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Blackout

Blackout

Era um domingo preguiçoso, e a casa estava imersa na quietude da manhã. A eletricidade, aquela presença invisível e constante, fluía pelas paredes como um rio silencioso, alimentando cada lâmpada, cada aparelho, cada tela. Ela vivia nas veias da casa, uma força que raramente percebemos, mas que permeia tudo.
Nesse dia, porém, algo extraordinário aconteceu. Às 10:00, a eletricidade decidiu que estava cansada. Decidiu, por uma razão inexplicável, tirar férias.
Sem qualquer aviso, a casa mergulhou em um silêncio estranho. As lâmpadas apagaram-se com um último suspiro, as telas esmaeceram até se tornarem espelhos negros, e o som contínuo do refrigerador cessou abruptamente, deixando um vazio na cozinha.

Sentada no sofá com o controle remoto ainda na mão, franziu o cenho. Tentou acender a luz, mas nada aconteceu. Levantou-se e foi até o quadro de luz. Nada parecia fora do lugar. O relógio de parede, antes movido pela precisão de seus circuitos, parou exatamente às 10:01, como um monumento ao tempo congelado.
Foi então que notou algo estranho. Na ausência de eletricidade, o silêncio da casa começou a tomar forma. Os cantos das paredes, as sombras dos móveis, e até mesmo as dobras das cortinas pareciam sussurrar segredos há muito esquecidos. Cada passo ecoava de forma diferente, como se o chão estivesse tentando se comunicar.

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Sem a distração das telas, percebeu que a casa estava viva. As janelas, sem o filtro das lâmpadas elétricas, deixavam entrar uma luz natural, tingida de uma cor que ela nunca havia notado antes. Era como se o mundo além das paredes estivesse espiando para dentro, curioso e cheio de intenções.
Ao meio-dia, sentiu a mudança mais estranha de todas. A eletricidade, em seu estado de ausência, parecia ter deixado um espaço vazio, um vácuo que começou a ser preenchido por algo novo. As tomadas na parede começaram a brilhar suavemente com uma luz que não era elétrica, mas sim algo mais antigo e orgânico. A casa estava respirando, lenta e profundamente, como se estivesse despertando de um longo sono.
As lâmpadas, apesar de apagadas, agora pareciam conter pequenos mundos em miniatura. Ela se aproximou de uma e viu paisagens flutuantes dentro do vidro, montanhas e rios que se moviam como em um sonho. A televisão, em seu silêncio, começou a mostrar reflexos de lugares que nunca havia visto, como se estivesse captando sinais de outra realidade.

Sentou-se novamente no sofá, mas desta vez não pegou o controle remoto. Ficou ali, imersa na estranheza de um mundo sem eletricidade, mas cheio de uma energia diferente, uma energia que não vinha de fios e cabos, mas da própria essência da casa. Começou a sentir que a casa estava se comunicando com ela, contando histórias antigas através dos padrões nas paredes, nos sussurros das sombras e no brilho misterioso das tomadas.

Quando o sol começou a se pôr, o mundo além das janelas mudou de novo. O céu se tingiu de cores irreais, e as estrelas começaram a aparecer, mas não como pontos distantes de luz. Eram grandes, próximas, e podia ver seus detalhes, como se olhasse através de um telescópio invisível.

Às 18:00, a eletricidade voltou. Como um rio que retorna ao seu curso, preencheu novamente a casa com seu brilho familiar. As lâmpadas acenderam, os aparelhos voltaram à vida, e o relógio de parede retomou sua marcha implacável. Mas Clara sabia que algo havia mudado.

Ela olhou ao redor, sentindo a presença renovada da eletricidade, mas também a ausência de algo mais profundo, algo que ela mal começava a compreender. A casa parecia um pouco mais tranquila, como se tivesse retornado de uma longa jornada.

Sorriu, percebendo que naquele dia, ela havia experimentado algo que poucos jamais entenderiam. A eletricidade, em sua ausência, revelou que a magia não era apenas feita de fios e circuitos, mas de algo muito mais antigo, algo que habitava as próprias paredes de sua casa.

Naquela noite, foi para a cama com a mente ainda presa nas imagens e sons que haviam preenchido seu dia. A eletricidade estava de volta, mas a casa parecia diferente, como se guardasse um segredo silencioso. Enquanto o sono a envolvia, ela se perguntava se aquilo tinha sido real, ou apenas um sonho acordado.
No meio da madrugada, foi despertada por um leve zumbido. Abriu os olhos e viu que a lâmpada no teto piscava, emitindo uma luz suave, quase viva. O zumbido era rítmico, como um coração batendo. Se levantou lentamente, sentindo que algo a chamava.
Seguindo o som, ela saiu do quarto e caminhou pelo corredor escuro. As paredes, antes imóveis e firmes, agora pareciam pulsar levemente, como se tivessem uma respiração própria. Parou em frente a uma das tomadas na parede. A mesma luz estranha de antes emanava de dentro dela, e o zumbido parecia mais forte ali.
Curiosa, tocou a tomada e, no instante em que o fez, sentiu uma onda de energia percorrer seu corpo. Não era um choque, mas uma sensação de conexão profunda, como se tivesse tocado a própria alma da casa. Fechou os olhos, e, por um momento, viu uma visão clara: uma vastidão de fios e cabos que se estendiam como raízes, entrelaçando-se com a estrutura da casa e se estendendo até muito além das paredes.

Esses fios não eram apenas condutores de eletricidade. Eram canais de uma energia mais antiga e misteriosa, que carregava memórias, histórias e emoções. Viu cenas de outras épocas, de outras vidas que haviam passado por aquela casa. Viu uma família dos anos 50, reunida em torno de um rádio, suas vozes misturadas à estática; viu uma criança dos anos 80 jogando videogame, suas risadas ecoando na sala; viu uma mulher nos anos 90, sozinha, escrevendo à luz de uma lâmpada.
Cada cena estava conectada à casa, como se a eletricidade fosse um fio condutor de vidas passadas. Compreendeu, de repente, que a eletricidade não era apenas uma força física, mas um fio que ligava as pessoas ao longo do tempo, um fio que a casa guardava e protegia.

Quando abriu os olhos, estava de volta ao corredor, mas agora sabia que a casa era mais do que um simples espaço físico. Era um guardião de memórias, de histórias, de vidas que haviam passado por ali. E a eletricidade, essa presença invisível, era o fio que unia tudo.

Voltou para o quarto e se deitou novamente. Agora, o zumbido era reconfortante, um lembrete de que a casa estava viva, sempre guardando e protegendo aqueles que a habitavam. Adormeceu com um sorriso no rosto, sabendo que, mesmo na aparente normalidade do dia a dia, havia uma magia profunda e antiga fluindo ao seu redor.
Na manhã seguinte, a casa parecia normal, mas sabia que nunca mais seria a mesma. Passou a observar cada detalhe com novos olhos, percebendo a vida oculta em cada canto, em cada fio, em cada tomada. E, de vez em quando, ao desligar as luzes à noite, ela podia jurar que via um brilho suave nas lâmpadas, como um lembrete da jornada que havia feito.
A eletricidade voltou a fluir como sempre, mas sabia que, naqueles momentos de silêncio, havia um mundo de magia esperando para ser descoberto.

Nos dias que se seguiram, a rotina voltou ao normal. A eletricidade continuava fluindo pela casa, como sempre, silenciosa e onipresente. As lâmpadas iluminavam os cômodos com sua luz habitual, e os aparelhos funcionavam sem falhas. Porém, nunca mais viu a casa da mesma forma.

Passava mais tempo observando detalhes que antes lhe escapavam: o som suave das lâmpadas ao serem acesas, o brilho sutil nas tomadas quando o sol se punha, e até mesmo a forma como os cabos se entrelaçavam nas paredes, formando uma teia invisível que parecia pulsar com vida própria.
Uma noite, após um longo dia de trabalho, se deitou na cama e apagou as luzes. O quarto mergulhou na escuridão, mas, por um breve instante, ela viu novamente aquele brilho suave, como um eco da eletricidade que havia tirado férias. Era um lembrete de que, por trás da funcionalidade cotidiana, havia um universo oculto, um mundo onde a energia não era apenas uma força física, mas também uma ponte entre tempos, histórias e memórias.
E então, naquele momento de silêncio total, a casa pareceu sussurrar para ela, como se estivesse agradecendo por ela ter percebido sua verdadeira natureza. Ela sorriu, sentindo-se em paz. A eletricidade estava de volta, mas ela sabia que, a qualquer momento, aquele mundo mágico poderia se revelar novamente, se ela apenas prestasse atenção.

Adormeceu com essa certeza no coração, sabendo que, mesmo na normalidade do cotidiano, a magia estava sempre presente, fluindo pelos fios e cabos, esperando o momento certo para se mostrar. A eletricidade era mais do que luz e energia; era o fio condutor de um mundo invisível, sempre ali, sempre pronto para revelar seus segredos àqueles que estavam dispostos a ver.

Renato Pittas   

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