a única certeza que nos resta?

E assim sigo, repetindo as palavras para não esquecer seu significado, como se houvesse uma urgência em corrigir os próprios erros, redescobrindo o mundo através de outros olhos.

2

Num dia qualquer na auto-estrada, o vento girava em espirais invisíveis, mas o retrovisor registrava apenas sombras de movimento. Com olhos entreabertos, cada curva era um convite sutil para escapar dos muros de vidro que se erguiam como se fossem raízes da própria paisagem. A estrada parecia flutuar, como uma linha infinita esticada pelo impulso inabalável da velocidade.

Os prédios ao redor, formados de camadas translúcidas, lembravam arranha-céus feitos de hologramas, onde letreiros piscavam mensagens incompreensíveis, se dissolvendo como miragens ao toque do vento. As cores dos edifícios mudavam ao ritmo das passagens dos carros vermelhos, verdes e roxos vibrantes pulsavam contra o concreto metálico, formando um mosaico que pulsava no tempo de uma cidade que parecia um organismo vivo, transformando o ordinário em uma experiência hipnótica e delirante.

Em uma curva mais fechada, as luzes dos semáforos inclinavam-se para o lado, como se recebessem instruções de algum código secreto. Entre as luzes artificiais e os reflexos estilhaçados dos painéis digitais, um grupo de pedestres flutuava nas passarelas acima da rua, conectados aos dispositivos integrados em suas roupas, rastreando coordenadas e rotas como numa coreografia automatizada. Cada passo soava como uma nota harmônica em um teclado sem fim.

O horizonte trazia outra vez a linha ondulante da auto-estrada, desdobrando-se sobre a cidade, levando com ela as memórias de um futuro ainda por acontecer.

O ano era incerto, uma mistura de passado e futuro projetada nas estruturas caóticas da cidade. Cansado de sua rotina monótona, dirigia pela autoestrada quase como em transe. Para ele, o asfalto não era só um caminho, mas um meio de escapar, de buscar algo que ele nem sabia nomear. A paisagem se alternava entre reluzentes arranha-céus holográficos e o que restava dos antigos edifícios, cobertos de neons cintilantes e grafites digitais que dançavam nas superfícies das paredes.

Enquanto dirigia, notou que algo incomum estava acontecendo. Nas curvas, pequenos flashes de luz se formavam no retrovisor, imagens rápidas de lugares que ele nunca visitara, mas que pareciam estranhamente familiares. Nas telas holográficas das esquinas, viu rostos e figuras que pareciam interagir com ele alguns o encaravam com curiosidade, outros sussurravam palavras que evaporavam antes de serem entendidas. Era como se o percurso pela estrada desencadeasse uma série de portais mentais, cada curva um gatilho para uma nova visão ou lembrança.

Em um trecho vazio da estrada, onde a luz do crepúsculo artificial tingia o céu de uma cor roxa intensa, ele avistou uma enorme estrutura que parecia flutuar no horizonte. A construção era impossível de definir: uma torre que mudava de forma constantemente, de acordo com as ondas de dados que a circundavam. Era um antigo mito urbano, conhecido como a “Torre das Memórias”, onde se dizia que qualquer um poderia revisitar suas lembranças perdidas, apagadas ou distorcidas ao longo dos anos.

Hesitou. Ele sabia que muitos motoristas ficavam ali parados, fascinados, mas ninguém ousava se aproximar demais. Porém, naquela noite, movido por um impulso que não compreendia, ele abandonou a estrada principal e dirigiu em direção à torre. Conforme se aproximava, sentiu uma força estranha tomando conta do volante, como se o carro fosse guiado por uma entidade invisível.

Ao entrar na base da torre, a realidade pareceu distorcer-se em mil dimensões. Cada passo desdobrava-se em uma nova perspectiva, e os corredores espelhados refletiam não só sua imagem, mas também cenas de sua vida que ele havia esquecido. Ele viu sua infância, em tons saturados, depois sua adolescência em preto e branco, como um filme antigo. Ao tocar uma das paredes, a cena se animava, e ele podia ouvir as vozes, sentir os cheiros, reviver cada instante.

Vagou pelos corredores, revivendo histórias e até mesmo confrontando versões alternativas de si mesmo. Em um corredor isolado, viu-se com alguém que reconheceu como uma projeção de seu “eu” ideal: o que ele sempre quis ser, mas que nunca teve coragem. A visão piscou, e ele se viu no futuro, envelhecido, contemplando um mundo completamente desconhecido.

No final do percurso, entendeu que a torre não era apenas um arquivo de memórias, mas também um portal para o que ele poderia se tornar. Ao sair da torre e voltar ao carro, ele se sentia mudado, como se tivesse encontrado uma versão perdida de si mesmo. Quando voltou para a estrada, as luzes da cidade pareciam mais brilhantes, e as espirais de vento dançavam, revelando sussurros de todas as possibilidades que ainda o aguardavam.

Enquanto voltava à estrada, sentia como se cada partícula de luz e sombra na cidade carregasse um significado oculto, quase como um idioma secreto esperando ser decifrado. A cada quilômetro, ele notava sutilezas que antes lhe passavam despercebidas: o fluxo hipnótico das luzes que ondulavam nos edifícios, o brilho dos letreiros que mudavam de cor como numa sinfonia visual. Sentia-se ligado ao ritmo da cidade, como se ela pulsasse no mesmo compasso de seu coração.

Mas algo era diferente. Ao olhar para o retrovisor, vislumbrou uma figura borrada, quase espectral, que parecia acompanhá-lo. Era uma versão de si mesmo, mas com um olhar que revelava uma sabedoria antiga, um reflexo das memórias e futuros que havia vislumbrado na Torre das Memórias. Ele desviava o olhar, mas a presença se mantinha ali, constante e silenciosa. Era um lembrete de que ele carregava consigo não apenas o que foi, mas também o que ainda poderia ser.

A cidade, como se respondendo à sua transformação, revelava um novo lado. Em uma curva estreita, um grupo de hologramas humanos flutuava sobre a calçada, projetando seus próprios rostos em detalhes realistas, expressões congeladas entre o desespero e a euforia. Percebeu que eram, talvez, fragmentos de pessoas que se perderam na cidade, ecos de sonhos e vidas que, de algum modo, se integraram ao próprio tecido urbano.

Em determinado ponto da viagem, ele foi atraído por um brilho intenso à sua direita. Era uma estação abandonada do metrô, tomada por pixels vibrantes que tremulavam como chamas. Parou o carro e desceu, sentindo que ali havia algo esperando por ele. A plataforma, recoberta por circuitos e raízes metálicas, parecia uma ruína de outro tempo. Ao atravessar os trilhos, viu, projetada na parede, uma sequência de memórias que não eram suas — fragmentos de histórias de outros, entrelaçadas com a dele.

De repente, o ambiente pulsou, como se o mundo ao redor estivesse sintonizado ao som de seu próprio coração. A sensação era avassaladora, e ele percebeu que estava em uma espécie de limiar entre o real e o virtual, entre o tangível e o imaginado. Cada elemento da cidade, cada pixel e cada som sutil tornaram-se fragmentos de uma história ainda em construção, aguardando o próximo capítulo. E ali, parado na escuridão da estação, compreendeu que a estrada não era apenas um meio de transporte, mas uma trilha para uma jornada muito mais profunda, uma onde ele teria que escolher entre reviver o passado ou continuar a explorar os mistérios daquele futuro onírico que a cidade oferecia.

Quando voltou ao carro e deu partida, se sentia mais vivo e mais presente do que nunca. A estrada estendia-se diante dele, uma linha que se dobrava e se distorcia em curvas incertas, levando-o aonde ele jamais havia imaginado ir. A cidade, com suas cores cibernéticas e sua arquitetura surreal, era agora um companheiro de viagem, um cenário para uma história que ele sabia, finalmente, que poderia moldar a cada quilômetro.

À medida que acelerava pela autoestrada, sentia que a cidade estava finalmente em harmonia com ele, seus murmúrios de luz e sombra, seus hologramas efêmeros e suas estruturas de vidro e aço eram tão familiares quanto um sonho recorrente. A figura espectral no retrovisor havia sumido, mas ele não se sentia mais sozinho; agora, carregava em si fragmentos de todas as vidas e memórias que havia tocado na Torre das Memórias. Era um nova pessoa, alguém que compreendia, talvez pela primeira vez, a profundidade da estrada que percorria.

Com o horizonte se estendendo como uma promessa de possibilidades infinitas, ele percebeu que não importava aonde exatamente a estrada o levasse. Cada quilômetro se tornava uma escolha consciente, um caminho traçado tanto por suas memórias quanto pelos mistérios do futuro. A cidade pulsava atrás dele, viva, dinâmica, esperando seu próximo retorno.

Por fim, enquanto o crepúsculo digital caía e as luzes da metrópole cintilavam ao longe como estrelas artificiais, seguiu adiante, com a certeza de que, seja onde estivesse, a estrada continuaria a oferecer curvas e destinos que ele ainda precisava desvendar. Ele era, agora, parte daquela cidade, tanto um viajante quanto uma história viva dentro de um mundo em constante transformação.

Renato Pittas   

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