O Tabuleiro
Naquele fim de tarde, quando os raios do sol se despreguiçavam no horizonte, ela se via presa em um silêncio que a consumia. Tinha tanto tempo que não falava que parecia ter perdido o norte. Seu mundo, antes repleto de palavras e expressões vibrantes, agora se restringia a um espaço entre leste e oeste, delimitado por uma porta que prometia revelar um universo peculiar.
Ao atravessar essa porta, se deparou com um cenário inusitado: pisos quadriculados se estendiam sob seus pés como um imenso tabuleiro de xadrez, e colunas gregas se erguiam majestosamente, evocando a grandiosidade de uma cultura que há muito havia se extinguido. Parecia o fim do mundo greco-romano, um epílogo de eras gloriosas.
No centro desse espaço enigmático, um artista excêntrico, vociferava com paixão sobre a morte da arte. “A arte morreu!”, ele gritava, enquanto ao seu redor outros desenhavam xadrezes absurdos, onde o preto e o branco se misturavam em padrões impossíveis. Observava tudo com olhos curiosos, mas sentia-se estranhamente deslocada.
À medida que caminhava pelo labirinto de pisos quadriculados, notou que, do outro lado do não dito, algo se movia. Um fetiche, uma ideia fixa que saltava de quadra em quadra, brincava parnasianamente entre o sem sentido e a vã esperança da licença poética. Cada movimento parecia um jogo, uma dança entre a razão e a loucura.
As palavras, quando surgiam, vinham desordenadas, sem verbos ou pontuações claras, como se a estrutura gramatical tivesse sido dissolvida. Sem vírgulas, apenas reticências, a pausa se desenhava em um ritmo próprio. E, enquanto caminhava, refletia sobre o que não havia sido realizado no dia anterior e sobre os erros que poderiam surgir amanhã.
Era um mundo sem verbos na forma alexandrina, um espaço fora das normas poéticas, onde as exigências lexicais eram subvertidas. E em meio a esse caos, recitava baixinho: “Em labirintos impregnados de papéis esvoaçantes e outras imagens possíveis ao infinito imaginário coletivo, colhemos incautos o que plantamos. Uma diretriz tão velha quanto o eterno retorno.”
O labirinto parecia não ter fim, e se sentia perdida, mas ao mesmo tempo fascinada pela complexidade e beleza do absurdo que a cercava. A cada passo, novas imagens e conceitos se desdobravam diante dela, como se estivesse explorando o próprio tecido de sua mente, onde o real e o imaginário se entrelaçavam em uma dança eterna.
Assim, Alice continuava sua jornada, consciente de que cada movimento, cada escolha, era parte de um grande tabuleiro onde a lógica e a fantasia coexistiam. Sabia que, ao final, encontraria algo de valor — não um tesouro material, mas uma compreensão mais profunda de si mesma e do mundo ao seu redor. No fim, a jornada era o destino, e o enigma, a chave para sua própria alma.
Prosseguiu sua caminhada, sentindo-se como uma peça de xadrez movida por uma mão invisível. Cada passo a levava mais fundo no labirinto de pisos quadriculados, onde as colunas gregas pareciam vigias de uma era esquecida. O eco de suas passadas ressoava pelas vastas galerias, misturando-se ao murmúrio dos pensamentos desordenados que flutuavam ao seu redor.
Em uma dessas galerias, encontrou uma figura singular, um velho de barbas brancas e olhos profundos, sentado em um trono de mármore. Ele parecia ser uma manifestação viva da filosofia antiga, um estudioso do conhecimento perdido. “Bem-vinda, Alice,” disse ele, com uma voz que parecia carregar o peso dos séculos. “Você busca respostas, mas para encontrá-las, deve primeiro entender as perguntas.”
Hesitou, refletindo sobre suas próprias incertezas. “Estou perdida,” admitiu ela, “nesse mundo entre o real e o imaginário. Tudo parece um jogo sem regras, uma dança entre o sentido e o sem sentido.”
O velho sorriu, um sorriso cheio de sabedoria. “A vida é um tabuleiro de xadrez, jovem. Cada movimento tem suas consequências, cada escolha, sua sombra. Mas não se trata apenas de lógica ou estratégia. O verdadeiro entendimento vem quando se aceita a beleza do caos, a dança entre o preto e o branco.”
Intrigada, se aproximou mais, sentindo-se atraída pela aura de conhecimento que emanava do velho. “Mas como posso navegar por esse labirinto sem perder a sanidade?”
“O segredo,” disse ele, “é encontrar o equilíbrio entre a razão e a imaginação. Não se trata de escolher um lado, mas de permitir que ambos coexistam dentro de você. Olhe ao seu redor. Os papéis esvoaçantes, as imagens possíveis, tudo isso faz parte do seu próprio ser. Aceite-os, e encontrará o caminho.”
Ponderou sobre essas palavras enquanto continuava sua jornada. O labirinto parecia menos ameaçador agora, como se as paredes quadriculadas fossem amigas antigas, em vez de obstáculos. Cada passo a fazia sentir mais conectada ao enigma que a envolvia.
Eventualmente, chegou a uma sala maior, onde várias figuras estavam envolvidas em atividades artísticas. o Artista ainda vociferava sobre a morte da arte, mas seus gritos agora pareciam mais uma performance do que uma declaração. Outros artistas pintavam, esculpiam e criavam, cada um explorando suas próprias visões do absurdo e do sublime.
Observou um artista em particular, uma jovem mulher que desenhava um tabuleiro de xadrez com peças que pareciam derreter e se fundir. “O que você vê?” perguntou.
“A vida,” respondeu a artista sem levantar os olhos. “Uma mistura de ordem e caos, de preto e branco, onde cada peça tem seu papel, mas nada é fixo.”
Sorriu, compreendendo finalmente. O labirinto, os papéis esvoaçantes, as colunas gregas e os tabuleiros de xadrez absurdos eram reflexos de sua própria mente, um caleidoscópio de pensamentos e emoções que, juntos, formavam sua identidade.
Fechou os olhos por um momento, permitindo-se sentir a profundidade desse entendimento. Quando os abriu novamente, o labirinto parecia diferente. Não era mais um emaranhado confuso, mas uma tapeçaria complexa e bela, tecida por suas próprias experiências e percepções.
Com um último olhar para o velho sábio e os artistas ao seu redor, se virou e começou a caminhar de volta. Ela não estava mais perdida, pois agora sabia que o verdadeiro norte estava dentro de si mesma, um equilíbrio delicado entre o real e o imaginário, entre a ordem e o caos.
Ao cruzar novamente a porta que a levara a esse mundo estranho, sentiu-se transformada. Estava pronta para enfrentar os desafios do dia a dia, armada com a sabedoria que havia encontrado nesse enigmático labirinto. E, com um sorriso no rosto, seguiu seu caminho, sabendo que, não importa quão caótica a vida pudesse parecer, sempre haveria beleza e sentido a serem descobertos.
Enquanto deixava o labirinto e retornava ao mundo cotidiano, sua mente permanecia imersa nos insights que havia descoberto. Cada passo parecia ressoar com novas compreensões, e o eco de suas reflexões a acompanhava como uma melodia suave e contínua.
Percebia que o silêncio que antes a consumia não era uma ausência de som, mas um espaço de potencial, um terreno fértil onde ideias e sentimentos podiam germinar. Perder o norte não significava estar perdida, mas sim uma oportunidade de redescobrir novos caminhos, de explorar territórios inexplorados dentro de si mesma.
As colunas gregas, símbolo do passado glorioso, ensinavam que o conhecimento antigo sempre tem algo a oferecer, mesmo em um mundo que parece seguir em frente sem olhar para trás. O fim da cultura greco-romana não era um término, mas uma transformação, uma passagem para novas formas de expressão e entendimento.
O artista, com sua declaração sobre a morte da arte, servia como um lembrete de que a arte está em constante evolução. O que parece o fim pode ser apenas o começo de algo novo e inesperado. A arte não morre; ela se reinventa, encontra novas maneiras de tocar as almas e de refletir as complexidades da existência humana.
O tabuleiro de xadrez, com suas peças derretidas e se fundindo, simbolizava a natureza fluida da realidade. A rigidez da lógica e da razão deve coexistir com a maleabilidade da imaginação e da emoção. A vida é um jogo onde as regras são simultaneamente claras e ambíguas, um desafio constante de encontrar o equilíbrio entre a estratégia e a criatividade.
E, acima de tudo, compreendeu que as reticências, essas pausas suspensas no discurso, são tão importantes quanto as palavras. Elas são os espaços onde a mente pode respirar, onde novas ideias podem surgir e onde a poesia da vida encontra seu ritmo natural. Cada pausa, cada momento de reflexão, é uma oportunidade para reavaliar, reajustar e recomeçar.
Enquanto caminhava de volta para sua realidade cotidiana, Se sentia revigorada, carregando consigo a sabedoria do labirinto. Sabia que, de vez em quando, poderia perder o norte novamente, mas isso não a assustava mais. Porque agora entendia que cada desvio, cada perda aparente, era uma chance de descobrir algo novo sobre si mesma e sobre o mundo ao seu redor.
Com o coração leve e a mente aberta, seguiu seu caminho, pronta para enfrentar os desafios e as maravilhas da vida, sabendo que, no grande tabuleiro do universo, ela era tanto a jogadora quanto a peça, parte de um enigma infinito que, em sua essência, era lindamente humano.
Renato Pittas :
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