.
.

Entre Anjos e Demonismos

Entre Anjos e Demonismos

1

Anjos e demonismos. Já não fazem tanto barulho. O que antes ocupava o imaginário humano, entre céus e abismos, hoje parece uma conversa velha, quase sussurrada por forças invisíveis, que já não disputam tão intensamente. Eles estão lá, sempre estiveram, mas agora apenas observam, quase desinteressados, como plateias que assistem a uma peça que perderam o gosto de aplaudir.

Continua após a publicidade...

No intervalo entre suas existências místicas, uma terceira força se interpôs. Nós. Humanidades. Não como mediadores divinos ou caídos, mas como personagens que aprenderam a caminhar entre luzes e sombras, a fazer seus próprios pactos com o cotidiano. A grande guerra cósmica, que já foi questão de vida ou morte, cedeu espaço a batalhas mais sutis: contas a pagar, amores para cultivar ou esquecer, pequenos sonhos que cintilam como estrelas solitárias.

Os anjos olham para nós e, talvez, sintam uma leve curiosidade. Eles nunca entenderam nossa habilidade de buscar o divino no caos, de fazer poesia com escombros. E os demônios? Bem, eles apenas riem. Mas é um riso cínico, de quem vê que seu poder já não reside mais no medo puro, mas em pequenas tentações cotidianas: a pressa de atropelar o próximo, o egoísmo disfarçado de necessidade.

Entre as duas forças eternas, estamos nós, com nossos erros e acertos, tentando fazer sentido de tudo isso. Talvez seja isso que desestabilizou o equilíbrio entre eles: nossa capacidade de criar e destruir com a mesma intensidade. Nossos pecados e nossas virtudes misturam-se tanto que os próprios anjos e demônios perderam o controle do tabuleiro. Eles só observam, às vezes franzindo o cenho, às vezes sorrindo.

E assim seguimos, entre o céu e o inferno, mas já não tão preocupados com o que nos espera em cada extremo. Descobrimos que o verdadeiro desafio é viver aqui, nesse meio-termo, onde a magia de ser humano é a única que realmente importa.

2

As engrenagens que faziam o mundo girar haviam se fundido ao metal frio das máquinas. Prédios cobertos de ferrugem dominavam o horizonte, enquanto vapor e névoa davam um ar fantasmagórico à metrópole. As ruas eram iluminadas por lâmpadas a gás azuladas, e veículos a carvão cortavam o ar com suas chaminés tilintando. Em algum ponto entre os céus encardidos e o submundo das fábricas fumegantes, anjos e demônios continuavam presentes, mas agora de forma silenciosa, quase irrelevante.

Eles estavam lá, claro, sempre estiveram. Mas não eram mais os protagonistas das histórias humanas. No passado, era fácil imaginar o brilho divino de uma asa angelical ou a risada cortante de um demônio em uma encruzilhada. Agora, a disputa entre eles parecia mais uma conversa murmurada, algo sutil que, de vez em quando, lembrava sua própria insignificância. Entre esses ecos do passado místico, surgia uma nova força dominante: Humanidades.

A cidade, com suas torres mecanizadas, encarnava essa nova era. Os habitantes já não se curvavam aos desígnios do além; eles haviam se adaptado às máquinas, e as máquinas haviam se adaptado a eles. A alma humana se fundia ao vapor, ao cobre e à eletricidade. Pequenos pactos eram feitos todos os dias, não com divindades ou diabos, mas com engrenagens que rodavam sem parar. O verdadeiro poder estava naquilo que se podia construir, e o resto — anjos, demônios, mitos antigos  não passava de figuras em desuso, observadores obsoletos.

Na praça central, uma gigantesca torre de relógio mecânico pulsava com o ritmo do tempo. Da plataforma, O último dos antigos vigias humanos, contemplava a cidade enquanto ajustava os óculos de lentes circulares que captavam não apenas o visível, mas as frequências etéreas. Ao seu lado, um anjo desbotado, cujas asas não brilhavam mais, olhava com curiosidade a multidão.

“Eu ainda não entendo vocês”, disse o anjo, a voz ecoando como um sino distante. “Por que não buscam o paraíso? A glória eterna? Estão presos a essas… máquinas.”

Sorrindo por trás de uma barba grisalha, deu uma tragada no cachimbo de vapor. “Nós buscamos o paraíso nas coisas que criamos. O caos e a ordem convivem em nossa própria engenhosidade. Veja bem,” e apontou para as torres da cidade, “não se trata de luz ou trevas, mas de algo muito mais humano, o equilíbrio entre os dois.”

Nas ruas, entre as rodas dentadas que rodavam incessantemente, pequenas corrupções surgiam. Os demônios, que já haviam sido figuras de pesadelos, agora se limitavam a sussurrar tentações banais nos ouvidos dos apressados. “Compre isso. Consuma aquilo. Esqueça o próximo.” Mas as pessoas seguiam, acostumadas com essas vozes, não por serem santas ou diabólicas, mas porque haviam aprendido a escolher por si mesmas, à sua maneira, entre o lucro e a perda, o egoísmo e a empatia.

Uma risada ecoou entre os canos e as vigas de ferro — um demônio, com chifres opacos e asas malformadas, sentado sobre uma coluna enferrujada, se divertia. “Vocês são engraçados. Criam suas próprias destruições e se glorificam nelas. Por que me preocupar? Vocês fazem meu trabalho por mim.”

Deu de ombros. “Talvez. Mas é nosso trabalho fazer e refazer. A verdadeira batalha já não é entre o bem e o mal. Somos nós, as humanidades, que decidimos o que será construído ou destruído. Vocês, anjos e demônios, perderam o fio dessa trama.”

O anjo suspirou, o demônio deu de ombros e ambos olharam para a cidade pulsante. Lá embaixo, um grupo de inventores testava uma nova máquina voadora, impulsionada por vapor, uma mistura de genialidade e loucura. sorriu, percebendo que os céus e os infernos estavam agora bem mais próximos do que qualquer um deles gostaria de admitir.

No fundo, o que havia emergido era algo que anjos e demônios não compreendiam completamente: a humanidade. Erros e acertos mesclados como engrenagens interligadas. Nem divinos, nem infernais. Apenas humanos — com a capacidade de criar seus próprios céus e infernos.

E assim, entre anjos desbotados e demônios enferrujados, a cidade seguia em frente, impulsionada pelo vapor dos sonhos humanos, onde o verdadeiro desafio não era escolher entre luz e trevas, mas viver intensamente nesse espaço de invenção, onde a única mágica que realmente importava era a de sermos humanos.

Permaneceu observando a cidade enquanto o vapor dos trilhos aéreos dançava pelo ar pesado de fuligem. O relógio ao fundo marcava as horas com precisão mecânica, e as sombras alongavam-se conforme o sol desaparecia no horizonte, tingindo o céu com tons de cobre e ferrugem. A noite não trazia o descanso. Era quando as forjas se acendiam com mais força e os inventores, iluminados pelo brilho dos tubos a vácuo, trabalhavam incessantemente em suas criações. O progresso não parava. Nunca.

Naquela mesma noite, algo inusitado ocorreu. As engrenagens gigantes do relógio principal, que por séculos haviam funcionado sem falhas, começaram a ranger e soluçar, quase como se estivessem sofrendo. O barulho metálico ecoou pelas ruas e becos, assustando pássaros mecânicos e alertando os trabalhadores nas fábricas. franziu o cenho, algo raro. Ele conhecia cada roldana, cada pino daquele sistema. Algo estava errado, e não era meramente mecânico.

Ao seu lado, o anjo ergueu o olhar, as asas desbotadas tremeluzindo de forma quase imperceptível. “O equilíbrio está se rompendo. Isso não é obra dos humanos.”

“Claro que é,” murmurou , com os olhos fixos na torre. “Nós rompemos o equilíbrio desde que começamos a construir. Você devia saber disso.”

Mas o anjo não estava convencido, e pela primeira vez em décadas, percebeu um brilho em seus olhos celestiais uma preocupação que ele não via desde os tempos antigos, quando anjos e demônios lutavam pelas almas humanas de forma mais direta. O anjo apontou para o céu. As nuvens começaram a se mover de maneira estranha, agitando-se como se respondessem a uma força invisível, uma nova força.

Do alto das chaminés, as sombras começaram a se contorcer. Algo saía da própria substância da cidade. Não era apenas fumaça ou vapor, mas uma forma de energia bruta, uma fusão de luz e escuridão, moldada pelas criações dos homens. Como se a própria cidade estivesse se rebelando contra seus criadores, as máquinas, por um breve momento, ganharam vida própria. Pistões disparavam sozinhos, cabos se enrolavam como serpentes metálicas, e as lâmpadas de gás piscavam em um ritmo irregular.

Desceu as escadas em espiral da torre do relógio com rapidez, sentindo que algo grande estava prestes a acontecer. Atravessou as ruas, agora caóticas, onde as máquinas agiam como se estivessem possuídas por uma vontade coletiva. Ao longe, viu que outros também estavam cientes do fenômeno. Os demônios, sempre cínicos e zombeteiros, agora se mostravam perplexos, incapazes de entender o que estava se desenrolando. Já não se tratava de uma simples tentação ou de um jogo entre luz e trevas. Algo além, algo novo estava emergindo.

A meio caminho de uma fábrica de motores, encontrou o demônio que outrora rira ao seu lado na torre. Suas asas negras estavam eriçadas, e os olhos vermelhos faiscavam com um misto de excitação e receio. “Vocês humanos… conseguiram. Vocês romperam o ciclo.”

“O ciclo?” parou, sentindo o chão vibrar sob seus pés, como se as fundações da cidade quisessem se erguer e fugir dali.

“Sim,” o demônio respondeu, com uma ponta de ironia na voz. “Por eras, nos divertimos às suas custas, oferecendo escolhas e observando as consequências. Mas agora… vocês criaram algo que transcende até mesmo nós.”

Olhou em volta, tentando compreender a magnitude do que estava acontecendo. Entre as construções, as sombras e o vapor ganhavam formas humanas, entidades indefinidas, como reflexos da própria humanidade. Eram construções feitas de carne e ferro, luz e trevas, vagando pelas ruas em uma marcha lenta e determinada. Não eram anjos nem demônios, mas uma fusão estranha e perfeita das duas essências, nascidas do engenho humano.

“Anjos e demônios sempre estiveram fora de nós”, murmurou . “Mas agora… criamos os nossos próprios.”

O demônio riu com um tom amargo. “Não são suas criações. São o reflexo de vocês. A prova final de que vocês não precisam mais de nós.”

O anjo, que se aproximara silenciosamente, completou: “Essas entidades são a síntese de suas próprias escolhas. O que acontece agora depende inteiramente de vocês, humanos.”

Fechou os olhos por um breve momento, sentindo o peso da revelação. A humanidade havia chegado a um ponto de inflexão, onde a batalha não era mais entre forças externas, mas internas. Cada máquina, cada engrenagem, cada pedaço de vapor que a cidade cuspia era uma extensão de suas almas, de suas escolhas, de suas criações.

E enquanto o caos se intensificava ao redor, Percebeu que o desafio não era mais sobreviver entre anjos e demônios. A nova era era de Humanidades, desta vez, a única batalha que importava era aquela que se travava dentro de cada um.

Com um sorriso leve nos lábios, ajustou os óculos, observando o futuro incerto. “Então, que comecem os jogos.”

Permaneceu em silêncio, observando as sombras se contorcerem pelas ruas. enquanto o vapor envolvia tudo como uma névoa densa. Os reflexos de luz e trevas, formados a partir das máquinas e construções, desafiavam sua compreensão. Ele sentia a cidade pulsar, viva de uma forma que jamais imaginara. Ao seu redor, as entidades que surgiam, meio humanas, meio mecânicas, avançavam lentamente, quase como se estivessem aguardando algo.

“São o reflexo de vocês”, o demônio dissera, mas o que aquilo realmente significava? Seriam essas criaturas a consequência inevitável das escolhas humanas? Ou haveria algo mais, algo oculto por trás das engrenagens e do vapor, uma força que transcendia até mesmo a compreensão dos anjos e demônios?

Ponderava. Seriam essas criações uma nova forma de divindade? Algo que escapava ao controle não apenas dos humanos, mas também das forças celestiais e infernais? Ou talvez, o que ele via fosse apenas um reflexo da desordem interna da humanidade, uma projeção de seus medos, desejos e ambições, materializados em formas que nem os próprios criadores poderiam prever ou controlar.

“O que acontece agora depende inteiramente de vocês.” As palavras do anjo ecoaram em sua mente. Mas dependia de quê, exatamente? Se a humanidade criara algo que transcendia o bem e o mal, como decidir o rumo a seguir? Seriam essas entidades capazes de questionar a própria existência, de entender os dilemas que os humanos enfrentavam diariamente? Ou estavam apenas repetindo os erros de seus criadores, perpetuando o ciclo de destruição e reconstrução?

Ao olhar para a cidade em caos, uma pergunta começou a martelar na mente de : seria possível, em meio a esse novo equilíbrio de forças, encontrar um caminho onde a humanidade não precisasse escolher entre luz e sombra, entre ordem e caos? Ou será que o destino final estava além de qualquer compreensão, preso em um ciclo eterno de criações e destruições?

E ali, no meio das sombras e do vapor, percebeu que a maior batalha ainda estava por vir. Não seria travada entre anjos e demônios, nem sequer entre as entidades recém-criadas. A verdadeira guerra seria interna, nos corações e mentes de cada ser humano, que, agora, encarava um futuro incerto, sem respostas claras, apenas com perguntas incessantes.

E, se as respostas que procuravam nunca viessem?

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

https://sara-evil.blogspot.com

Venda Livro Tagarelices: https://loja.uiclap.com/titulo/ua60170/

asbrazil

Deixe um comentário

SiteLock