O Lixão das Paixões.
Olhando para o mundo com boa vontade, percebo que é fácil deixar a gratidão varrer minhas mais profundas críticas, apagando quase completamente as palavras que outrora formulavam desapontamentos e outras pequenas desventuras. A ironia de minha situação é que, mesmo assim, as palavras continuam surgindo, desalinhadas, como se minha boca estivesse em guerra com a lógica. É como andar de pernas mancas e tentar parecer elegante com uma saia justa. E ainda, para piorar, usando um legging magenta em cima de um salto alto que desafia qualquer noção de estabilidade – tudo isso combinado com cabelos descoloridos, que brilham sob um tratamento químico perfumado com alguma essência extravagante, revelando o esforço insustentável de parecer algo mais.
Se há algo que a civilização exige de suas estrelas, é que caminhem descalças sobre os cacos dos sonhos destruídos, fingindo que o glamour as protege da dor. Pisar sobre o lixão das ilusões comerciais, mergulhar em desejos pré-embalados e comprar emoções enlatadas – oxitocinas artificiais prontas para serem usadas, coloridas e brilhantes, dispostas nas prateleiras das farmácias abertas 24 horas, para que nunca falte um sorriso forçado ao público. E, no meio disso tudo, a recomendação tácita: disfarce-se. Seja qualquer coisa que o homem comum não é. Minta de forma convincente. Ensaie diante dos espelhos que, na verdade, são a mídia, refletindo uma versão de si que ninguém mais reconhece.
Se o mundo é um palco, somos todos atores mal preparados, desejando palavras que nunca dissemos, pronunciando sílabas desconexas em fonéticas que não sabemos dominar. E quando, por fim, nos encontramos diante de uma câmera – ou de nossos próprios espelhos – damos entrevistas imaginárias a vampiros que sugam nossa essência, enquanto fingimos que está tudo sob controle.
Olhando para o mundo com boa vontade, percebo que é fácil deixar a gratidão varrer minhas mais profundas críticas, apagando quase completamente as palavras que outrora formulavam desapontamentos e outras pequenas desventuras. A ironia de minha situação é que, mesmo assim, as palavras continuam surgindo, desalinhadas, como se minha boca estivesse em guerra com a lógica. É como andar de pernas mancas e tentar parecer elegante com uma saia justa. E ainda, para piorar, usando um legging magenta em cima de um salto alto que desafia qualquer noção de estabilidade – tudo isso combinado com cabelos descoloridos, que brilham sob um tratamento químico perfumado com alguma essência extravagante, revelando o esforço insustentável de parecer algo mais.
O céu, nublado, espalhava reflexos metálicos nas janelas dos edifícios que se amontoavam ao redor. A cidade, como sempre, transbordava pressa e passos que ecoavam pelas ruas, cada um carregando seu fardo de aparências cuidadosamente construídas. Enquanto eu caminhava, a vibração da urbanidade moderna parecia ecoar em meus ossos, ressoando junto com os anúncios brilhantes que prometiam felicidade instantânea e soluções rápidas para qualquer crise existencial.
Se há algo que a civilização exige de suas estrelas, é que caminhem descalças sobre os cacos dos sonhos destruídos, fingindo que o glamour as protege da dor. Talvez por isso, enquanto cruzava a praça central, uma mulher com um vestido extravagante passou por mim, descalça, equilibrando-se sobre os restos de uma vitrine quebrada. Ela sorria, mas seus olhos revelavam uma angústia que suas roupas e joias não conseguiam esconder.
O vento soprava forte, carregando o cheiro da fumaça dos carros misturada com o aroma artificial de algum perfume vendido em massa, e eu me perguntava quantas daquelas pessoas ao meu redor haviam comprado emoções pré-embaladas, como as oxitocinas artificiais prontas para serem usadas, dispostas nas farmácias que nunca fechavam. Talvez estivéssemos todos andando com scripts decorados, mentindo sobre o que realmente sentíamos.
No meio disso tudo, a cidade parecia viva, um ser pulsante que absorvia nossas energias e refletia de volta a nós mesmos, mas em versões distorcidas. Disfarçar-se era a ordem do dia. A cada esquina, figuras com suas máscaras de sucesso e felicidade ensaiavam seus papéis para o grande espetáculo diário. Eu também fazia parte disso. Mesmo tentando me despir das camadas de expectativas, era difícil não me ver envolto na mesma dança.
Se o mundo é um palco, somos todos atores mal preparados, desejei secretamente que alguém gritasse “corta!” e nos liberasse desse espetáculo interminável. Mas ninguém o fazia. A cidade continuava a rodar seu filme sem fim, e eu, com a boca seca e as palavras desalinhadas, segui tentando achar meu papel em meio à multidão.
Até que… ao dobrar a esquina, deparei-me com algo que não se encaixava no roteiro. Uma figura imóvel no meio da calçada, alguém que parecia completamente alheio ao caos organizado ao seu redor. Vestia roupas comuns, sem o brilho e a artificialidade que marcavam as silhuetas que passavam ao seu lado. Seus olhos, no entanto, não estavam fixos nos smartphones ou nas vitrines digitais. Ele olhava para o chão, onde pequenas rachaduras na calçada formavam uma espécie de mapa desconexo, como se tentasse decifrar algo que apenas ele via.
Passei por ele com a intenção de ignorar, como fazemos com tudo que não se encaixa na nossa percepção de normalidade, mas algo me forçou a parar. Havia algo na maneira como ele se movia — ou, melhor, na falta de movimento. Sua quietude era tão absurda no meio daquela confusão que o silêncio parecia vibrar ao seu redor. E ali, naquele instante, foi como se a cidade inteira tivesse se afastado, mergulhando em um vazio desconcertante. Ele me viu, ou melhor, seus olhos encontraram os meus, e senti como se o palco tivesse desmoronado, deixando-nos em uma cena não ensaiada.
“Você também está perdido no meio desse teatro, não está?” — ele perguntou, sem sequer mover os lábios.
A pergunta ecoou na minha mente, mas o som parecia vir de algum lugar muito mais profundo. Instintivamente, olhei em volta, esperando que alguém mais tivesse notado a estranheza, mas as pessoas continuavam sua rotina frenética, alheias àquela interrupção quase mágica. Engoli seco, como se precisasse reorganizar as palavras desalinhadas que tentavam emergir.
“Não estou perdido,” respondi, mas minha voz soou fraca, como se até ela duvidasse da própria veracidade. A cidade parecia questionar tudo ao nosso redor, com seus sinais luminosos piscando de forma errática, os carros movendo-se como sombras difusas. Era como se, por um breve momento, a realidade estivesse se dissolvendo, e tudo o que restava era a pergunta daquele estranho.
“Está, sim,” ele insistiu, sorrindo agora, mas o sorriso era de quem já sabia o que eu negava. “Está perdido porque acredita que há um roteiro a seguir, que há uma direção nesse cenário todo. Mas e se não houver? E se as falas que tanto ensaiamos não fizerem sentido algum?”
Fiquei parado, olhando para ele, enquanto o som da cidade parecia distante, abafado. As palavras dele ressoavam dentro de mim, perturbadoras. De repente, todas as minhas tentativas de me encaixar, de ser mais uma peça funcional nesse grande palco urbano, pareciam tolas. Quem era esse homem? Por que ele parecia saber tanto sobre o que eu tentava esconder até de mim mesmo?
Ele deu um passo em direção ao meio da rua, onde o asfalto se estendia como uma linha infinita entre os prédios, e então olhou para trás, convidando-me silenciosamente a segui-lo.
E naquele momento, percebi que…
Não tinha escolha. Algo dentro de mim se partiu, como se a rigidez da minha existência, da minha performance cuidadosamente ensaiada, tivesse se dissolvido ao toque invisível de sua presença. Dei um passo em sua direção, e a cidade ao meu redor pareceu derreter. Os prédios, antes tão sólidos, começaram a se esticar como sombras líquidas, suas formas se contorcendo no ar denso. O asfalto sob meus pés amolecia, transformando-se em uma superfície que oscilava como ondas.
Olhei para o estranho, e ele já não era o mesmo. Sua silhueta se desfazia em contornos incertos, como se ele estivesse se fundindo ao ambiente, tornando-se parte da própria cidade. Seus olhos, antes cheios de certeza, agora refletiam uma vastidão inatingível, como se contivessem todo o caos e a ordem do universo. Ele apontou para o céu, que se tingia de cores que eu jamais havia visto — tons de um espectro desconhecido, como se o próprio tempo estivesse sendo pintado sobre nossas cabeças.
Quando ergui os olhos, vi que não havia mais céu, não como eu conhecia. No lugar das nuvens, havia engrenagens gigantescas, interligadas por fios de luz que pulsavam ritmicamente, como um coração mecânico. Estrelas? Não. Eram buracos no tecido da realidade, rasgos que mostravam o vazio além, uma escuridão pulsante que parecia me observar.
O estranho continuava a caminhar, sem pressa, flutuando ligeiramente sobre a rua que agora mais se assemelhava a um rio de vidro derretido. A cidade ao redor se desmanchava em formas abstratas, os carros evaporavam em finas neblinas metálicas, e as pessoas se fragmentavam em pedaços de luz, como se fossem hologramas projetados por uma máquina defeituosa.
Tentei falar, mas minha voz se perdeu no ar. Não havia som, apenas uma vibração sutil que preenchia meus ouvidos. E, então, compreendi: não havia mais “antes” nem “depois”. O tempo, o espaço, tudo o que eu conhecia como concreto, deslizava para fora de mim, como areia entre os dedos. Eu era parte do palco e também o espectador, preso em uma performance eterna sem começo ou fim.
O homem — ou o que restava dele — virou-se uma última vez. Seu rosto era agora uma máscara de luz e sombras, uma expressão impossível de decifrar. Ele estendeu a mão, como se quisesse que eu o acompanhasse. Mas eu sabia que, se desse mais um passo, nunca mais retornaria à realidade que conhecia.
“Você escolhe,” sua voz ecoou dentro de mim, como um sussurro vindo de todas as direções ao mesmo tempo. “Mas lembre-se, o que é real senão o que escolhemos acreditar?”
E, com um estalo sutil, tudo se partiu. O chão cedeu sob meus pés, e eu caí, caí para dentro de mim, para dentro de um infinito que não tinha forma nem direção. O mundo desapareceu, e o vazio tomou seu lugar.
Tudo se apagou, e eu me tornei apenas uma memória flutuante, uma palavra sem significado em uma história que ninguém jamais contaria.
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Renato Pittas
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