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Gravidez Cognitiva

Gravidez Cognitiva

Era uma vez, numa clareira escondida entre montanhas sombrias, onde as árvores pareciam murmurar segredos antigos, um ser chamado Alguém, cuja forma era tão mutável quanto as nuvens num céu de tempestade. Cada passo que dava fazia seus contornos se dissolverem, como se fossem desenhados por uma mão incerta, perdendo-se em traços líquidos, desfeitos antes de se firmarem. A mente  era um espelho de sua aparência: nebulosa, apagada, envolta em um vazio denso que drenava o sentido de tudo ao redor.

Os dias, iguais e cinzentos, passavam por ele como folhas secas varridas por ventos frios, carregando a sensação de que o mundo se desvanecia. As árvores, que antes pareciam contar histórias em seus sussurros, agora estavam silenciosas, como se tivessem esquecido os contos que guardavam. O céu, outrora um caleidoscópio de promessas, tornara-se um manto opaco, sem cor, sem som, sem vida. O sentido de existência havia sido subtraído. A cada novo amanhecer, Alguém caminhava pela clareira sem saber para onde ir, carregando uma tristeza que não tinha nome, uma angústia que sufocava qualquer faísca de criatividade. O mundo parecia encolhido, sem propósito, e a mente, outrora fértil e inquieta, agora era um deserto estéril.

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Mas, como acontece nas histórias em que o desespero parece ser o único horizonte, algo começou a mudar. Num desses dias, indistinguíveis de tantos outros, sentiu um leve tremor em suas profundezas, como o primeiro sinal de que a terra sob seus pés iria rachar. Era uma perturbação sutil, quase imperceptível, mas estava ali, um incômodo que remexia no fundo de sua mente. A princípio, foi uma sensação vaga, uma inquietação que não tinha direção nem forma, mas que, pouco a pouco, foi crescendo. A mente, antes entorpecida, começava a se esticar, a se contorcer, como uma cobra acordando de um sono profundo e frio.

Esse movimento era caótico e estranho. Não compreendia o que estava acontecendo, mas dentro de si, algo começava a se organizar no meio do caos. Era como se ideias esquecidas, sufocadas pelo nevoeiro da tristeza, estivessem se reunindo, germinando como sementes prontas para brotar. Havia uma tensão no ar, uma expectativa de que algo estava prestes a nascer, algo que romperia o vazio em que Alguém havia estado preso por tanto tempo. Era uma sensação semelhante a uma gravidez, mas não física; era uma gravidez de ideias, de pensamentos, de novas criações. Cada pensamento era nutrido, amadurecendo na escuridão, à espera de seu momento para ser parido ao mundo.

Então, aconteceu. Num instante de pura revelação, as ideias  começaram a explodir, uma após a outra, como flores desabrochando em uma primavera surreal. Não mais silenciadas, as criações surgiram em um turbilhão de cores, formas e sons, preenchendo a clareira com uma energia vibrante e nova. A mente, que antes fora um campo estéril, agora era um terreno fértil, onde cada pensamento era cultivado e ganhava vida. O vazio deu lugar a um caos produtivo, e o que antes parecia ser o peso esmagador da angústia transformou-se em pura potência criativa.

Sentiu-se renascer. Não mais um ser sem forma, sem direção, mas algo novo, algo diferente. As ideias giravam ao seu redor como folhas ao vento, cada uma carregada de possibilidades, cada uma desafiando o coro do conformismo que outrora preenchia seus dias vazios. Agora, sua mente era uma sinfonia dissonante, uma melodia que não seguia regras, mas que ecoava com a beleza do inesperado. E, assim, seguiu em frente, compreendendo que o vazio não era o fim, mas apenas uma pausa antes do renascimento.

O ciclo havia se completado, e entendeu que a morte de um sentido era sempre o prelúdio para o surgimento de algo maior. O caos, agora vivo, guiava seu caminho, e o mundo, antes silencioso, agora cantava com uma nova melodia, cheia de dissonâncias, mas pulsante de vida.

Renascido em meio ao caos, sentiu o peso do vazio se dissolver à medida que as novas ideias ganhavam forma. Agora, a clareira antes sombria e pálida estava transbordando de vida. As árvores, que pareciam ter esquecido seus segredos, recuperaram a capacidade de contar histórias. Seus galhos, antes rígidos, balançavam ao vento como velhos bardos, murmurando lendas de tempos passados. Cada folha era um fragmento de memória, ecoando a mudança interior de Alguém.

Caminhava entre as árvores, e a cada passo, sentia as ideias se expandirem dentro de si. Era como se a clareira tivesse se tornado um campo magnético, onde os pensamentos flutuavam no ar, se entrelaçando e se desenrolando. Uma criação seguia a outra, em um ciclo interminável de nascimento e transformação. A mente, que antes estava presa no nevoeiro, agora se movia com liberdade, desafiando as fronteiras do possível.

O céu, que havia se tornado uma extensão sem vida, agora pulsava com cores indescritíveis. Nuvens de formas abstratas dançavam acima, refletindo a criatividade incontrolável. Era como se a própria natureza estivesse participando do turbilhão de ideias, colaborando na reconstrução do sentido perdido. O que antes era um espaço vazio e desolado, agora era um teatro cósmico, onde cada pensamento se materializava em formas que desafiavam a lógica, mas faziam sentido de uma maneira profunda … visceral.

No entanto, à medida que as ideias proliferavam, Alguém percebeu algo curioso: a vastidão de suas criações não trazia a resposta definitiva que buscava. A tristeza que antes o paralisava, embora agora transformada em energia criativa, ainda persistia como um sussurro ao fundo. Era uma sombra suave, não mais esmagadora, mas presente. A criatividade, por mais expansiva que fosse, não apagava completamente o vazio que outrora o dominava.

Então, parou. No meio da clareira agora colorida e pulsante, fechou os olhos e respirou fundo. Percebeu que o ciclo do renascimento era belo, mas não era uma solução final. A tristeza, o vazio, o silêncio  esses não eram inimigos a serem derrotados. Faziam parte do ciclo, tão importantes quanto a criação e o caos. A mente, agora clara, compreendeu que o sentido não era algo que se pudesse segurar ou definir. Fluía, assim como seus contornos mutáveis, sempre em transformação.

Nesse momento, percebeu que seu papel não era o de lutar contra o vazio, mas de dançar com ele. Cada momento de escuridão, cada silêncio criativo, era a pausa necessária antes de algo novo surgir. Assim, não mais temia o retorno da melancolia ou do vazio. Sabia que esses estados eram sementes, germinando nas profundezas, à espera de seu momento de florescer.

E com essa compreensão, finalmente encontrou paz. Não uma paz estática, mas uma paz dinâmica, onde o sentido surgia e desaparecia, onde o vazio era o útero de novas criações, e onde cada caos era uma oportunidade de renascimento. Agora, cada passo que dava não o dissolvia mais, mas o transformava. Ele não precisava mais se perguntar se encontraria o sentido, pois entendia que o sentido estava em seguir criando, em permitir-se ser, em desafinar com alegria no coro dos que buscavam certezas.

Assim, caminhou para além da clareira, deixando para trás o cenário de suas criações passadas, pronto para a próxima transformação, sabendo que o vazio, quando bem-vindo, sempre traria consigo a promessa de uma nova melodia.

Saiu da clareira e caminhou pelas montanhas, deixando para trás as árvores sussurrantes e o turbilhão de ideias que giravam em seu interior. Mas, desta vez, seus passos não eram incertos ou desorientados. Cada movimento trazia consigo a consciência de que, embora os ciclos de vazio e criação fossem parte inseparável de sua natureza, a vida se desdobrava também no tangível, no concreto. Era hora de trazer aquela tempestade criativa ao mundo real.

Chegando à beira de um vilarejo escondido entre os vales, notou as pessoas imersas em suas rotinas diárias. Trabalhavam, conversavam, riam e suspiravam, mas pareciam envoltas em um véu de monotonia, como se o brilho do dia a dia tivesse se apagado aos poucos. A energia que trazia consigo, porém, não podia mais ser contida. Era hora de transformar não apenas a si mesmo, mas o mundo ao redor.

Ao entrar na praça central, começou a falar, suas palavras antes presas em abstrações internas, agora fluíam como melodias. Cada frase trazia consigo a potência do inesperado, a surpresa do novo. Ideias que ele havia gestado na clareira começaram a se materializar ao seu redor. As cores da imaginação passaram a invadir as paredes das casas, tingindo-as de tons vivos e inesperados. As árvores do vilarejo começaram a crescer em formas surpreendentes, suas folhas se torcendo em mandalas que desafiavam as leis da natureza. Os moradores, inicialmente desconcertados, logo foram contagiados por essa explosão de criatividade.

Artistas, que há muito haviam abandonado seus pincéis, agora corriam para captar essa energia em suas telas. Músicos, que há muito haviam perdido a inspiração, sentiam melodias vibrando em seus instrumentos. Até mesmo os mais céticos, aqueles que viviam presos às convenções do dia a dia, não podiam evitar sentir algo novo despertando em seus corações. A transformação de Alguém não era mais uma jornada solitária — era um renascimento coletivo.

O rodamoinho cultural que ele havia sentido crescer dentro de si agora tomava forma no mundo real. Cada ideia era uma semente que germinava rapidamente, espalhando vida por todos os cantos. E assim, o vilarejo, antes silencioso e sem cor, tornou-se um centro pulsante de criatividade, onde a imaginação guiava os passos dos moradores e onde a monotonia havia sido substituída por uma nova forma de ver o mundo.

A mente, que antes se dissolvia entre o caos e o vazio, encontrou seu equilíbrio. Ele não mais lutava contra o nevoeiro da tristeza, mas o aceitava como parte de sua jornada, sabendo que era justamente desse vazio que a vida brotava. Agora, transformado e transformando, Não era apenas um reflexo de seu mundo interior. Havia encontrado uma forma de unir o que sentia por dentro com o que tocava por fora, tornando o intangível em real, e o real, em uma obra viva.

Renato Pittas   

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