Cornélius Lúcifer: O Anjo da Guarda do Inferno
Quero falar sobre Lúcifer! Não, não falarei sobre a entidade satânica, anjo caído, oponente de do deus Jeová. Nada disso. A conversa agora é outra. Praticamente na mesma época em que Raulzito proclamava que “o Diabo é o Pai do Rock”, em 1974, um sujeito chamado Cornélio de Aguiar Neto, nascido em 1948, tomava o microfone de uma banda espertamente chamada Made In Brazil. E berrava sobre anjos da guarda, pedia que a garota parasse de gritar, perguntava se você já foi vacinado (não, estávamos muito longe da Corona ainda), convidava todos à festa, e entre outras coisas boas, cantava a “Aquarela do Brasil” (sim, aquele samba de Ary Barroso, mesmo).
Antes que eu continue, preciso tocar numa merda de uma confusão, proposital ou não, uma falácia na verdade (Sendo menos corretinho: mentira mesmo) que especialmente os jornalistas e críticos de música fazem: nãos queridóides, o rock Brasileiro não começou coma Turma de Brasília (Legião Urbana e companhia bela), nem — muito menos com a porra do Rock In Rio. O Rock começou muito, mas muito antes mesmo, ainda nos anos 1950, Com Celly Campello, Betinho e Seu Conjunto, Cauby Peixoto e outros. A própria Jovem Guarda num todo era embasada no Rock (“Iê-Iê-Iê”), com muitas versões de músicas de bandas inglesas e americanas da época, como Beatles, Stones e muitas outras. Isso ainda nos anos 1950. Posteriormente, as duas décadas seguinte, muitas e muitas bandas e festivais surgiram e aconteceram. Bandas como, por exemplo, Joelho de Porco, Sindicato, Apocalypsys em São Paulo, e Vímana e outras no Rio, participavam de festivais como o de Iacanga e Hollywood Rock (o primeiro), na Cidade Maravilhosa, e Águas Claras em São Paulo. Isto posto, espero que nossos escritores e jornalistas de Rock parem com essa merda de que o Rock no Brasil começou com aquela porcaria de BRock.
Então agora posso, de fígado e pulmão aliviados, falar sobre um disco, um vocalista e uma época que foram essenciais e fundamentais para o Rock brasileiro: década de 1970, “Made In Brazil” e Cornélius Lúcifer. Sendo que o foco neste artigo não é a banda nem a época, mas o vocalista, que a meu ver foi extremamente injustiçado, ou pelo menos não recebeu as honras e glórias que seus talentos múltiplos mereciam: Cornélius. Banda e época são apenas panos de fundo.
A banda Made In Brazil foi criada ainda no final dos anos 1960, 1967 precisamente, pelos irmãos Vecchione, Oswaldo e Celso. Em 1969, foram pioneiros no Brasil a usar maquiagem artística, pintando o rosto e partes do corpo nas performances ao vivo. Em 1974, gravaram seu álbum de estreia, “Made in Brazil”, pela RCA Victor, conhecido como “disco da banana”, pois trazia o desenho de uma banana na capa principal, e que é considerado um dos melhores discos de Rock brasileiro. O disco trazia um Rock vigoroso e com vocais muito bem elaborados por Cornélius Lúcifer. (Esse disco conta ainda com o baterista Rolando Castello Júnior, que alguns anos depois formaria a banda Patrulha do Espaço).
Agora, imaginem o cenário: final dos anos 1960, início dos 70, e uma banda de Rock barulhenta, que tem um cantor que usa maquiagem pesada, meias arrastão, botas longas de cano alto e cabelos descoloridos ou tingidos. Tudo isso com o país vivendo num momento de Ditadura Militar com uma rígida censura sobre as artes. Claro que foi chocante. Mas, o que mais chocou, de fato, nem foi nem o visual, mas a voz de Cornélius: áspera, rígida, forte, de uma potência fora do normal. Lixa. Espada de aço forjada por algum ferreiro habilidoso no Inferno.
Fico parado, pensando em termos que possa usar para definir a voz de Cornélius, sem cair na armadilha de usar referências a outros cantores, e comparações injustas para ambos os lados. O potencial vocal dele é algo, para mim, único dentro de toda a história do Rock no Brasil. Há, claro, muitos outros (ah, muitos é exagero, melhor dizer “alguns”), mas nenhum deles chegou ou chega perto de causar a emoção que sua voz causava.
No disco do Made In Brazil, em todas as faixas, a voz de Cornélius voa sobre o instrumental e ganha o status de perfeita. Soa como uma lixa, especialmente nas faixas rápidas e pesadas, como “Você Já Foi Vacinado?” e “Menina Pare de Gritar” (o grito primal na abertura da música é absurdo: “Oooooooooooo Infernooooooooooooo!”. Na inusitada versão do samba de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”, sua garganta poderosa arrepia, pela facilidade com que passa do rude ao angelical.
Se em “Anjo da Guarda”, “A Mina”, “Doce” e “Aquarela do Brasil”, músicas mais rápidas e pesadas, Cornélius solta a goela e a lixa entra em ação, em “Intupitou o Trânsito”, uma bela balada (não me perguntem o que é “intupitou”), às vezes soa bem doce, para depois voltar pesar. Nas músicas que se seguem, “Você Já Foi Vacinado?”, (Rock’n’Roll daqueles à moda Chuck Berry), “Tudo Bem, Tudo Bom” (um pauleirão brabo) e “Vamos Todos à Festa” (um blues rasgado) que emenda com “Menina Pare de Gritar” (outra paulada), a voz rude, que faz com que alguns críticos musicais — e concordo com eles — afirmem que Cornélius tinha o melhor “drive” do Brasil. (Para quem que não conhece o termo: o famoso “drive” na voz é aquele “efeito” rasgado que cantores de Rock, Heavy Metal, Blues, Soul, usam para dar uma intenção agressiva ou “rouca” à voz, agregando mais textura e variedade de timbre).
Agora, para mim, o ponto alto é numa balada, a última faixa do disco: “Uma Longa Caminhada”, que, aliás, tem uma bela letra falando de um tema pouco usual para a banda: a morte. Ali, como nos velhos cantores de Blues, o que ouvimos é uma voz que é algo entre um lamento e um urro. Serena, mas sempre muito forte e potente, a voz de Cornélius desliza como o barco de Virgílio no Aqueronte de Dante. Esta é, de fato, a música mais bela e bem executada do disco. E não tem com a gente não se emocionar, especialmente pela interpretação.
Pouco depois, em 1976, Cornélius surpreendentemente deixa o Made In Brazil, por razões que nunca foram muito claras. Mas, o que mais surpreendeu foi a guinada: ele cria uma banda chamada Santa Fé e lança um disco de Funk/Disco, em que renegava, já na capa, o seu passado roqueiro e mergulhava fundo em ritmos, que para a galera roqueira da época soavam como heresia. O disco é cheio de baladas românticas, como as faixas: “Até Que a Minha Carne Vire Osso” (de Guilherme Lamounier) e “Você Jamais Irá Pro Céu”, passa por “Você Me Acende”, Um funk daqueles dançantes e “Soul Tramp” um Soul a lá James Brown. Enfim, nas 12 faixas desse disco, nada de “drive”, urros e a antiga voz de lixa. Seu canto aqui mostra um vocal melodioso e bem menos “exigente”. Nada de Rock, portanto nesse trabalho, que na época fez com que a maioria dos “roqueiros” passasse ao largo, mas que depois de muitos anos passou a ser cultuado e, enfim, compreendido e admirado.
Em 1978, Cornélius lança um single (na época chamado de “compacto simples”) com duas músicas, que obteve bastante sucesso no Brasil com a canção “Eu Perdi o Seu Amor”, uma balada pop.
Ao longo das décadas seguintes, Cornelius voltou a cantar com o Made in Brazil em várias ocasiões, como em 1985, quando participou cantando em uma faixa do disco “Deus Salva… O Rock Alivia” (Faixa 10 – Kamikaze do Rock). Em 1987, participou de várias apresentações da banda, em comemoração a seus vinte anos de existência. Numa dessas apresentações, no Teatro Martins Penna, na Penha, São Paulo, eu estive presente, e pude então ver e ouvir sua voz e sua performance. Glorioso.
Depois disso, Cornélius praticamente desapareceu do cenário musical, com raras aparições. Ouvi lendas, que não tive como desmentir ou confirmar, que ele passou a trabalhar na área de saúde, e que, por mágoas antigas, não queria mais se envolver com música.
Cornélius faleceu em 18 de Julho de 2013 (dia de seu aniversário) aos 65 anos, vítima de problemas respiratórios.
Deixo então, postado neste texto, minha homenagem a esse magnífico artista, cantor, intérprete, performer, que deixa decerto um legado expressivo e inalienável, embora poucos das gerações mais novas o conheçam!
02/04/2024
Fonte : Barata Verso
Autor : Barata Cichetto
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