Entre o Nugget’s e o Sonrisal
Dizia-se por aí que os mercados da cidade estavam vivos. Não no sentido comum da palavra, mas em uma existência pulsante, quase orgânica, que atravessava as prateleiras. Tudo lá parecia ter um propósito oculto, como se os produtos expostos soubessem mais sobre as pessoas que os compravam do que os próprios compradores. Os corredores se alongavam com o movimento de olhos brilhantes, mãos apressadas e cestas que pareciam se encher sozinhas.
Ela era uma dessas pessoas, apressada e distraída. Ela mal percebia os tons vibrantes das embalagens ao seu redor, os sussurros que corriam entre os pacotes de macarrão instantâneo e as bandejas de nuggets congelados. Seu corpo carregava uma dor estranha, algo que ela não conseguia localizar — como se as suas células tivessem sido reprogramadas para uma espécie de cansaço crônico. Ao passar pelos corredores, sentia um aperto no peito, como se algo estivesse prestes a se revelar, mas não sabia o quê.
“Talvez seja só fome”, pensou, pegando mais uma lasanha congelada e jogando no carrinho.
Enquanto percorria o caminho para casa, o brilho dos outdoors que vendiam felicidade artificial parecia mais intenso. Sorrisos brancos, pele impecável, famílias perfeitas. Apertava o volante, sentindo-se desconfortável com essa paisagem de felicidade sintética. “Saúde e prosperidade”, repetiam as vozes nas rádios e nas telas. Mas, por dentro, algo em gritava que havia algo errado.
Chegando em casa, preparou a comida em poucos minutos, o cheiro de conservantes esquentando o ar da cozinha. Enquanto o micro-ondas apitava, sua cabeça latejava, uma pontada fina. Comia quase sem perceber o que estava mastigando, como se estivesse em um transe induzido por aquela vida automatizada. E então veio a dor, como sempre vinha — um peso nas articulações, uma névoa nos pensamentos. Ao invés de preocupação, veio a rotina: abriu o armário e pegou mais um sonrisal. A sensação era estranha, mas familiar, como se tudo estivesse dentro de um ciclo inescapável.
Mas naquela noite, algo mudou.
Enquanto dormia, teve um sonho vívido: os mercados da cidade se transformavam em criaturas gigantescas, com prateleiras como braços e corredores como veias. Elas se alimentavam das pessoas que entravam, engolindo suas almas com cada compra. As farmácias surgiam logo depois, oferecendo a cura para os sintomas que essas criaturas geravam. Um ciclo contínuo, perfeito, alimentado pela conveniência e pela ilusão de saúde. Sentia que ela também estava sendo consumida, parte de um ritual que nunca terminava.
Acordou suada, com o corpo leve, como se houvesse escapado de uma armadilha. Olhou em volta e viu a lasanha congelada ainda dentro do micro-ondas. Não havia comido. A dor, surpreendentemente, não estava ali. Saiu correndo para o mercado antes que o sol nascesse, como se estivesse sendo guiada por uma força invisível.
Quando chegou, viu uma cena surreal: as prateleiras estavam vazias. Apenas frutas, legumes e folhas verdes permaneciam, como um oásis esquecido no centro de um deserto industrial. Pegou um punhado de grãos, algumas sementes e caminhou até o caixa. A atendente a olhou como se visse algo que há muito tempo não aparecia por ali.
“Você ainda se lembra”, disse a mulher atrás do balcão.
“Do quê?” perguntou, confusa.
“A verdadeira comida”, respondeu a atendente, com um sorriso enigmático. “Aquela que cura, de verdade.”
Saiu dali sem entender ao certo o que havia acontecido. Voltou para casa, cozinhou com o que havia comprado, e, ao provar o primeiro pedaço, sentiu uma onda de vida percorrer seu corpo. Pela primeira vez em meses, ela estava em paz.
No dia seguinte, os mercados estavam como antes. As prateleiras lotadas de pacotes coloridos, as pessoas vagando em transe entre as ofertas. Mas sabia que havia algo mais ali, algo que se escondia entre as prateleiras. Talvez, pensou, o segredo fosse lembrar-se daquilo que a natureza sempre ofereceu. Ou talvez fosse algo mais profundo, mais sombrio.
Assim, entre um nugget e o sonrisal, havia encontrado o caminho que poderia quebrar o ciclo. Mas será que os outros conseguiriam enxergar o mesmo?
Passou os dias seguintes em um estado de alerta constante. Cada refeição que preparava agora era feita com ingredientes que pareciam vibrar com vida própria folhas verdes, sementes, grãos e frutas que, quando cortados, exalavam uma fragrância tão pura que beirava o sobrenatural. A cada mordida, sentia seu corpo se regenerar, suas dores se dissipando como névoa ao sol. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma inquietação crescente, como se o segredo que havia descoberto fosse perigoso.
Nos mercados, as pessoas continuavam circulando como sempre, apressadas, arrastando seus carrinhos entre montanhas de produtos ultraprocessados. Ela começou a notar algo diferente nelas, algo que antes não percebia. Seus rostos estavam opacos, as expressões vazias, como se algo estivesse sendo gradualmente sugado de dentro delas. Não era apenas cansaço ou distração — era como se estivessem sendo lentamente despojadas de vida, uma mordida de cada vez.
Passou a observar mais atentamente. Viu uma mulher pegar uma pizza congelada, sem ao menos olhar para a embalagem, enquanto seus dedos tremiam ligeiramente. Um homem, ao lado, tossia repetidamente, com os olhos fixos em uma prateleira de refrigerantes, como se sua mente estivesse presa em algum lugar entre a sede e a febre. As farmácias, sempre lotadas, tinham filas que se estendiam pelas calçadas. Sentia o ar carregado de uma energia estranha, algo invisível, mas palpável, que conectava todas aquelas pessoas à comida que consumiam e aos remédios que engoliam.
Uma tarde, após semanas observando o movimento da cidade, Decidiu voltar àquele mercado vazio do sonho. Algo a puxava para lá, como se as respostas que procurava estivessem escondidas naquele lugar deserto. Caminhou pelas ruas sob um céu cinzento, que parecia pesar sobre sua cabeça, até chegar ao mercado.
Mas, ao entrar, uma surpresa. O mercado estava completamente transformado: as prateleiras que antes estavam vazias agora estavam cheias, repletas das mesmas ofertas ultraprocessadas que ela havia tentado evitar. As frutas e os legumes estavam empilhados em um canto, quase invisíveis entre os corredores abarrotados de embalagens coloridas. Havia pessoas por toda parte, e o som dos carrinhos rangendo pelo chão metálico ecoava em seus ouvidos como um ruído perturbador.
Sentiu uma vertigem. Ela havia testemunhado algo real ou havia sido apenas um devaneio?
Com passos hesitantes, foi até a seção de alimentos frescos. As frutas brilhavam sob as luzes fluorescentes, mas, ao pegá-las, Percebeu que algo estava errado. O brilho era falso. Ao apertar uma maçã, seus dedos afundaram na superfície macia, revelando um interior podre. O mesmo aconteceu com os legumes — por fora, perfeitos, mas por dentro, vazios e deteriorados. Não havia mais vida ali, apenas a aparência de saúde.
De repente, uma voz atrás dela a fez estremecer.
“Você ainda está buscando, não está?” Era a atendente, a mesma do sonho. Seu sorriso enigmático estava de volta, mas seus olhos agora tinham um brilho estranho, quase ameaçador.
“O que está acontecendo aqui?” Perguntou, sentindo o pânico crescer.
“O ciclo nunca se quebra. Nunca foi para ser quebrado.” A atendente deu um passo à frente. “Você achou que descobriu algo, mas tudo isso é uma ilusão. O que você viu era apenas uma brecha, uma falha no sistema que logo foi corrigida. Não há saída, a não ser que você volte ao conforto dos comprimidos e das refeições fáceis. A cidade é uma máquina. E você faz parte dela.”
Recuou, o coração disparado. A atendente deu mais um passo, como se estivesse prestes a envolver na mesma névoa de apatia que parecia controlar o resto da cidade.
“Ou você pode continuar a lutar,” disse a mulher, agora com uma voz mais suave. “Mas a luta será longa, e não há garantias de vitória. A máquina é grande demais, e nós somos pequenos.”
Sem pensar duas vezes, saiu correndo, o som dos carrinhos e das vozes abafadas desaparecendo atrás dela. Ela não sabia para onde estava indo, mas sabia que não podia voltar.
Naquela noite, sentada em seu pequeno apartamento, Refletiu sobre o que havia visto. Sentia-se ainda mais isolada, como se a verdade que descobrira a afastasse de tudo e todos. Sabia que as escolhas diante dela não eram fáceis: continuar navegando contra a corrente, ou se render ao conforto da ilusão.
Mas uma coisa era certa: nunca mais olharia para um prato de comida ou um sonrisal da mesma maneira.
Nos dias que se seguiram, evitou os mercados como quem foge de um veneno. Passava pelas farmácias sem sequer desviar o olhar, como se o simples ato de reconhecer a existência delas pudesse quebrar sua recém-descoberta resistência. Cozinhava com as poucas coisas que conseguia encontrar nas feiras locais, e a dor que antes parecia parte de seu ser começava a desaparecer lentamente.
Mas as dúvidas permaneciam.
Ela se perguntava se realmente havia escapado, ou se estava apenas fingindo que poderia viver fora daquele ciclo. As vozes do mundo ao seu redor continuavam altas comerciais de alimentos milagrosos, promessas de saúde em frascos e caixas coloridas. Tudo parecia seguir como sempre, e sabia que, mesmo que tivesse encontrado um caminho diferente, o ciclo jamais pararia de girar.
Uma tarde, sentada à mesa da cozinha, se pegou olhando para uma maçã que tinha comprado na feira. Estava fresca, perfeita, mas de alguma forma, a dúvida se insinuava.
Será que o ciclo era mesmo escapável? Será que sua pequena revolta fazia diferença? Ou estaria apenas adiando o inevitável, presa em uma ilusão de escolha? E se, no fim, todos aqueles que lutavam por algo diferente estivessem condenados a ser engolidos pelo mesmo sistema que pretendiam desafiar?
Observava a maçã à sua frente, o brilho natural refletindo a luz do entardecer.
Até quando resistiríamos antes de sermos tragados de volta para o conforto do ciclo?
Renato Pittas
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