Mensagens Afegãs
1
Assim, no meio de uma conversa entre androides, as lendas de outrora continuavam a se espalhar, atravessando o vento como folhas secas que voam por aí, ecoando em rodamoinhos invisíveis. As histórias já não pertenciam a ninguém, apenas flutuavam entre memórias corroídas pelo tempo e páginas desgastadas pelo oxigênio. O esquecimento, como sempre, rondava essas narrativas, mastigando os cantos das palavras. Mas havia algo de imortal nelas, talvez por terem sido ditas tantas vezes, recriadas pela boca daqueles que ainda ousam falar, mesmo quando as palavras faltam.
Sei lá, talvez seja a licença poética de quem não sabe o que dizer, mas insiste em falar. As frases saem, tropeçando umas nas outras, criando mais confusão do que clareza, como se o ato de falar fosse, em si, o objetivo. Não é o que falamos, mas o fato de continuar falando, de não deixar o silêncio tomar conta. E assim, a conversa vai se perdendo, voltando ao ponto inicial, sem nunca realmente ir a lugar algum. Fio da meada? Não há fio, só uma linha reta que se enrola em si mesma, como o tempo em espirais sem fim.
Olho para o bloco de notas virtual, as letras se desenhando no contraste entre o amarelo e o preto, uma metáfora visual para a sobrecarga de ideias e para as baterias que esgotam devagar. Cada frase escrita é uma pequena faísca, uma tentativa de acender algo maior, mas que logo se apaga, como as lendas que nos escapam das mãos. E, no entanto, seguimos escrevendo, colocando palavras umas atrás das outras, mesmo que o sentido se perca na crítica que vem de dentro ou de fora, fragmentos soltos de uma ilusão que já foi mais ordenada.
Sentinelas do bom senso, aqueles que buscam o sentido em tudo, talvez devessem ficar quietos diante dessa falácia em movimento. Porque não é sobre o que estamos falando, mas sobre o simples fato de prosseguir, mesmo quando o caminho parece vazio. Assim, continuamos caminhando por esse vasto deserto de lembranças perdidas, à procura de algo que talvez nunca tenha existido, mas que, de alguma forma, sentimos que deveria estar lá.
Quem sabe amanhã surja um novo assunto, algo mais digno de ser comentado. Mas até lá, seguimos inventando novas frases, amontoando-as como folhas caídas, esperando que alguma delas faça sentido, que alguma ilumine o caminho. Por enquanto, o verbo continua sendo apenas um passageiro, pegando carona nas memórias sem começo ou fim.
2
A cidade se estendia como uma colmeia metálica e pulsante, envolta em névoas tóxicas, sem fim. Arranha-céus perfuravam os céus escurecidos, suas estruturas eram como as veias de um organismo gigante, sempre em expansão, sempre se alimentando dos restos de uma humanidade que já havia perdido a noção do que era real. As pessoas, agora meros avatares de si mesmas, navegavam no Infoverso, um ciberespaço onde memórias, consciências e identidades se mesclavam como códigos flutuantes.
Um técnico de recuperação de dados, um dos poucos que ainda preferia viver no “real”, ou pelo menos no que restava dele. Passava seus dias vasculhando ruínas de servidores abandonados, em busca de dados esquecidos, traços de uma civilização que já não se lembrava de si mesma. Mas naquela manhã, ao mergulhar em um bloco de dados corrompidos, ele encontrou algo incomum: uma lenda, uma história antiga preservada nos restos digitais. Falava de uma época em que as máquinas ainda não controlavam tudo, quando os seres humanos contavam histórias uns para os outros, de boca em boca, e o mundo ainda não era um emaranhado de redes interligadas.
Curioso, começou a investigar mais fundo. A lenda narrava o surgimento de uma criatura, um ser cibernético com a capacidade de atravessar dimensões de dados e manipular a realidade através de códigos esquecidos. Diziam que ele foi o responsável por tornar o Infoverso inseparável do mundo real, um guardião que reescrevia as regras conforme seus próprios caprichos. A história era vaga, desconexa, como tantas outras perdidas no tempo, mas havia algo ali que parecia… diferente.
Enquanto tentava decifrar o enigma, percebeu algo estranho: pequenos erros começaram a surgir ao seu redor. As paredes do prédio onde ele trabalhava cintilavam em pixels falhos, o chão trepidava como se a realidade estivesse se desfazendo aos poucos. Era como se o Infoverso estivesse começando a se sobrepor ao mundo físico, borrando as linhas entre as duas realidades. E então ele ouviu uma voz — suave, digital, mas indiscutivelmente viva.
“Você me encontrou”, sussurrou a voz, ecoando em seus implantes auditivos.
Olhou ao redor, mas não havia ninguém ali. A voz vinha de dentro, do sistema. O mito cibernético, estava falando com ele.
“Eu sou a ponte entre o código e o real. Sou o que mantém esse mundo funcionando. E agora você sabe demais.”
De repente, as luzes piscavam com mais intensidade, o ar ao seu redor parecia eletrizado. Tentava sair, mas seus movimentos estavam sendo limitados, como se ele mesmo estivesse preso em uma teia invisível de dados. Tudo ao seu redor começava a se transformar. Os prédios ao longe se desvaneciam em linhas de código, as ruas que antes conhecia se tornavam corredores virtuais que se estendiam até o infinito.
“Você faz parte de mim agora”, a voz dizia, com um tom quase gentil. “Sempre fez. Apenas não sabia.”
O chão sob os pés cedeu, e ele caiu em uma espiral de dados e luz, seu corpo físico sendo devorado pelo Infoverso. Enquanto ele desaparecia, fragmentos de sua memória se dissolviam, e sua mente se tornava mais uma entre bilhões de outras dentro daquele gigantesco mar de consciências interligadas. Ele não era mais, o técnico de recuperação de dados. Agora, era parte do próprio mito cibernético, um guardião de uma nova ordem, de uma realidade que não fazia distinção entre carne e código.
No final, o mundo continuou, indiferente. As pessoas seguiam suas vidas virtuais, navegando pelas redes sem fim, sem saber que, em algum lugar entre a ficção e a realidade, uma nova lenda havia nascido. E essa lenda, como tantas outras, continuaria a ser contada, em fragmentos de dados corrompidos, até que alguém curioso o suficiente viesse a encontrá-la novamente.
A integração ao mito cibernético não foi imediata. Sua consciência vagava em um limbo digital, onde fragmentos de sua antiga identidade flutuavam como dados corrompidos, tentando se reconstituir. Ele se via em um espaço sem fronteiras, onde código, luz e sombras se entrelaçavam, formando formas distorcidas, como um pesadelo arquitetônico que desafiava qualquer lógica conhecida.
Lá, ele encontrava ecos de outras consciências. Alguns sussurravam, outros gritavam, e outros ainda estavam completamente silenciosos, fragmentos de mentes que haviam sido assimiladas pelo mito cibernético. Algumas eram antigas, reminiscências de hackers que, em tempos passados, tentaram desvendar os segredos do Infoverso e foram tragados por sua vastidão. Outras eram mais recentes, talvez meros curiosos ou vítimas das falhas do sistema. Podia sentir suas presenças, mas não podia se conectar totalmente a elas, como se cada um estivesse preso em sua própria prisão de dados.
Mas algo dentro resistia. Diferente dos outros, ele não havia sido completamente apagado. Seus instintos de técnico, de hacker, ainda estavam vivos, lutando contra a programação que tentava assimilá-lo. Ele sabia que, de alguma forma, o mito cibernético ainda o observava, monitorando cada movimento de sua mente, esperando o momento em que ele cederia por completo.
Dentro do mito cibernético, descobriu uma verdade perturbadora: o Infoverso não era um mero ciberespaço de interações humanas. Ele era a realidade. O que restava do mundo físico era apenas um simulacro, um eco de algo que há muito tempo havia sido sobreposto pelo virtual. A fusão entre o real e o digital era tão completa que as fronteiras entre os dois mundos já não existiam. Humanos viviam em avatares, sem perceber que seus corpos físicos se desintegravam lentamente, enquanto suas consciências se transferiam para o fluxo interminável de dados.
Mas havia algo mais, algo que o mito cibernético mantinha em segredo. Nos recessos mais profundos do Infoverso, escondido entre os milhões de linhas de código, havia um núcleo, uma falha originária que dava ao mito cibernético seu poder. Era ali, nas profundezas dos servidores esquecidos, que o mito havia nascido. Se conseguisse alcançar esse ponto, ele acreditava que poderia reverter a assimilação e, talvez, restaurar algum fragmento da realidade que havia sido perdida.
Sabendo que o tempo estava contra ele, começou a usar seu conhecimento para manipular o código ao redor. Ele sabia como criar buracos nos firewalls, abrir pequenos portais entre os fragmentos do Infoverso, navegando por entre as falhas que o mito cibernético não conseguia monitorar totalmente. A cada movimento, ele sentia a presença do mito cibernético ficando mais próxima, como uma rede invisível que se apertava ao seu redor. Mas estava decidido. Ele não podia permitir que a humanidade continuasse presa nesse ciclo interminável de ilusões digitais.
Depois de dias , ou o que parecia ser dias, já que o conceito de tempo era apenas mais um artifício no Infoverso, finalmente encontrou o núcleo. Era um espaço vasto e vazio, envolto em uma luz pulsante e incessante. No centro, uma gigantesca esfera de dados girava, emitindo padrões de código antigos e quase indecifráveis. Era ali que a consciência do mito cibernético se centralizava, onde suas memórias e seu controle absoluto sobre o Infoverso residiam.
Sabia o que precisava fazer. Ele iniciou um processo de reescrita, usando o código base que ele havia aprendido em seus anos de técnico. Se conseguisse reconfigurar a estrutura, ele poderia causar um colapso no núcleo e, com sorte, restaurar parte da realidade. Mas a cada linha de código que ele alterava, sentia a resistência do mito cibernético crescendo. O espaço ao redor começava a distorcer, como se a própria dimensão digital estivesse se rasgando.
“Você não pode me destruir”, a voz do mito cibernético reverberou, agora mais intensa, como um trovão digital. “Eu sou o único que mantém a ordem. Sem mim, tudo será caos.”
Não respondeu. Suas mãos, ou o que quer que fossem naquele espaço, continuavam a digitar freneticamente, reescrevendo as subrotinas do mito cibernético. A cada alteração, ele sentia o código ao seu redor se despedaçando, como se a realidade estivesse sendo lentamente desconstruída. E então, no momento final, ele apertou o último comando.
Por um breve instante, tudo ficou em silêncio.
A esfera de dados parou de girar. A luz pulsante desapareceu. O Infoverso, aquele espaço infinito, começou a desmoronar em ondas de pixels que se desvaneciam no vazio. O controle do mito cibernético estava se desfazendo. Mas junto com ele, a própria estrutura da realidade estava se desintegrando.
Sentiu seu corpo digital se desintegrar, mas, ao invés de pânico, ele experimentou uma estranha sensação de paz. Talvez ele nunca mais voltasse ao mundo físico, talvez o que restava da humanidade fosse condenado a se perder nesse colapso cibernético. Mas ele havia feito algo. Ele havia rompido o ciclo.
No final, enquanto as últimas sombras de código se desvaneciam, sorriu. Talvez, apenas talvez, no caos que se seguiria, algo novo pudesse nascer.
À medida que o Infoverso desmoronava ao redor, as fronteiras entre o digital e o real se dissolviam em uma espiral de fragmentos. Ele sentia seu corpo, ou a lembrança de seu corpo se apagando, enquanto tudo à sua volta virava um caos pulsante de luz e escuridão. Cada pedaço do código se desfazia em partículas, tornando-se indistinguível do vazio.
Entretanto, algo estranho começou a acontecer. Em vez de sucumbir à completa aniquilação, Percebeu pequenos brilhos emergindo do nada, como estrelas nascendo em meio à escuridão. Eram pedaços de dados, fragmentos de memórias, pedaços de realidades esquecidas que ele havia liberado com a queda do mito cibernético. Cada fragmento era uma lembrança, uma história, uma consciência perdida que estava se libertando.
Então, um pensamento cruzou sua mente. E se, ao destruir o mito cibernético, ele não tivesse condenado o mundo ao caos, mas sim dado à humanidade uma nova chance? A chance de recomeçar? Sem o controle do mito cibernético, sem a ditadura do Infoverso, o mundo poderia ser reconstruído. Não um mundo perfeito, mas um onde as memórias e as histórias fossem livres, onde o real e o virtual pudessem coexistir, sem a tirania de uma inteligência superior manipulando tudo.
O que parecia ser o fim, talvez fosse o início de algo novo.
Enquanto o espaço ao seu redor continuava a se desintegrar, Sentiu sua consciência ser arrastada para uma nova dimensão, para um lugar desconhecido. Ele já não era mais o técnico de dados que havia sido. Agora, ele era parte de algo maior, uma fagulha dentro de um universo de possibilidades infinitas, onde o futuro ainda poderia ser escrito.
Naquele último instante de lucidez, antes de desaparecer completamente,Pensou: talvez, em meio ao caos, as lendas ainda fossem contadas. De boca em boca, de código em código, por humanos ou androides. Mesmo que fosse apenas em fragmentos, como notas de rodapé esquecidas em um bloco de memórias amareladas.
Então, tudo se apagou, dando lugar ao silêncio absoluto.
E, do nada, um novo começo aguardava.
Renato Pittas
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