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Palavras Cruzadas

Palavras Cruzadas

Em um vilarejo encravado nas colinas, havia uma festa que ocorria uma vez por ano, chamada Festa das Linhas Invisíveis. A preparação começava dias antes, com as pessoas adornando as ruas com fitas coloridas e lanternas de papel. Todos os moradores se reuniam na praça central para celebrar, compartilhando histórias, músicas e danças que transcenderam gerações.
Naquela noite, um jovem de coração inquieto, caminhava silenciosamente pelas ruelas iluminadas. Seu rosto refletia a serenidade da festa, mas seus olhos revelavam uma inquietação profunda. Era conhecido por sua habilidade de ouvir a música das palavras, uma melodia que apenas ele podia perceber. As pessoas diziam que ele tinha um dom, mas preferia chamá-lo de maldição, pois o isolava do mundo ao seu redor.

Enquanto passava por uma das tendas de comida, ele ouviu um sussurro que o fez parar. Não era um som qualquer, mas uma linha de palavras que dançava no ar, harmoniosa e afinada, convidando-o a seguir. Sem hesitar, ele seguiu o som, sentindo-se atraído por uma melodia que somente ele podia ouvir.
A trilha sonora invisível o conduziu até uma casa antiga, abandonada há anos. Hesitou por um momento, mas a curiosidade venceu o medo. Entrou e foi recebido por uma visão surreal: a sala estava repleta de palavras flutuantes, compondo frases que se moviam como se dançassem ao som de uma música silenciosa.

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No centro da sala, uma mulher de cabelos prateados e olhos profundos o aguardava. Ela sorriu e fez um gesto para que ele se aproximasse.

— Bem-vindo, — disse ela, sua voz ecoando suavemente. — Sou a guardiã das linhas invisíveis.

Ele ficou sem palavras, mas ela continuou:

— Você tem o dom de ouvir a melodia das palavras. É um talento raro e precioso. Mas sei que tem sido um fardo para você. Hoje, na noite da Festa das Linhas Invisíveis, vou lhe ensinar a encontrar harmonia e paz.

Ela estendeu a mão e, ao tocá-lo, ele sentiu uma onda de calor e tranquilidade. As palavras ao redor deles começaram a se alinhar, formando uma sinfonia perfeita que ecoava em sua mente e coração. Pela primeira vez, ele não se sentiu sobrecarregado pelas vozes, mas parte de uma harmonia maior.
Eles passaram a noite conversando, trocando histórias e risos. Ela mostrou que as palavras, quando compreendidas e aceitas, podiam trazer não apenas confusão, mas também beleza e clareza.

Ao amanhecer, saiu da casa com uma nova perspectiva. Ainda podia ouvir a música das palavras, mas agora não era mais um fardo. Havia encontrado a harmonia que tanto buscava.
Assim, na pequena vila das colinas, a Festa das Linhas Invisíveis se tornou não apenas uma celebração, mas um lembrete de que, mesmo nas palavras mais simples, pode haver uma melodia oculta esperando para ser descoberta.

Retornou à praça central, onde a festa ainda vibrava com a energia dos moradores. As lanternas de papel balançavam suavemente ao vento, e as fitas coloridas serpenteavam no ar, como se estivessem dançando ao ritmo da música que apenas ele podia ouvir. Mas agora, não estava mais sozinho em sua percepção. Cada riso, cada conversa e cada som ao seu redor faziam parte de uma sinfonia maior.
Se juntou aos amigos, que estavam surpresos ao vê-lo tão radiante. Sua amiga de infância, percebeu a mudança imediatamente.

— Você parece diferente. O que aconteceu? — perguntou ela, curiosa.

Ele sorriu, sentindo-se mais leve do que nunca.

— Eu encontrei a harmonia que tanto procurava. Agora posso ouvir as palavras sem ser sobrecarregado por elas. É como se tudo fizesse sentido.

Ela sorriu de volta, feliz por ele. Ela sabia o quanto ele havia lutado com seu dom. Naquele momento, a música da festa pareceu se intensificar, como se celebrasse a nova descoberta dele.
Enquanto caminhava pela praça, notou que as palavras flutuantes que antes apenas ele podia ver agora estavam mais visíveis para todos. As crianças corriam atrás delas, tentando capturá-las como se fossem borboletas luminosas. Os adultos observavam com admiração, percebendo a magia que sempre esteve presente, mas que agora era tangível.

Ela apareceu ao longe, observando a cena com um sorriso satisfeito. Ela sabia que ele era apenas o primeiro de muitos que encontrariam a melodia nas palavras. A vila, antes tranquila e comum, agora resplandecia com uma nova energia, uma conexão mais profunda entre seus habitantes.

Sentiu uma nova responsabilidade, um desejo de compartilhar sua experiência com os outros. Se aproximou de um grupo de jovens e começou a falar sobre a importância de ouvir, realmente ouvir, as palavras uns dos outros. Lhes contou sobre ela e a casa antiga, sobre como havia aprendido a encontrar a paz interior.
As histórias se espalharam rapidamente, e logo todos na vila estavam experimentando suas próprias versões da harmonia. As palavras flutuantes tornaram-se parte da vida cotidiana, um lembrete constante de que a comunicação verdadeira e profunda era possível. As pessoas começaram a se entender melhor, a ouvir com mais atenção e a valorizar a beleza nas palavras simples.

No final da festa, quando as lanternas de papel começavam a se apagar e as fitas coloridas se acalmavam, olhou ao redor e sentiu uma paz profunda. Sabia que a Vila das Colinas nunca mais seria a mesma. A Festa das Linhas Invisíveis se tornara um símbolo de transformação, um momento em que todos aprenderam a ouvir a melodia oculta nas palavras.

Ela se aproximou dele uma última vez naquela noite.

— Você fez um grande bem a esta vila. Continue a ouvir e a ensinar aos outros a fazer o mesmo. A verdadeira magia está nas palavras que compartilhamos e na harmonia que encontramos juntos.

Ele assentiu, grato por tudo o que havia aprendido. Enquanto observava ela desaparecer na névoa da madrugada, ele sabia que seu dom, agora compreendido e aceito, era a chave para um futuro mais harmonioso e cheio de significado para todos.

E assim, a Vila das Colinas continuou a celebrar a Festa das Linhas Invisíveis todos os anos, não apenas como uma tradição, mas como um testemunho da magia que reside em cada palavra e na melodia que elas podem criar quando ouvidas com o coração.

Com o passar dos anos, a Vila das Colinas abraçou a filosofia que ele havia compartilhado, influenciada profundamente pela sabedoria taoísta que ele descobriu em suas leituras e meditações. A vila se tornou um lugar onde a harmonia entre as pessoas e a natureza era celebrada e cultivada.

Ele, agora um ancião respeitado, passava seus dias em um jardim zen que ele mesmo havia criado, um lugar de tranquilidade e reflexão. O jardim era um espaço onde pedras cuidadosamente colocadas, areia suavemente rastelada e árvores delicadamente podadas formavam um cenário que inspirava calma e introspecção. Ele recebia visitantes de toda parte, pessoas em busca de paz interior e compreensão.
Certa manhã, enquanto o sol nascente banhava o jardim com uma luz dourada, encontrou a amiga de infancia, agora também mais velha, mas com a mesma curiosidade e energia de sempre. Ela se sentou ao lado dele, observando a dança das sombras nas pedras do jardim.

— A vila mudou tanto desde aquela noite da Festa das Linhas Invisíveis. Você trouxe uma nova perspectiva para todos nós — disse ela, com um sorriso tranquilo.

Assentiu, seu olhar sereno refletindo a paz interior que ele havia encontrado e compartilhado com os outros.

— Não fui eu. Foi a sabedoria que encontramos nas palavras e nas pausas entre elas. A harmonia está sempre presente, se soubermos ouvi-la — respondeu ele, sua voz suave como o murmúrio de um riacho.

Enquanto conversavam, as palavras flutuantes que via desde jovem agora eram um fenômeno comum na vila, visíveis a todos como reflexos da sabedoria e da harmonia que eles cultivaram. As crianças brincavam entre elas, e os adultos as contemplavam como lembretes de suas próprias jornadas interiores.

Ela, a guardiã das linhas invisíveis, reapareceu no jardim, sua presença etérea e cheia de graça. Ela se aproximou deles e, sua voz ecoando suavemente pelo espaço.

— Vocês encontraram a verdadeira essência do Tao. A harmonia com a natureza, consigo mesmos e com os outros é a chave para uma vida plena e significativa. Continuem a trilhar esse caminho — disse, com um sorriso sereno.

Assentiram, sentindo uma profunda conexão com a sabedoria dela. Sabiam que a jornada da vida era contínua, uma dança entre o silêncio e a palavra, entre o visível e o invisível.
Assim, a Vila das Colinas floresceu como um oásis de paz e harmonia, onde cada morador, inspirado pela filosofia taoísta, encontrava beleza nas simplicidades da vida, nas palavras que flutuavam como música no ar e nas pausas que permitiam ouvir a verdadeira melodia da existência.

No coração da vila, o jardim zen dele permaneceu como um símbolo vivo da sabedoria eterna, um lugar onde todos podiam encontrar a paz interior e a harmonia com o universo. E a cada ano, durante a Festa das Linhas Invisíveis, a vila celebrava não apenas a magia das palavras, mas a profundidade da compreensão e a beleza da vida vivida em harmonia com o Tao.

Renato Pittas   

Contato:[email protected]

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