Beleza
Beleza é aquilo que escapa. Um reflexo distorcido, imperfeito e, por isso, fascinante. Não cabe nos moldes da mídia, não se prende aos flashes nem às capas de revista. Às vezes, se esconde no suor que brilha sob um sol de verão, no fio da pele exposta por um biquíni mínimo. Outras, é um gesto impulsivo e kamikaze, uma camisinha furada, um gozo no limite da existência. A beleza não segue regras; ela se desvia, desconstruindo ideais, desafiando o que o mundo insiste em definir como “perfeito”.
Ela se dissolve nos olhares tímidos, na confusão de um desejo declarado sem reservas: “Quero te dar!” É a generosidade inesperada, o silêncio que mata o desamor, um contragolpe à crueldade de não querer. Ela não se alinha com o que a mídia vende, mas às vezes se instala no desajuste, no desafinar de uma canção perfeita, naquele momento em que você só quer que alguém te leve para casa, desenganado e sem rumo.
Beleza é brilho de gloss nos lábios, mas também a dor da assadura nas coxas. Ela é o calor que falta em uma noite fria, a rejeição no olhar, seguida pela aceitação avassaladora do desejo. Não é pura, não é santificada, mas também não é pecado. É permissividade religiosa e provocação ateísta, uma dissonância que faz o coração bater mais forte ao som de uma soul music que te devora lentamente: Killing me softly.
Ela está no limiar entre o feio e o belo. Entre o ódio ao amanhecer e o bem-querer ao cair da noite. A beleza é perder-se na madrugada, tropeçando nas próprias incertezas. É a calcinha mal escolhida, a roupa que não se ajusta ao corpo, mas ainda assim define o momento. Sozinha à meia-noite, ou perdida ao meio-dia num shopping sem um tostão, ela existe no que não foi planejado, no que não segue expectativas.
Beleza é. E o que será que não é? O que não cabe na tentativa de definir? Talvez seja a dúvida, o espaço vazio entre o que desejamos e o que evitamos. Um jogo de sombras que, ao se deslocarem, criam novas formas de ver.
2
Beleza é qualquer coisa que escapa da palavra. Um fio solto num tecido esgarçado, e o mundo inteiro observa, tentando capturar o que nunca foi feito para ser contido. Na manhã quente de uma cidade que respira apressada, uma mulher caminha com o corpo suado, o biquíni mínimo delineando curvas que a mídia jamais ousaria enaltecer. Ela não se importa. O suor brilha como joias derretidas sobre a pele, e a cidade, cega ao que não compreende, continua a girar.
No mesmo instante, em outro lugar qualquer, um par de mãos hesita. Um toque, um deslize, e a camisinha furada transforma o prazer em um ato de entrega kamikaze, sem garantias, sem retorno. E ainda assim, naquele gesto, há beleza não a que idealizamos, mas a que nasce do inesperado, do caos. Ela é o reflexo de um tímido olhar generoso, talvez. Quem sabe, a voz rouca que sussurra com firmeza: “Quero te dar.”
Não é a beleza de um comercial de perfumes ou capas de revista. É a que se encontra no desejo de ser generoso, de silenciar o desamor antes que ele destrua, de desafinar quando tudo à volta soa perfeito. Um pedido manso, quase inaudível, escapa dos lábios: “Leva-me para casa.” E nesse desengano, nessa confissão sem pretensão, a beleza floresce.
Há uma mulher sentada num banco de praça. O gloss nos lábios reflete a luz do entardecer, mas entre as pernas, a assadura queima e incomoda. A beleza está aí, entre a dor e o brilho, na ausência do toque que se espera e no desejo de calor que não chega. Ao seu lado, um olhar é rejeitado, mas o desejo, incontrolável, permanece, insistente como o pulsar do coração. Há beleza naquilo que escapa aos sentidos, no que foge das definições.
E enquanto a cidade se apressa, os sussurros de uma canção antiga ecoam, dissonantes. Killing me softly. Uma voz que canta o que nunca foi dito em palavras. Naquele instante, o feio é amado, o belo, desprezado. E a beleza é aquilo que não deveria ser um pecado ateísta, uma permissividade religiosa. Ela é o caos que vibra no espaço entre o certo e o errado, a nota fora de tom que faz a melodia perfeita ganhar vida.
À meia-noite, sozinha, ou ao meio-dia, perdida em um shopping sem grana, beleza é a relatividade de tudo o que não entendemos. Ela é o bem-querer que se insinua no silêncio da madrugada, o ódio que desponta ao amanhecer. Ela é a calcinha mal escolhida que aperta e irrita, a roupa que não se ajusta ao corpo, mas que, mesmo assim, você veste. É o desajuste que nos define.
Beleza é. E o que será que não é? ….
Beleza é, e não pode ser contida. A mulher sentada no banco da praça se levanta, ajeita o vestido que insiste em prender-se às pernas suadas, e caminha sem direção, perdida nos próprios pensamentos. Ao seu redor, a cidade continua a pulsar com sua respiração descompassada: motores roncando, passos apressados, conversas ao vento. As vitrines dos shoppings refletem rostos de olhares vazios, olhos que buscam o que nunca será encontrado em manequins inanimados.
Ela não vê essas vitrines, nem os rostos ao seu redor. Sente o peso de um desejo difuso, algo entre o incômodo da pele e o calor de coxas que desejam o toque de outra pele. A noite ainda não caiu, mas a sombra já se projeta nos prédios altos, distorcendo a luz e alongando as formas. Beleza, talvez, esteja em algum canto, escondida entre esses contornos.
Um homem passa por ela e seus olhares se cruzam por um segundo. Ele não vê a assadura entre suas pernas, nem o brilho do gloss que agora já se misturou com o suor do dia. Ele vê algo mais, algo que talvez nem ela mesma perceba: a possibilidade de uma história que poderia começar ali, nesse breve encontro de olhares. Mas ele continua, sem dizer palavra, e o momento se dissolve, como um verso esquecido de uma música antiga.
Ela segue caminhando. Cada passo é uma nota dissonante no asfalto quente. O feio e o belo se entrelaçam em cada esquina — um casal discute numa varanda ao longe, enquanto um grupo de amigos ri de algo que parece insignificante. Ela pensa: Beleza não é uma verdade absoluta. É o que sentimos entre o caos e a ordem, entre o riso e o desespero.
Agora, já mais próxima de casa, ela pensa no que a mídia prega como ideal. No que nunca será. A beleza que ela conhece é crua, nua de expectativas impostas. É a raiva que sente ao acordar com o lençol grudado no corpo, o ódio à própria vulnerabilidade num corpo que jamais será capa de revista. E, ainda assim, é no meio dessa vulnerabilidade que algo floresce. Um desejo de se permitir, de aceitar o que é.
Quando a noite finalmente cai, ela se deita na cama. Ouve o eco distante de uma música, talvez um soul antigo, e se deixa levar. Killing me softly. A beleza, afinal, pode ser isso. Um fio de música que nos carrega para longe do que somos, do que acreditamos ser. É a meia-noite solitária, sim, mas também o calor que surge no peito, sem motivo.
Ela fecha os olhos. A beleza, pensa, não é o que a mídia diz que é. Não é o que vemos nas telas, nas vitrines ou nos comerciais. É o que se revela quando nos permitimos falhar, desafinar, amar o feio e odiar o que deveria ser perfeito.
Beleza é. E o que será que não é? Ela se pergunta uma última vez, antes de se deixar levar pelo sono, o sonho dançando à beira da consciência.
Enquanto o sono a abraça suavemente, um pensamento se ilumina em meio à escuridão do quarto: beleza não é o destino, mas a jornada. Não é a chegada ao ideal, mas o errar pelo caminho, tropeçando e rindo de si mesma. A beleza está na curva inesperada, no instante em que tudo poderia dar errado e, ainda assim, alguma coisa nos faz continuar.
Ela percebe, então, que beleza não é a simetria perfeita ou o que dizem as revistas; é o toque das imperfeições, é o brilho do suor num corpo vivo, a assadura incômoda que vem da fricção de andar em sua própria pele. Beleza é o erro, o descompasso, o momento em que o mundo insiste em seguir uma linha reta, mas você escolhe dançar fora do ritmo, sem se importar.
E assim, com um sorriso de canto de boca, ela aceita o que sempre esteve ali, sutil, esperando ser visto. A beleza é, afinal, aquilo que escapa à definição, o que floresce no inesperado e se revela, não nas vitrines, mas nos olhos de quem tem a coragem de enxergar além.
Beleza é… a liberdade de ser, simplesmente.
Renato Pittas
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