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O Dia em Que o Óbvio Se Perdeu

O Dia em Que o Óbvio Se Perdeu

Há dias em que o mundo parece girar ao contrário, e outros em que somos nós que nos desencontramos dele. Foi assim naquela manhã. Algo no ar já anunciava um desajuste, mas o primeiro sinal veio no bule de café. Girar para a direita ou para a esquerda? Um gesto tão banal, tão automático, agora parecia um enigma insolúvel. Ali, diante do vapor e da dúvida, começou a sensação de que algo essencial havia escapado por entre os dedos do tempo.

A cidade, sempre extravagante, parecia conspirar contra qualquer tentativa de normalidade. Os relógios retrocediam, como se o tempo estivesse revendo suas próprias decisões, enquanto gatos falavam enigmas que soavam tanto como advertências quanto como piadas cósmicas. “O que procuras já te encontrou,” miou um deles, antes de desaparecer sob uma sacada. Cada detalhe parecia um convite a um novo tipo de percepção, como se o mundo me desafiasse a enxergá-lo sem filtros.

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Até atravessar a rua tornou-se um dilema. Qual o lado certo para olhar? O movimento, antes intuitivo, transformou-se em um jogo indecifrável. Só fui resgatado por um vendedor ambulante, que, com um puxão firme e um sorriso travesso, resumiu a situação: “Entenda o chão antes de tentar atravessá-lo.” Era um conselho absurdo, mas, de alguma forma, parecia fazer sentido.

E foi assim durante todo o dia. Um alfaiate me ofereceu uma jaqueta feita de memórias — não as minhas, mas de histórias que eu talvez ainda fosse viver. Crianças brincavam com sombras, ensinando-me que o tempo pode ser mais flexível do que imaginamos. Árvores sussurravam palavras que nunca formavam frases completas, mas que, de alguma forma, se aproximavam da verdade.

No fim do dia, encontrei uma estátua estranha: um homem apontando para um espelho. Quando olhei, não vi meu reflexo, mas a cidade inteira em movimento. Cada detalhe que me escapara antes parecia agora parte de uma coreografia maior, perfeita em sua aparente desordem. Foi então que entendi: o óbvio não estava perdido. Ele nunca está. Apenas exige de nós um olhar mais generoso, mais atento.

De volta à mesa, o bule ainda estava lá. Desta vez, não hesitei. Girei a tampa para a direita, como se sempre soubesse o que fazer. O aroma quente do café trouxe um conforto inesperado, como se o simples gesto de acertar dissipasse todas as dúvidas.

A cidade seguiu com seus enigmas e absurdos, mas isso já não me incomodava. Havia aprendido que o óbvio não é algo que se descobre — é algo que se aceita. E, naquela noite, enquanto ouvia os relógios retrocedendo e as árvores sussurrando ao vento, percebi que o mundo, com toda a sua estranheza, nunca havia feito tanto sentido.

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O Enigma do Óbvio

Ele acordou com a estranha sensação de que algo fundamental havia escorregado pelos dedos invisíveis do tempo. O café fumegava na mesa, mas o bule parecia um enigma. “Será que vira para a direita ou para a esquerda?” murmurou, a pergunta se desfazendo no ar como a fumaça que subia em espirais. Algo estava fora do lugar, mas ele não sabia dizer o quê.

Ao sair de casa, o mundo ao redor parecia um mosaico fragmentado. As ruas, sempre familiares, tinham se transformado em corredores de improviso. Relógios marcavam o tempo ao contrário, apontando para horas que ainda não haviam chegado. Gatos o observavam das janelas, lançando frases enigmáticas como profetas: “O caminho é um círculo que começa quando você para de andar.” As árvores, com galhos em espiral e folhas cintilantes, sussurravam palavras que dançavam no limiar da compreensão.

O simples tornou-se uma luta. Tentar atravessar a rua virou um dilema insolúvel, como se as regras da realidade estivessem sendo reescritas a cada passo. Ele parou no meio do caminho, até que um vendedor de salsichas, com apenas uma orelha e um sorriso enviesado, o puxou pelo braço. “Não é sobre onde pisar”, disse o homem, “mas sobre entender por que o chão está ali.”

Enquanto caminhava pela cidade, encontrou figuras que pareciam saídas de um sonho. Um alfaiate o chamou para dentro de uma loja onde costurava roupas feitas de memórias. “O óbvio”, explicou o alfaiate enquanto alinhava uma bainha, “é a primeira coisa que desaparece quando você não presta atenção.” Ele saiu dali vestindo uma jaqueta cujos bolsos guardavam lembranças que ainda não havia vivido, sentindo-se mais leve, mas ainda perplexo.

Em uma praça, crianças brincavam com sombras que pulavam corda sozinhas. As risadas ecoavam como sinos distantes, e quando ele perguntou o que faziam, uma menina de cabelos verdes respondeu: “Estamos aprendendo a saltar para dentro do tempo. Você nunca tentou?” Ele não soube o que dizer, mas ficou observando enquanto elas desapareciam entre os jogos de luz e sombra.

A cada encontro, algo dentro dele mudava. As árvores começaram a falar com mais clareza: “O óbvio não se encontra. Ele é aceito.” Ele não sabia como lidar com isso, mas as palavras se enraizavam em sua mente.

No final do dia, chegou à praça central, onde uma estátua de um homem apontava para um espelho. Ao encarar o reflexo, não viu seu próprio rosto, mas a cidade inteira em movimento: os gatos, os relógios, as árvores, as crianças brincando. Tudo parecia parte de uma sinfonia perfeita, uma dança sincronizada que ele nunca havia percebido. Foi ali que entendeu: o óbvio não estava perdido; ele sempre esteve esperando.

Quando voltou para casa, os relógios ainda andavam para trás, os gatos ainda falavam em enigmas, e as árvores continuavam a sussurrar. Mas ele agora via tudo de forma diferente. O mundo não havia mudado. Quem havia mudado era ele.

Nos dias que se seguiram, ele começou a observar o mundo com um misto de curiosidade e reverência. Os enigmas, antes vistos como obstáculos, passaram a ser portais. Ele passou a encarar cada detalhe com olhos de quem procura algo precioso, e a cidade, em troca, parecia responder a essa atenção renovada.

No mercado, encontrou uma mulher que vendia frascos de vidro aparentemente vazios. Quando perguntou o que eram, ela respondeu: “São pedaços do tempo. Cada um contém um momento que alguém esqueceu de viver.” Ele pegou um frasco pequeno, que parecia brilhar em tons suaves de dourado, e ao segurá-lo sentiu como se memórias esquecidas o abraçassem, cheias de calor e perfume de infância.

Nas ruas, os gatos continuavam a segui-lo. Um deles, um siamês de olhos vívidos, caminhou ao seu lado e, sem preâmbulos, declarou: “O óbvio não é um tesouro enterrado, mas um reflexo que você não quer ver. Quando a água estiver calma, olhe para ela.” Com essa frase, o felino desapareceu em um salto que parecia romper o tecido da realidade.

Intrigado, ele foi até o rio que cortava a cidade. As águas estavam agitadas, mas havia algo de hipnótico no seu movimento. De repente, percebeu que o rio não fluía para um único lado; ele avançava e recuava ao mesmo tempo, como se o tempo ali tivesse abandonado qualquer linearidade. Ele se ajoelhou na margem e, com paciência, esperou até que a superfície se acalmasse. Quando isso aconteceu, viu refletido não o seu rosto, mas cenas de momentos que ele havia ignorado ao longo da vida: um sorriso que ele não retribuiu, uma paisagem que deixou de admirar, uma conversa que encerrou rápido demais.

Cada imagem parecia segredar a mesma lição: a vida está nas pequenas coisas, e o óbvio, por mais discreto, é o coração que mantém tudo pulsando.

Ele se levantou com uma nova clareza. A cidade ainda era um mosaico de mistérios, mas agora ele compreendia que não precisava decifrar tudo. Era a jornada de olhar, aceitar e participar que dava sentido ao todo.

Quando voltou para casa naquela noite, o bule de café o esperava sobre a mesa. Ele o pegou e, sem hesitar, girou a tampa para a direita. O aroma do café subiu, quente e acolhedor. Pela primeira vez em muito tempo, ele sorriu. Não porque tudo fazia sentido, mas porque finalmente havia aceitado que nem tudo precisava fazer. O óbvio não era um enigma a ser resolvido, mas um presente a ser reconhecido.

Naquela noite, enquanto a cidade dormia ao som dos relógios retrocedendo e do murmúrio das árvores, ele abriu a janela para sentir o ar fresco. O céu, salpicado de estrelas que piscavam em padrões indecifráveis, parecia sussurrar segredos ancestrais. Lá fora, os gatos passavam em silêncio, suas sombras se fundindo às ruas, e o vento carregava risadas distantes das crianças que pulavam corda com o tempo.

Ele olhou para o bule novamente, agora vazio, mas cheio de significados que transcenderam o simples ato de fazer café. A jornada daquele dia não lhe trouxe respostas definitivas, mas deixou algo mais valioso: um senso de pertencimento ao caos, uma aceitação tranquila de que a vida era, e sempre seria, um mistério dinâmico.

Quando fechou os olhos para dormir, não sentiu mais a falta do óbvio, porque ele não estava perdido. Estava vivo em cada som, em cada gesto, em cada respiração do mundo ao seu redor. E com esse pensamento, adormeceu, enquanto a cidade, com seus enigmas e paradoxos, continuava girando, voltando e avançando em seu ritmo peculiar.

E assim, a noite seguiu, guardando o segredo simples e eterno: o óbvio só se revela a quem está disposto a enxergá-lo.

o nimaginavel e o grotesco

Um homem acorda em sua casa e logo percebe que o simples ato de respirar distorce a realidade ao seu redor. A cada respiração, objetos familiares se transformam em formas grotescas, e o ambiente se torna uma mistura caótica de beleza e monstros. As paredes da casa se reconfiguram, criando novos corredores e portas que levam a cenários desconcertantes e indescritíveis.

Ele tenta fugir, mas o espaço parece não ter fim, com o ar impregnado de um cheiro estranho que o deixa inquieto. Risos distantes ecoam, como se várias presenças o observassem. Suas próprias memórias começam a se fragmentar, e ele já não sabe se é um homem real ou uma manifestação da distorção.

Em sua última tentativa de compreender o caos, encontra uma figura enigmática que diz: “O imaginável é a ilusão que alimenta o grotesco, e o grotesco é a verdade que você teme.” Ele tenta entender, mas ao fazer isso, sente seu corpo e mente desmoronarem, preso em um ciclo de distorções, sem saber se algum dia encontrará uma resposta.

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Em um mundo onde as fronteiras entre o imaginável e o grotesco se esvanecem, um homem acorda em sua casa e percebe que o simples ato de respirar transforma a realidade ao seu redor. Cada exalação expande o ambiente, mas de maneira desordenada e distorcida, como se o ar fosse uma tela em branco sendo preenchida por uma força incompreensível. Nos cantos da sala, objetos que antes eram familiares se decompõem lentamente em formas monstruosas, com rostos distorcidos e gestos impessoais. O chão se dissolve em pedaços líquidos que pulsam com cores surreais, enquanto o céu visto pela janela se torna uma tapeçaria em constante mutação, repleta de figuras abstratas e entidades ameaçadoras.

À medida que ele se levanta, as paredes da casa se reconfiguram, criando novos corredores e portas que levam a cenários indescritíveis, ora belos, ora grotescos, desafiando sua compreensão do espaço. Ele tenta fugir, mas a fuga se torna um ciclo interminável, onde o único caminho é se perder mais e mais em um labirinto de possibilidades que se ramificam, todas igualmente absurdas e aterradoras.

O ar agora cheira a algo indefinido, uma mistura de podridão e fragrância doce, deixando-o em um estado de inquietação constante. Ele começa a ouvir risos distantes que não sabe de onde vêm, ecoando em diferentes direções, sugerindo que há mais de uma presença observando-o. Seus próprios pensamentos se fragmentam, desintegrando-se como se fossem partículas perdidas em um espaço que não segue mais regras lógicas. A memória de sua própria identidade parece se dissolver na mesma rapidez que o ambiente ao seu redor, deixando-o sem saber se é um homem ou uma manifestação da distorção que tomou conta de tudo.

Em sua última tentativa de compreender o caos, ele se depara com uma figura de contornos indefinidos, que se mistura entre os limites da sombra e da luz. Ela oferece uma solução enigmática: “O imaginável é a ilusão que alimenta o grotesco, e o grotesco é a verdade que você teme.” Ele tenta alcançar essa verdade, mas, ao fazê-lo, sente seu corpo e mente começando a desmoronar, como se o que fosse real estivesse cada vez mais distante, enquanto o grotesco se impusesse de forma irrevogável. A narrativa se encerra sem conclusão, deixando o homem e o leitor presos entre o que poderia ser e o que, no fundo, já é.

Renato Pittas   

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