Qual o Lado Bom?
1 – Sonanbulia
Em uma cidade onde as ruas se entrelaçavam como tramas de uma história sem fim, havia uma praça no centro. Não era o centro da cidade, nem mesmo o centro de algo importante. Era o centro de uma ausência, um espaço onde os rumos se cruzavam mas nunca se encontravam. Ali, o tempo não parecia passar da mesma forma que no resto do mundo: a luz do dia surgia suavemente, mas sem amanhecer completo, como se o sol hesitasse em trazer o brilho total, deixando a praça presa entre o fim da madrugada e o início da manhã.
No meio da praça, havia um banco de madeira desgastada. As pessoas que se sentavam ali não tinham nome, ou ao menos seus nomes evaporavam no ar assim que tentavam pronunciá-los. Elas vinham de lados diferentes — alguns do lado esquerdo da praça, outros do direito. Todos procuravam respostas, mas cada um a sua maneira. Uns carregavam perguntas profundas, outros, um vazio onde deveria haver uma. Todos, no entanto, olhavam para o centro, como se acreditassem que ali, naquele ponto exato, estivesse o equilíbrio, o que ninguém havia encontrado.
Um homem, cujo rosto refletia uma inquietação velha como a própria praça, sentava-se ali todos os dias, sempre à mesma hora, antes que o sol decidisse o seu destino. Observava o horizonte, esperando respostas que nunca vinham. Acreditava, como muitos, que o meio, esse ponto de encontro entre o lado esquerdo e o direito, o visível e o invisível, escondia algo revelador. Mas, quanto mais esperava, mais percebia que a resposta fugia sempre que se aproximava dela. Às vezes, pensava que a resposta estava nos outros, nos que passavam apressados com seus celulares, nunca olhando para o lado, perdidos em suas próprias tramas.
Um dia, uma mulher vestida de cinza sentou-se ao lado dele. Sua presença parecia emanar uma calma peculiar, como se fosse parte da própria bruma que se dissipava devagar ao redor da praça. Ela não disse uma palavra, apenas olhou na mesma direção que o homem, para o centro.
“Qual é o lado bom?” ele finalmente perguntou, quebrando o silêncio que já parecia uma entidade própria. A mulher sorriu suavemente, mas não respondeu. Em vez disso, estendeu a mão em direção ao centro da praça, como se quisesse tocá-lo, mas seu gesto foi interrompido pela própria distância uma distância que, àquela altura, parecia impossível de vencer.
“Talvez o lado bom não seja um lugar”, disse ela finalmente, sua voz flutuando como um eco distante. “Talvez seja o movimento, o estar em algum lugar entre o que vemos e o que imaginamos. O centro não é um ponto fixo; ele se move conforme nos movemos.”
O homem franziu o cenho. “Então, nunca chegaremos?”
“Não, não dessa forma”, respondeu ela. “Mas esse é o segredo, não é? O lado bom é aquele que nunca chega porque nunca o deixamos partir.”
Nesse momento, algo no horizonte pareceu mudar. A luz, antes presa entre a noite e o dia, começou a se mover, como se desenrolasse o véu que cobria a praça. No entanto, à medida que o sol surgia, as sombras ficaram mais nítidas, mais claras, e aquilo que parecia oculto agora se revelava à luz do dia. A praça, antes tão vazia, parecia repleta de tramas invisíveis, fios invisíveis que conectavam cada canto, cada pessoa. E nos olhos do homem, algo se acendeu não a certeza de uma resposta, mas a compreensão de que a busca, por si só, era o que importava.
“E o pior lado?” perguntou, ainda sem desviar o olhar do centro.
“Talvez o pior lado seja aquele que vemos sem olhar. Como os que assistem as tramas do horário nobre sem se questionar. Eles deixam que o orvalho da madrugada embaçe suas janelas, nunca vendo o amanhecer que os espera.”
Permaneceu em silêncio, absorvendo as palavras como quem desperta de um sonho. A mulher levantou-se lentamente e, sem mais uma palavra, desapareceu na bruma que começava a se formar de novo, como se nunca tivesse estado ali. O homem, agora sozinho, permaneceu olhando o centro da praça, mas dessa vez, ele não esperava respostas. Talvez o horizonte sempre estivesse ali, mudando com ele, se revelando e escondendo, e talvez fosse isso o que sempre quis.
Sorriu para si mesmo, com o rosto iluminado pela luz suave de um amanhecer que não tinha pressa de se completar.
Permaneceu ali, absorvido pela calmaria daquele amanhecer incompleto, como se o tempo tivesse deixado de ter importância. O centro da praça, outrora um ponto de ausência e incerteza, parecia agora uma espécie de espelho, refletindo não o que estava ao redor, mas o que se passava dentro dele. O que antes parecia inalcançável — o “lado bom”, o centro exato —, revelava-se não como um destino, mas como um processo em constante movimento, uma dança entre o visível e o invisível, entre o que ele acreditava entender e o que nunca compreenderia por completo.
Enquanto os primeiros raios de sol finalmente começavam a iluminar os prédios ao redor, notou algo que nunca havia visto antes: pequenas figuras, sombras delicadas, movendo-se entre as colunas e os bancos da praça. Não eram pessoas, pelo menos não como ele estava acostumado a ver. As figuras pareciam transitar entre a substância e o nada, ora presentes, ora dissolvendo-se no ar. Seriam manifestações de pensamentos? Ecoavam as perguntas não feitas, as dúvidas nunca expressas?
Fechou os olhos por um momento, tentando se concentrar, mas quando os abriu novamente, percebeu que o mundo ao seu redor havia mudado de forma sutil, quase imperceptível. As paredes dos prédios já não eram estáticas, mas pulsavam levemente, como se respirassem junto com o ar da manhã. As árvores, antes imóveis, pareciam ter vida própria, estendendo galhos curiosos em direção ao céu que começava a clarear, quase como se estivessem tentando tocar o horizonte. E o horizonte… não estava mais distante. Agora, ele sentia que o horizonte estava ao seu alcance, não fisicamente, mas como uma possibilidade, como uma ideia pronta para ser tocada.
Enquanto observava essas transformações, uma figura se materializou à sua frente, a mulher de cinza. Mas desta vez, ela não estava sozinha. Ao seu lado, surgiam outras figuras, homens e mulheres vestidos em tons sutis, como se fizessem parte da própria névoa que cercava a praça. Eles não falavam, mas suas presenças transmitiam uma sensação de calmaria. Não eram ameaçadores, tampouco distantes. Eram simplesmente… observadores. E, ao mesmo tempo, faziam parte daquele mesmo espaço indefinido entre o real e o fantástico.
O homem finalmente entendeu. O centro, o “lado bom”, o “lado ruim” — todos esses conceitos eram apenas reflexos de suas próprias percepções, de suas próprias escolhas sobre como ver o mundo. A verdade não estava nem à esquerda nem à direita, nem no meio; ela estava espalhada por todo o espaço ao seu redor, em cada detalhe que ele antes ignorava. As respostas que ele tanto buscava não estavam em um ponto fixo, mas em cada passo que ele dava, em cada olhar que lançava sobre as coisas que passavam despercebidas.
O homem finalmente entendeu. O centro, o “lado bom”, o “lado ruim” — todos esses conceitos eram apenas reflexos de suas próprias percepções, de suas próprias escolhas sobre como ver o mundo. A verdade não estava nem à esquerda nem à direita, nem no meio; ela estava espalhada por todo o espaço ao seu redor, em cada detalhe que ele antes ignorava. As respostas que ele tanto buscava não estavam em um ponto fixo, mas em cada passo que ele dava, em cada olhar que lançava sobre as coisas que passavam despercebidas.
Assentiu, sem mais perguntas. Agora, não era mais o centro da praça que o fascinava, nem os lados, nem os rumos que pareciam não levar a lugar nenhum. Era o próprio caminhar, a própria experiência de existir entre essas fronteiras fluidas, que o fazia sentir-se conectado a algo maior, algo que não precisava de definições exatas. Talvez o lado bom fosse, de fato, aquilo que jamais se revelaria completamente. E, paradoxalmente, era isso que o tornava tão essencial.
A mulher, junto com as figuras ao seu lado, começou a se dissipar, como o orvalho evaporando ao primeiro toque do sol pleno. E, quando a luz finalmente tomou conta de toda a praça, o homem percebeu que já não estava mais sozinho. As pessoas, antes invisíveis ou apressadas, agora andavam devagar, em passos tranquilos, observando com atenção ao redor. Como se, de alguma forma, aquele amanhecer fosse diferente, como se também tivessem despertado para algo que antes lhes escapava.
Sorriu uma última vez e, com um suspiro leve, levantou-se do banco. Sabia que o horizonte nunca chegaria, mas pela primeira vez, isso não o incomodava. Apenas começou a caminhar, sem pressa, sentindo o calor do sol em sua pele, enquanto a bruma desaparecia e o mundo ao seu redor ganhava nitidez. E, em cada passo, ele sentia que algo se revelava, mesmo que de forma sutil. A jornada, afinal, era tudo que importava.
Enquanto caminhava, uma sensação de leveza invadia seu corpo, como se, a cada passo, estivesse se desapegando das questões que antes o atormentavam. O centro, o lado bom, o lado obscuro — tudo isso parecia se dissolver na claridade do amanhecer. Agora, o caminho era só o caminho, e o horizonte não mais importava. Sentia-se em paz, como se, de repente, estivesse em harmonia com o fluxo inconstante e imprevisto da vida.
Foi então que notou algo peculiar. A rua à frente, que sempre conhecera por seus contornos rígidos e previsíveis, começou a se dobrar sobre si mesma. Primeiro, de forma sutil, como uma leve ondulação, mas logo, como se estivesse sendo moldada por uma força invisível, ela começou a se curvar, dobrando-se como uma fita, a tal ponto que ele não podia mais ver onde começava ou terminava.
Intrigado, ele deu mais alguns passos e percebeu que, a cada passo, a rua dobrava-se ainda mais. Em um instante, ele estava caminhando em direção a si mesmo, mas não o “ele” que acabara de deixar para trás. Não, o que via era uma versão sua mais jovem, perdida em devaneios de uma outra época. Olhando para o próprio reflexo naquele espaço curvado, viu o garoto que ele era, sentado num banco parecido, contemplando o mesmo horizonte que nunca chegava.
Então veio o choque. Não estava apenas observando a si mesmo; ele estava sendo observado. O garoto — sua versão mais jovem — levantou os olhos, e com uma tranquilidade inesperada, olhou diretamente para ele. Sem falar, o garoto sorriu como quem sabe algo que o homem ainda não compreendia. E nesse sorriso, havia um enigma.
“O que você procura, já encontrou”, o garoto disse, finalmente, numa voz calma, mas reverberante. “O horizonte não existe. Só foi uma desculpa para você continuar caminhando.”
Antes que pudesse responder, a figura jovem se desfez, como poeira ao vento, misturando-se às ondulações da rua. Ficou parado por um longo momento, absorvendo o que acabara de acontecer. Como poderia o seu “eu” mais jovem saber aquilo que ele, agora, só começava a entender? O horizonte nunca importou. O caminho nunca foi sobre chegar a algum lugar, mas sobre estar em movimento, em constante descoberta de si mesmo.
Com essa revelação pulsando dentro dele, deu meia-volta, e foi então que percebeu a última reviravolta surpreendente: tudo o que antes parecia concreto — os prédios, as árvores, as figuras — começou a se dissolver. Não em um sonho, mas em algo mais profundo, como se ele mesmo estivesse acordando de uma ilusão que durou toda sua vida.
Riu. Um riso solto, libertador, pois finalmente compreendeu: o lado bom, o lado ruim, o centro, tudo isso era um truque da percepção. O verdadeiro segredo, o que estava escondido o tempo todo, era que não havia segredo algum. Apenas o prazer de caminhar, de ver o mundo se dobrar, se desfazer e se refazer ao sabor de suas próprias perguntas e respostas.
E, de repente, o horizonte que nunca chegava… já não era mais necessário.
Qual é o lado bom?
Renato Pittas
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