Em um momento á toa
Em um futuro onde as cidades flutuavam como ilhas errantes entre as nuvens, a memória não era apenas um reflexo do passado, mas um território inexplorado, um arquipélago de sensações e ideias que nunca foram vividas, mas existiam em potencial.Caminhava por essas avenidas aéreas, lembrando com intensidade o que nunca havia visitado, como se meus passos ressoassem em ruas que talvez pertencessem a um outro tempo ou a uma dimensão paralela.
O ar era impregnado de odores que vinham de todos os cantos: uma mistura de máquinas em funcionamento, vegetação úmida e fragrâncias que não consegui identificar. Não eram sutis, mas também não eram invasivos; apenas flutuavam, como os motes perpétuos que circundavam a atmosfera. Era como se esses aromas carregassem consigo pedaços de um tempo fragmentado, ecoando em minha mente como notas musicais fora de sintonia, mas estranhamente harmoniosas.
Enquanto avançava, percebia que minhas dúvidas, antes incômodas e persistentes, começavam a se dissipar, como névoa ao amanhecer. A cada passo, apostava em acertos repetitivos, evitava enganos que se apresentavam com uma insistência quase cômica. Parecia que o mundo ao meu redor funcionava em ciclos, como uma máquina de movimento perpétuo, onde cada engrenagem estava perfeitamente ajustada para girar infinitamente, sem jamais falhar ou se desgastar.
Havia momentos em que as palavras me escapavam, se dissolvendo no ar como partículas de luz. O que restava eram cores—tons vibrantes de um instante qualquer, capturados pela minha visão interior. Eu olhava para o vazio, ou o que pensava ser vazio, e nele encontrava um universo de significados ocultos, como se as respostas para todas as minhas perguntas estivessem ali, esperando para serem decifradas.
Foi então que a clarividência se instalou, uma súbita explosão de entendimento que me fez ver o que antes estava oculto. Fatos, eventos e sentimentos que haviam passado despercebidos agora se revelavam com uma clareza perturbadora. No entanto, ao tentar descrevê-los, percebi que as palavras comuns não eram suficientes. Precisava buscar novas formas, novas linguagens, para capturar a essência do que havia descoberto. E assim, comecei a explorar alternativas, procurando maneiras de narrar essas visões que transcendiam o ordinário…
As ruas flutuantes por onde eu andava começaram a se transformar. Os edifícios ao meu redor, antes sólidos e geométricos, agora pareciam feitos de névoa e luz, moldando-se ao ritmo das minhas memórias emergentes. Era como se o mundo estivesse se redesenhando com base nos meus pensamentos, cada curva e detalhe esculpido pela força das minhas novas percepções.
À medida que continuava a caminhar, sentia que o tempo e o espaço estavam se dobrando sobre si mesmos. Passado, presente e futuro se misturavam em uma tapeçaria única, onde era tanto o tecelão quanto o fio. Lembranças de lugares que nunca visitei surgiam com uma nitidez impressionante—cidades submersas em lagos de mercúrio, florestas de cristal onde os ventos cantavam melodias antigas, e torres que alcançavam as estrelas, construídas de sonhos esquecidos.
Nessas paisagens, as dúvidas que antes me perturbavam se desvaneciam, dando lugar a uma nova confiança. Cada passo que eu dava era uma aposta em acertos repetitivos, uma dança cuidadosa para evitar os mesmos enganos que me assombravam. Era como se eu tivesse aprendido a ler os padrões do universo, antecipando suas jogadas e reagindo com uma precisão quase sobrenatural.
No entanto, com essa nova clareza veio um desconforto. Percebi que, ao evitar os enganos repetitivos, eu também estava perdendo algo essencial—a chance de descobrir novas formas de falhar, novas maneiras de ser surpreendido. Os motes perpétuos que giravam ao meu redor eram tão perfeitos, tão bem ajustados, que começavam a parecer mecânicos, sem alma.
Então, olhando novamente para o suposto vazio, percebi que o verdadeiro desafio não era evitar os erros, mas abraçá-los. Era como se o vazio estivesse me chamando, oferecendo uma nova perspectiva—não apenas de evitar o que já conhecia, mas de mergulhar no desconhecido, permitindo que os odores, as cores, e as palavras que me escapavam se transformassem em algo novo, algo que eu ainda não compreendia totalmente.
E foi ali, diante daquele abismo de possibilidades, que decidi parar de caminhar e simplesmente observar. O vazio não era um espaço inerte, mas uma tela em branco, onde eu poderia projetar minhas novas visões. Era o ponto de partida para uma nova jornada, onde a clarividência não seria um dom estático, mas uma força em constante evolução, moldada pela curiosidade e pelo desejo de explorar o inexplorado.
Com essa nova determinação, comecei a pensar nas alternativas que poderia buscar para descrever os fatos que agora compreendia. As palavras não eram mais suficientes; precisava de símbolos, de gestos, de canções que capturassem a complexidade do que via e sentia. Precisava reinventar a linguagem, criar novas formas de expressão que fossem tão dinâmicas e imprevisíveis quanto o próprio universo.
Assim, enquanto as nuvens se desdobravam ao meu redor, comecei a desenhar essas novas formas em minha mente, sabendo que a verdadeira jornada estava apenas começando…
Enquanto mergulhava nas possibilidades infinitas que se desdobravam à minha frente, percebi que cada tentativa de capturar essa nova realidade era, ao mesmo tempo, um avanço e uma regressão. As novas formas de expressão que surgiam em minha mente pareciam florescer e murchar ao mesmo tempo, como se cada ideia carregasse em si tanto a promessa de revelação quanto o risco de se perder na própria complexidade.
Os símbolos que começava a esboçar eram fragmentos de uma linguagem em constante mutação. Havia gestos que pareciam moldar o ar ao meu redor, criando formas efêmeras que se dissolviam antes que eu pudesse compreendê-las totalmente. Canções sem melodia, feitas de sons que ecoavam em frequências desconhecidas, emergiam dos meus lábios, como se eu estivesse tentando dar voz a um sentimento que ainda não existia, mas que estava prestes a nascer.
Ainda assim, havia algo que me impelia a continuar. A ideia de que, ao explorar o desconhecido, eu estava desvendando não apenas o mundo ao meu redor, mas também partes de mim mesmo que até então haviam permanecido ocultas. Cada nova tentativa de descrever o indescritível era uma jornada de autodescoberta, onde o verdadeiro significado não estava nas palavras ou nos gestos, mas na busca em si.
Enquanto as nuvens ao meu redor continuavam a girar, percebi que a clareza que havia alcançado era apenas uma etapa de um processo muito maior. O vazio que antes me intimidava agora parecia um aliado, um espaço de potencial ilimitado onde eu poderia continuar a explorar, errar e aprender. Não havia um fim definitivo, apenas um fluxo constante de descobertas que se revelariam com o tempo, se eu tivesse paciência e coragem para segui-las.
E assim, deixei que o vento me levasse, sem pressa, sem a urgência de finalizar essa jornada. Sabia que o verdadeiro desafio estava em manter o equilíbrio entre a clareza e a dúvida, entre a repetição e a novidade, e que, enquanto continuasse a me mover nesse espaço indefinido, novas revelações surgiriam, como cores inesperadas em um quadro inacabado.
E então, com a mente aberta e o coração leve, segui em frente, sabendo que cada passo me levaria a um novo começo…
Enquanto continuava a ser levado pelo vento, uma tranquilidade se instalou em mim. A busca por palavras, gestos e sons que pudessem capturar o indizível já não me pressionava. Entendi que algumas coisas, por sua própria natureza, nunca poderiam ser completamente expressas ou compreendidas—e isso estava bem.
As nuvens ao meu redor começaram a dissipar, revelando um céu limpo e vasto, onde estrelas longínquas cintilavam com um brilho quase familiar. Era como se, ao deixar de lado a necessidade de descrever tudo, eu tivesse finalmente encontrado paz no simples ato de observar, de existir naquele momento. As lembranças que antes insistiam em ser revisitadas agora se acomodavam, encontrando seu lugar entre as paisagens que nunca haviam sido, mas que ainda assim faziam parte de mim.
Com a mente e o coração em harmonia, aceitei que nem tudo precisa ser entendido ou narrado até o fim. O vazio não era mais um espaço a ser preenchido, mas um companheiro silencioso, um lembrete de que o desconhecido também faz parte da vida. E, com essa aceitação, percebi que minha jornada não necessitava de um ponto final, mas de uma pausa, um espaço onde o próximo passo poderia ser dado sem pressa, com a certeza de que cada novo começo seria apenas mais uma etapa de um caminho sem fim.
Assim, com um sorriso sereno, continuei a caminhar, agora em paz com o fato de que o infinito não precisa ser compreendido—apenas vivido.
Renato Pittas
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