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Bom Dia, Ressaca!

Bom Dia, Ressaca!

A luz da manhã atravessava a janela quebrada do apartamento, pintando as paredes em tons de cinza manchado, um reflexo perfeito do asfalto sujo lá fora. Um refresco diet repousava na mesa, metade vazio, uma garrafa translúcida que parecia zombar do mundo com sua promessa de doçura sem culpa. Ele era um resquício de uma noite que deveria ter sido esquecida.

As glândulas na boca, agora secas e entorpecidas, lutavam contra o sabor artificial que deixava um amargor residual que não saía nem com o desejo de apagar a noite anterior. Era como se o amargo fosse mais do que o sabor; era a lembrança enraizada, cravada na língua e no cérebro.

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Se levantou, ainda cambaleando, e sentiu o gosto familiar de azia queimando na garganta. A memória da madrugada anterior veio à tona ele, deitado em uma cama de hospital improvisada, olhos fixos no teto manchado, tubos que o mantinham meio vivo. A pretensa doença era uma desculpa, um reflexo de sua própria condição emocional, um loop sem fim de ressacas físicas e mentais.

Cuspia o gosto metálico no urinol sujo, as mãos tremendo enquanto a cabeça latejava em sincronia com o batimento acelerado do coração. Era como acordar para um déjà vu constante, onde a ressaca era mais do que apenas uma consequência do álcool. Era uma ressaca de vida, uma existência em estado terminal, onde cada manhã era uma reencarnação da agonia do dia anterior.

A boca calada, incapaz de emitir qualquer som que não fosse um gemido surdo, carregava o peso de palavras nunca ditas, engolidas como aquele refresco dieta falsas promessas de um alívio que nunca vinha. Olhando para o vazio do apartamento, se perguntava se algum dia sairia dessa UTI imaginária que era sua mente, ou se estava destinado a cuspir o amargo no urinol até o fim dos tempos.

O dia continuava a clarear, mas a luz parecia apenas destacar o caos ao seu redor. Ele sabia que mais um gole do refresco diet o esperava na cozinha, um lembrete agridoce de que o ciclo estava longe de acabar.

E lá fora, o mundo continuava seu curso, indiferente à azia que corroía o interior.

Olhou para o refresco diet com desprezo, a garrafa balançando suavemente na mesa como se fosse parte de algum ritual tortuoso que ele havia criado para si mesmo. A rotina era sempre a mesma—ele acordava, enfrentava a ressaca com um misto de desespero e resignação, e tomava mais um gole daquela doçura artificial que prometia alívio, mas entregava apenas mais um capítulo do amargo cotidiano.

Ele pegou a garrafa com a mão trêmula, o plástico frio contra sua pele quente, e tomou outro gole, quase como um autômato. O líquido desceu rasgando, misturando-se ao amargo que já impregnava sua boca. Mas havia algo mais um gosto metálico, quase ferroso, que ele não conseguia identificar. Era como se o refresco tivesse capturado a essência da cidade que o cercava, uma mistura de poluição, decadência e o desespero abafado que pairava no ar.

Ele cambaleou até a janela, sentindo o piso frio e sujo sob os pés descalços. O céu lá fora estava tingido de um laranja sujo, a poluição e as luzes artificiais da cidade misturando-se em uma paleta caótica que espelhava seu próprio estado mental. Era uma cidade que nunca dormia, mas também nunca acordava de verdade um lugar preso em uma ressaca constante, assim como ele.

Podia ouvir os gritos abafados e os sons de motores ao longe, os ecos de uma revolução que nunca parecia realmente acontecer, apenas vibrando em um loop eterno. Aqueles que habitavam o submundo ao redor pareciam tão presos quanto ele, correndo de um lado para outro, buscando sentido em um lugar que já havia desistido de oferecer qualquer significado.

Ele fechou os olhos por um momento, tentando afastar a náusea que o invadia. A imagem da UTI voltou à mente, mas dessa vez, a cama não estava vazia. Viu a si mesmo, preso entre as paredes acolchoadas da sua própria mente, um paciente que nunca seria liberado. O urinol estava ali também, uma peça central no cenário, onde ele depositava o amargo que não conseguia processar.

“Bom dia, ressaca,” murmurou para si mesmo, a voz rouca, como se falasse com um velho amigo. O dia prometia ser apenas mais uma repetição do que já havia passado—um ciclo de autoflagelação e uma busca inútil por redenção.

Abriu os olhos e viu seu reflexo distorcido no vidro sujo da janela. Era uma visão turva, como se a cidade o estivesse absorvendo, diluindo sua identidade até que não restasse nada além do amargo residual que habitava sua boca. Sabia que estava à beira de algo, mas o quê, não tinha certeza. O ciclo continuaria, sem promessas de alívio ou conclusão, apenas o gosto da azia e a sensação de estar preso em uma UTI infinita, onde o único som era o gotejar constante do refresco diet na garrafa quase vazia.

A manhã avançava, e o mundo lá fora continuava a se mover, indiferente às dores e aos dilemas. ElSabia que tinha que sair daquele lugar, daquele ciclo, mas a ressaca era uma âncora pesada, e a cidade ao redor parecia determinada a mantê-lo preso.

Deixou a garrafa de refresco diet cair no chão, o som do plástico batendo ecoando pelo apartamento vazio. O líquido se espalhou em uma poça pequena, quase insignificante, mas que parecia simbolizar a essência do que ele havia se tornado: um reflexo amargo de promessas quebradas e esperanças diluídas.

Se afastou da janela, os pés se arrastando no chão, como se a gravidade do lugar estivesse tentando puxá-lo de volta. Cada passo era um esforço, como se o próprio ar ao seu redor estivesse carregado de resignação. Ele sabia que precisava sair, mas as paredes pareciam fechar-se, como se o apartamento fosse uma extensão da UTI, uma prisão sem grades, mas com barreiras invisíveis.

Se dirigiu ao banheiro, o espelho velho e manchado refletindo uma imagem que ele mal reconhecia. O rosto pálido, os olhos fundos, os lábios ressecados—tudo parecia um lembrete cruel de que o tempo estava passando, mas ele permanecia estagnado. Passou a mão pelo rosto, sentindo a aspereza da barba por fazer, e soltou um suspiro longo e cansado.

Mas então, algo inesperado aconteceu. Uma pequena faísca, um impulso que ele não conseguia identificar, fez com que ele olhasse para o espelho com uma nova determinação. O gosto amargo ainda estava lá, o peso da ressaca ainda pressionava seus ombros, mas algo havia mudado. Talvez fosse a percepção de que ele estava à beira de uma ruptura—um ponto onde continuar assim não era mais uma opção.

Se inclinou sobre a pia, deixando a água fria correr sobre suas mãos antes de esfregar o rosto. O choque do frio contra sua pele foi como um despertar, uma sacudida que o tirou da névoa em que estava imerso. Olhando novamente para o espelho, ele viu algo diferente em seus olhos não era esperança, mas uma determinação obstinada, um desejo de romper o ciclo.

Saiu do banheiro e olhou para a porta de entrada. Ela parecia tão comum, tão banal, mas naquele momento, representava a diferença entre continuar em seu ciclo de ressaca perpétua e a possibilidade, por menor que fosse, de mudança. Ele não sabia o que o esperava do outro lado, mas a ideia de continuar preso naquela UTI mental era insuportável.

Sem hesitar mais, ele agarrou a maçaneta e abriu a porta, a luz do corredor brilhando intensamente. Com um último olhar para o apartamento, para a garrafa de refresco diet derramada, para a cama desarrumada, para o caos que ele chamava de vida deu um passo à frente, sentindo que, mesmo que estivesse apenas começando, aquele era o início de algo novo.

O amargo ainda estava lá, a ressaca ainda pulsava em sua cabeça, mas pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que talvez, só talvez, houvesse um caminho para fora daquele labirinto de concreto e cinzas.

Com esse pensamento, ele fechou a porta atrás de si, deixando para trás o que já não servia, enquanto o som distante da cidade o envolvia, uma cacofonia punk que o lembrava de que a luta estava apenas começando.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

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