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Esquizo

Esquizo

Entre as paredes amareladas, o eco das sombras dançava ao ritmo de uma música invisível, quase inaudível, que insistia em repetir-se nas mesmas notas de sempre. Cada som se dissolvia no vazio, como se estivesse aprisionado em uma eterna repetição. As janelas, emolduradas por cortinas gastas, deixavam entrar um fio de luz que parecia indiferente ao tempo, refletindo no chão padrões de uma geometria esquecida. A casa, com seus cômodos contorcidos e móveis que mais pareciam escultura, abrigava não apenas corpos, mas ideias inacabadas, fragmentos de um passado reescrito tantas vezes que já não sabiam onde começavam ou terminavam.

Os versos escritos, antes guardados na mente, agora esbarravam em uma hesitação permanente, como se as palavras tivessem sido soterradas sob o peso da própria existência. A caneta movia-se mecanicamente, rabiscando o papel, mas as frases que surgiam pareciam ecos de algo já dito, sempre voltando ao mesmo ponto de partida, em um círculo vicioso de significado incerto. A invenção do verbo predecessor, a tentativa de dar voz ao inexprimível, era uma ironia cruel; cada nova palavra era apenas uma repetição mascarada, uma falácia que se desenrolava sem fim.

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As pandemias, que antes despertavam medo, agora se tornavam banalidade. Demônios de outras eras, antes temidos e venerados, perdiam-se em meio ao cotidiano, suas presenças reduzidas a meros detalhes obsoletos. A casa, um refúgio de desesperança muda, testemunhava essa diluição de significados, enquanto os demônios dançavam em silêncio nas sombras, transformando antigas ameaças em companhias familiares.

No quadro pré-posto, as cenas se sobrepunham, revelando um caos que, embora assustador, era ao mesmo tempo acolhedor na sua familiaridade. As imagens de outrora, já esmaecidas, rodopiavam nas memórias, lançadas ao vento como palavras perdidas, esquecidas em uma retórica que misturava delírio e realidade, em um caleidoscópio de cores que não faziam mais sentido. A infância, diluída em um turbilhão de descrenças e insônia, parecia um sonho distante, uma fantasia esquizoide que se evaporava em meio às névoas do tempo.

O pandemônio instalava-se nas mentes, não mais como uma força externa, mas como uma inquietação interna, um confronto de pensamentos desordenados que se debatiam em um mar de falanges antagônicas. As ideologias, antes firmes e convictas, agora se desfaziam como areia ao vento, alimentando mistificadores que prometiam salvação em meio ao caos. O isolamento, mais do que físico, era emocional, uma quarentena de sentimentos que trancava cada um dentro de si, criando um universo onde cada sombra era uma lembrança do que poderia ter sido, mas nunca foi.

No fim, as palavras continuavam a fluir, em uma tentativa desesperada de encontrar sentido onde talvez não houvesse nenhum, mas mesmo assim, a escrita persistia, porque, afinal, era a única forma de manter as sombras em movimento.

No canto mais escuro da sala, onde a luz das janelas não alcançava, uma sombra mais densa parecia se destacar das outras. Ela se movia com uma lentidão calculada, como se fosse uma presença consciente, observando silenciosamente as tentativas vãs de dar forma ao incompreensível. Essa sombra, diferente das demais, não era apenas a ausência de luz, mas algo que carregava em si os fragmentos de histórias não contadas, de pensamentos reprimidos que nunca encontraram palavras para se expressar. Ela se arrastava pelas paredes, absorvendo as falas incompletas, os versos esquecidos, os murmúrios de um tempo que parecia congelado na inércia do isolamento.

Cada movimento dessa sombra era acompanhado por um ruído quase imperceptível, como o som de páginas virando-se sozinhas em um livro que nunca foi lido. Era um som que evocava memórias distantes, que pareciam estar à beira de serem lembradas, mas que escapavam no momento em que se tentava capturá-las. A sombra, como um arquivista do subconsciente, registrava cada hesitação, cada pausa, cada falha em articular o pensamento, enquanto a caneta continuava seu traçado irregular sobre o papel.

Lá fora, o mundo continuava a girar, mas dentro daquelas paredes, o tempo seguia um ritmo próprio, ditado pela dança das sombras e pelos ecos das palavras que nunca foram ditas. O isolamento não era mais apenas uma condição imposta, mas uma escolha, uma forma de proteger a mente do pandemônio que se desenrolava além das portas trancadas. O som das falanges antagônicas debatendo-se em conflitos ideológicos não chegava ali, abafado pela densidade do silêncio interno, mas a tensão de suas batalhas podia ser sentida, como uma pressão constante, invisível, mas inescapável.

As promessas de salvação feitas por aqueles que tentavam dominar o pandemônio soavam cada vez mais vazias, suas vozes distorcidas por uma lógica que já não fazia sentido. As quarentenas emocionais, autoimpostas, tornavam-se um labirinto de pensamentos repetitivos, onde cada tentativa de encontrar uma saída levava de volta ao ponto de partida. Mas era nesse labirinto que a sombra ganhava força, alimentando-se das incertezas, dos medos, das falácias inventadas para preencher o vazio.

As paredes da casa, que antes pareciam apenas um cenário estático, começavam a pulsar com uma energia sutil, como se estivessem respondendo à presença da sombra. Os móveis, que haviam se tornado meros espectadores, agora pareciam inclinados a sussurrar segredos, a revelar histórias que estavam guardadas em suas formas, em suas texturas desgastadas pelo tempo. A mesa, onde as palavras eram escritas e reescritas, assumia ares de altar, um lugar sagrado onde o ordinário encontrava o extraordinário, onde o real e o imaginário se entrelaçavam em uma dança sem fim.

Enquanto a sombra continuava a mover-se, as palavras no papel começavam a ganhar vida própria, formando frases que não seguiam mais a lógica do escritor, mas sim a lógica da sombra. As notas de sempre, repetidas à exaustão, agora se metamorfoseavam em algo diferente, algo que escapava à compreensão imediata, mas que carregava um significado profundo, escondido nas entrelinhas.

O isolamento, antes visto como uma prisão, agora revelava-se como um portal para um novo tipo de percepção, onde cada sombra era uma porta, cada silêncio, uma chave. As pandemias de outrora, os demônios obsoletos, tornavam-se apenas pano de fundo para a verdadeira jornada: a busca pelo entendimento do que era, até então, inexplicável.

E a sombra, sempre presente, observava, esperando o momento certo para se revelar completamente, sabendo que, quando o fizesse, nada mais seria como antes.

A sombra, que antes parecia uma entidade com vida própria, começou a desvanecer-se, diluindo-se na realidade daquelas paredes que outrora vibravam com mistério. O altar improvisado, onde as palavras tomavam formas desconhecidas, revelou-se como nada mais que uma mesa comum, com papéis amassados, rabiscados em uma caligrafia irregular, confusa. As notas que antes pareciam carregar um peso insuportável de significado tornaram-se apenas ruído de fundo, um murmúrio indistinto que desaparecia à medida que a mente recobrava o foco.

As sombras nas paredes, tão enigmáticas em seus movimentos, voltaram a ser simples jogos de luz, sem qualquer intenção ou consciência. A casa, que por um momento pareceu uma entidade em si, pulsante e viva, revelou-se novamente como um espaço estático, imóvel, sem nada a oferecer além de sua função original. Os móveis que haviam sussurrado segredos eram, na verdade, apenas objetos inanimados, desprovidos de qualquer misticismo ou história intrínseca.

O pandemônio, que antes agitava as profundezas da mente, perdeu sua força, reduzido a uma série de pensamentos desconexos, reflexos de um isolamento que já não parecia tão ameaçador. As promessas de salvação, as falanges antagônicas, as ideologias em confronto, tudo se mostrou como uma construção mental, uma tentativa desesperada de dar sentido ao que, no fundo, era apenas o vazio de uma rotina repetitiva.

O papel, agora coberto de palavras que antes pareciam carregadas de um significado oculto, mostrou-se repleto de frases incompletas, pensamentos interrompidos, falácias que não conduziam a lugar algum. O esforço de criar algo novo, de inventar o verbo predecessor, revelou-se como uma armadilha autoimposta, onde a busca pelo inatingível não era mais do que um reflexo da própria confusão interna.

Afinal, o isolamento não era um portal, mas apenas um espelho, refletindo as ansiedades, as dúvidas, os medos de uma mente que, ao tentar escapar, acabava por se perder em si mesma. E, ao olhar para esse espelho, a verdade emergia com brutal clareza: as sombras, as falácias, os demônios obsoletos, eram todos criações de uma mente fatigada, que, na falta de outras formas de expressão, havia se perdido em abstrações, buscando sentido onde talvez não houvesse nenhum.

No fim, a desconstrução da abstração trouxe à tona a simplicidade do real: a vida continuava, sem o peso das sombras inventadas, sem a necessidade de preencher o vazio com construções desordenadas. As palavras, antes carregadas de uma intenção oculta, agora eram apenas isso—palavras, fragmentos de uma tentativa de dar forma ao que não se pode expressar completamente. E, assim, a história se dissolveu, como as sombras ao amanhecer, deixando apenas o silêncio reconfortante de uma mente que finalmente encontrou descanso.

Renato Pittas   

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