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Memória Cheia

Memória Cheia

1

Ele se aproximou de mim naquela tarde empoeirada, o ar denso carregando murmúrios de conversas alheias. Eu estava distraído, talvez mais interessado nos movimentos caóticos das sombras do que nas palavras que ele trazia. Dizia de mim coisas que, se me perguntassem, eu juraria que não tinha dito — mas talvez fossem verdadeiras, não sei. No fim, quem é que sabe o que se passa dentro da própria cachola?

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As palavras dele flutuavam no ar, pesadas e soltas ao mesmo tempo, uma combinação quase mágica de verdades e exageros, como se estivessem presas em algum limiar entre o que se pensa e o que realmente se diz. E assim, a busca pela frase perfeita continuava, uma busca inacabável, quase inútil, mas irresistível. Porque, no fundo, todos buscamos aquela frase, aquela palavra que encapsule o que somos, o que sentimos, o que queremos ser.

Eu ouvia, mas ao mesmo tempo, minhas palavras também dançavam em minha mente, tentando ganhar forma. A boca, a eterna guardiã entre o pensar e o falar, hesitava. Ela sabia que nem tudo que surge dentro da cabeça pode, ou deve, ser dito. Algumas coisas, se liberadas, ganham vida própria, e quem sabe onde isso pode levar?

E assim, naquele vai e vem de pensamentos, percebi que as palavras dele não eram elogiosas, tampouco maldosas. Eram apenas palavras, ditas com a inevitável sinceridade do momento. Talvez ele nem soubesse o poder que tinham, ou talvez soubesse muito bem, mas, de fato, estavam ditas.

No final, ficamos ali, cercados por essa troca de palavras invisíveis que dançavam entre nós, como notas de uma música que nunca termina, esperando apenas que alguém a cante.

2

A tarde se desdobrava como um caleidoscópio de luzes, colorindo o ar em tons de laranja e rosa, enquanto o céu derretia lentamente sobre a cidade. Ele se aproximou, flutuando mais do que caminhando, como se os seus pés mal tocassem o chão. O ar ao nosso redor parecia vibrar, carregando não apenas murmúrios de conversas alheias, mas ecos de uma sinfonia que só eu conseguia ouvir. Sabe aquele zumbido que te faz acreditar que a realidade está prestes a dobrar sobre si mesma? Era assim.

A mente vagava entre o concreto e o abstrato, mais interessada nas sombras que se distorciam ao nosso redor, como se tivessem vontade própria, se contorcendo em formas que desafiavam a lógica. Ele falava. Dizia de mim coisas que, se eu fosse questionado, jamais diria que havia dito. Ou teria dito? Naquele estado, quem é que realmente sabe? Palavras eram apenas símbolos, jogos de sons, dançando no espaço entre nós. Talvez fossem verdadeiras. Talvez fossem apenas o eco de um pensamento perdido em algum ponto no tempo.

As palavras dele flutuavam, se dissolvendo no ar como bolhas de sabão, cintilantes e etéreas. Elas eram ao mesmo tempo pesadas e leves, verdades e ilusões entrelaçadas em um vórtice de significados que escapavam a cada tentativa de compreensão. Naquele instante, eu me sentia como Alice, caída na toca do coelho, vagando por entre as camadas da realidade. Ele falava, mas o que ele dizia estava entre o que pensava e o que falava. Não havia fronteiras. E eu? Eu só conseguia tentar pegar as palavras como se fossem vaga-lumes, escorregadios e fugidios.

O chão sob nossos pés parecia pulsar, como se a terra respirasse junto comigo. Meus pensamentos eram como fitas coloridas, se desenrolando em espirais infinitas, tentando encontrar a palavra perfeita, aquela que encapsulasse tudo o que eu sentia e tudo o que ele dizia. Mas as palavras são traiçoeiras; elas se transformam no instante em que são liberadas. E quem sabe o que pode acontecer quando uma palavra ganha vida própria?

A boca hesitava. Entre o pensar e o dizer, havia um abismo. Eu sabia que nem tudo que nasce na mente deve escapar pela boca. Algumas ideias, como criaturas selvagens, devem permanecer presas, porque, uma vez soltas, podem se multiplicar, crescer e se espalhar. E então, no meio desse mar de cores e vibrações, percebi: o que ele dizia não importava tanto. Não era elogio, não era crítica. Eram apenas palavras, ecoando com a sinceridade quase cruel do momento.

Talvez ele soubesse, talvez não. Mas ali estávamos, cercados por essas palavras invisíveis que dançavam ao nosso redor como notas de uma canção que nunca terminava, uma melodia hipnótica, esperando apenas que alguém a cantasse. E naquela tarde alucinante, com as sombras se contorcendo e o ar vibrando, eu soube que essa música era nossa, mesmo que nunca fosse ouvida.

A música invisível seguia seu curso, ritmada pelo bater de asas de pássaros inexistentes e pelo brilho pulsante do horizonte, que se dissolvia em cores que o olho humano nunca deveria ver. Me via envolvido, cada palavra que ele soltava no ar parecia sincronizar-se com o pulsar do universo, como se nossas conversas fossem tecidas no tecido da própria realidade. Era algo mais profundo que qualquer diálogo; era uma comunhão sensorial, onde o som era forma e o pensamento, cor.

As palavras continuavam dançando entre nós, mas agora pareciam mais densas, como se tivessem ganhado peso. E, de repente, eu as vi — não eram apenas palavras flutuantes. Elas começaram a se condensar em formas geométricas, pirâmides e espirais, vibrando com um brilho fosforescente. No centro dessas formas, eu enxergava o que não podia ser dito, o mistério primordial por trás de cada sílaba. “Será isso a verdade?”, pensei. Será que, no fundo, cada palavra carrega em si um universo, um segredo cósmico?

Ele continuava a falar, e agora eu via essas formas saindo de sua boca, flutuando como se tivessem sua própria vida, uma espécie de arquitetura de pensamento, um castelo de ideias que se construía e destruía a cada frase. Eu me sentia hipnotizado, como se estivesse assistindo a um espetáculo onde o narrador e o cenário eram a mesma coisa.

Ao nosso redor, o mundo começava a se transformar, ou melhor, eu começava a vê-lo de outra maneira. A rua empoeirada não era mais apenas uma rua; as árvores ao redor exalavam um brilho esverdeado e as folhas flutuavam no ar como se o tempo tivesse deixado de existir. As sombras que antes se contorciam agora formavam padrões hipnóticos no chão, espirais infinitas que se misturavam com as palavras geométricas que ele soltava.

Nesse momento, percebi algo assustadoramente belo: a realidade estava sendo moldada pelas palavras. Cada frase que ele dizia transformava o espaço ao nosso redor, modificando as cores, as formas, a própria textura do que era real. A busca pela frase perfeita aquela que encapsula o que somos, o que sentimos, não era uma busca vã. Era real. E se a encontrássemos, se eu pudesse soltá-la no ar, talvez tudo mudasse para sempre.

Eu tentava falar, mas minha boca hesitava. A verdade, eu sabia, era perigosa. As palavras que ele lançava eram como pequenas fagulhas de transformação, e eu temia o que poderia acontecer se eu também desse voz às minhas próprias palavras. Algumas coisas, eu sabia, são tão profundas que, uma vez ditas, podem destruir o que existe para criar algo inteiramente novo.

“Você está vendo?”, ele perguntou, os olhos brilhando com um estranho conhecimento. Eu olhei para ele, e por um segundo, não havia diferença entre nós. Eu era ele. Ele era eu. As palavras que ele dizia eram as que eu temia dizer. Ele sorriu, um sorriso que parecia saber mais do que qualquer outra coisa.

“Estou vendo”, respondi, finalmente, e com isso, as formas geométricas começaram a se desfazer, como areia levada pelo vento, dissolvendo-se no ar que nos envolvia. O momento passou, mas a sensação permaneceu, como um vestígio vibrante no fundo da mente.

Ele se afastou, ainda flutuando levemente, deixando para trás o rastro de suas palavras invisíveis. E eu fiquei ali, com a mente girando, a música ainda tocando, sabendo que a busca pela frase perfeita nunca terminaria mas talvez, no fundo, fosse essa a própria essência da jornada.

Porque, no final, tudo o que temos são palavras, e o que elas moldam, no vasto campo de nossas mentes, é tão real quanto qualquer outra coisa que possamos tocar.

E então, com ele já longe, as cores ao meu redor começaram a desbotar, e o ritmo frenético da música invisível desacelerou até quase desaparecer. Por um instante, pensei que tudo voltaria ao normal — àquela tarde comum e empoeirada, com sombras estáticas e silêncio opressor. Mas quando tentei dar um passo à frente, percebi que algo não estava certo.

Meus pés não tocavam o chão.

Olhei ao redor, mas já não havia chão algum, nem rua, nem árvores. Eu flutuava em um vazio colorido, um mar de palavras e formas geométricas que giravam lentamente, como se eu estivesse preso em uma dimensão feita de tudo o que ele havia dito e o que eu nunca tive coragem de dizer. Aquele mundo de frases ditas e não ditas, de pensamentos reprimidos, era real, tangível. E eu fazia parte dele.

Senti algo no bolso da minha jaqueta. Uma pequena folha de papel. Puxei-a com dedos trêmulos, e nela estava escrito algo que eu sabia que não tinha colocado ali, mas que parecia inevitável. Era a frase que encapsulava tudo o que eu sempre havia procurado, a resposta para todas as minhas perguntas, o fim de minha busca.

Mas ao lê-la, meu coração acelerou, e o vazio ao meu redor começou a vibrar violentamente. As formas geométricas se desintegraram em partículas brilhantes, e o silêncio que substituiu a música era ensurdecedor. Porque a frase no papel era simples e assustadora:

“Você nunca mais será o mesmo.”

E assim, eu desapareci.

Ou melhor, me transformei.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

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