Travessia em Marés Invisíveis
1
Há um lugar dentro de nós onde os sonhos não morrem. Não importa o quão rápida a realidade nos chame de volta, sempre há resquícios, fragmentos, algo que insiste em permanecer. Para Beatriz, Mariana,Izaura e Maggy, esse lugar tomou forma de um corredor de salgueiros, um rio de espelhos e objetos carregados de significados. Mas, mais que isso, esse lugar tornou-se o ponto onde suas vidas se cruzaram, dentro e fora do sono.
A beleza desse encontro não estava na grandiosidade do cenário onírico, mas na humanidade crua de cada uma delas. No sonho, carregavam objetos simbólicos, mas, na vigília, o que levavam era algo ainda mais pesado: as marcas das escolhas que fizeram e das que não tiveram coragem de fazer. Mesmo assim, continuavam. Não porque tinham todas as respostas, mas porque encontraram no coletivo uma força que faltava no singular.
Talvez o verdadeiro desafio não fosse o que os sonhos lhes apresentavam, mas o que despertava dentro delas ao acordarem. Beatriz precisava encarar as palavras que nunca saíam como ela desejava. Adélia, o novelo que nunca parecia perfeito. Izaura, as rachaduras que refletiam mais do que sua história. E Maggy, o espelho que mostrava um mundo que ela ainda não sabia interpretar.
Mas algo mudou naquela tarde sob a árvore na colina. Não foi um milagre, nem um final feliz idealizado. Foi simplesmente a leveza de perceberem que não precisavam carregar seus pesos sozinhas. O caderno de Beatriz, agora repleto de histórias, era um eco das vozes das outras. O novelo de Adélia, com seus nós e emendas, representava não confusão, mas conexão. A xícara de Izaura, com suas rachaduras, se tornou um símbolo de resiliência. E o espelho de Maggy não era mais um objeto de receio, mas de descoberta.
A vida é feita desses pequenos momentos, dessas epifanias que muitas vezes vêm disfarçadas de encontros simples. Não há promessa de que os dias futuros serão fáceis, mas há a certeza de que, enquanto houver quem compartilhe do peso, a travessia se torna mais suportável.
E, no final, talvez seja isso o que buscamos. Não soluções definitivas, mas a mão estendida de quem entende nossas rachaduras, nossos nós e nossos reflexos. Porque, no fundo, todos carregamos nossos objetos invisíveis, esperando encontrar alguém que os veja como são: partes essenciais do que nos torna inteiros.
2
O sonho começava sempre na mesma curva. Um corredor de salgueiros pendia sobre um rio de águas cristalinas, cuja correnteza levava não peixes, mas pequenos pedaços de espelhos flutuantes. Ali, um grupo de mulheres caminhava. Cada uma trazia consigo um objeto, aparentemente comum, mas que brilhava sob a luz difusa do céu sem sol: uma xícara rachada, um novelo de lã vermelho, um caderno de capa desgastada, um espelho trincado.
Beatriz era a mais nova entre elas. Carregava o caderno como quem segura um segredo. Ela escrevia memórias de sua infância, mas as palavras não ficavam na página; escapavam como vapor e se condensavam no ar, formando figuras dançantes que falavam entre si em vozes indecifráveis. Cada vez que Beatriz tentava capturá-las novamente, elas mudavam de forma, rindo silenciosamente. Seu desafio era aceitar que certas lembranças nunca poderiam ser compreendidas, apenas vividas como ecos de algo maior.
Mariana, ao seu lado, era uma mulher de traços duros, mas com olhos tão suaves quanto as pétalas de uma flor. Seu novelo de lã não era apenas uma ferramenta, mas um mapa. Enquanto ela caminhava, desenrolava o fio e tecia na própria atmosfera passagens, caminhos e atalhos para paisagens desconhecidas. Contudo, seu dilema estava no emaranhado de nós que surgiam inesperadamente. Era como se o próprio universo conspirasse contra sua ordem, forçando-a a desfazer e recomeçar.
Izaura carregava a xícara rachada. Ela era a mais velha, sua silhueta robusta marcada pelo peso das histórias que não se contavam. Cada rachadura na cerâmica parecia uma linha de expressão em seu rosto, e de vez em quando gotas invisíveis caíam da borda, formando pequenas poças que mostravam reflexos alternativos da realidade. Ao olhar para dentro da xícara, Izaura via versões de si mesma em outros tempos e escolhas. Sua luta era com o arrependimento, uma sombra que insistia em dançar em torno dela, mesmo quando ela fechava os olhos.
Por fim, havia Maggy, a portadora do espelho. Diferente das outras, ela nunca olhava diretamente para ele; mantinha-o virado para o céu, como se buscasse algo além do que seus olhos poderiam suportar. Quando o vento soprava, o espelho refletia fragmentos do sonho que pertenciam a todas, mostrando-lhes suas conexões invisíveis: Beatriz escrevendo palavras que se trançavam no novelo de Mariana, as linhas de Mariana costurando o reflexo de Izaura, e Izaura vendo seu rosto no espelho de Maggy, cada uma sustentando as outras de formas que elas mal podiam entender.
O cenário onírico mudava constantemente, mas não sem propósito. A floresta dava lugar a um deserto cujas dunas eram feitas de areia e estrelas. Depois vinham campos de flores que cantavam com vozes humanas, cada pétala uma nota suspensa no ar. Apesar da beleza surreal, os desafios das mulheres eram profundamente reais: reconciliações com o passado, o desejo de controle, a luta contra o arrependimento e a busca por significados que pareciam eternamente fugidios.
Quando a travessia chegava ao fim, elas não encontravam respostas definitivas, mas sentavam juntas à beira do último espelho d’água. Observavam seus reflexos entrelaçados e sabiam, sem precisar dizer em palavras, que o caminho compartilhado era tão importante quanto qualquer destino. Acordavam em seus próprios quartos, em suas próprias vidas, levando consigo uma sensação inexplicável de força e unidade como se cada uma tivesse emprestado à outra a coragem de continuar.
Nas manhãs seguintes, as mulheres despertavam com fragmentos do sonho ainda pulsando em suas mentes. Beatriz sentia a textura das palavras evaporadas em seus dedos e, embora nunca conseguisse reescrevê-las exatamente como surgiam no sonho, começou a criar histórias que carregavam sua essência. Em seus textos, as personagens dançavam no limiar do real e do imaginário, espelhando suas próprias dúvidas e esperanças. Aos poucos, ela percebeu que não precisava capturar tudo, mas sim traduzir o que importava.
Mariana, ao encarar seu novelo na vida desperta, notou que seus nós não eram tão diferentes dos que encontrava no sonho. Na confusão dos fios, viu que o emaranhado não era apenas obstáculo, mas um padrão esperando para ser entendido. Inspirada, começou a tecer tapeçarias com histórias que ouviu de outras mulheres em sua vila. Cada nó, cada emenda era uma memória de luta ou alegria, criando uma obra que crescia com o tempo, conectando destinos diversos em uma narrativa comum.
Izaura, ao pegar sua xícara na cozinha, sentiu a rachadura de um jeito diferente. Antes um lembrete de suas falhas, agora parecia um convite para enxergar além delas. Decidiu que cada manhã seria um ritual: encheria a xícara com café, sentaria à mesa e conversaria consigo mesma como se fosse outra pessoa, uma versão sua refletida no espelho da água. No processo, deixou de temer os arrependimentos e começou a tratá-los como companheiros de estrada, aprendendo com o que antes parecia intransponível.
Maggy, no entanto, foi quem mais demorou a compreender o que o espelho lhe dizia. No início, a sensação de carregar algo que não podia encarar diretamente era angustiante. Ela começou a buscar reflexos em outras superfícies: vitrines, poças na calçada, até mesmo as lentes dos olhos das pessoas. Lentamente, percebeu que a verdadeira mensagem não estava no espelho em si, mas na coragem de olhar para o mundo como ele era, de frente, sem filtros ou desvios. E assim, começou a falar mais com as pessoas ao seu redor, escutando histórias que pareciam preencher os vazios que ela sentia.
Na quarta noite após a travessia, todas sonharam novamente com o corredor de salgueiros. Agora, porém, não caminhavam. Sentavam juntas em uma clareira rodeada por árvores cujas folhas brilhavam como constelações. Ali, os objetos que carregavam transformaram-se em algo maior. O caderno de Beatriz tornou-se um livro cujas páginas eram feitas de luz, o novelo de Mariana um mapa que pulsava com vida, a xícara de Izaura uma fonte de água cristalina e o espelho de Maggy uma janela para um céu infinito.
Elas não precisaram dizer nada. Sabiam que a travessia nunca era apenas sobre o que carregavam, mas sobre o que compartilhavam. Quando a noite começou a dissolver-se, cada uma olhou para as outras e sorriu, como quem entende que o fim de um sonho é apenas o começo de outro.
Ao acordarem, havia algo diferente no mundo ao redor. Não era o cenário que mudara, mas o olhar delas. As ruas pareciam mais vivas, as pessoas mais reais. E ao longo dos dias, as mulheres encontravam uma à outra em pequenos momentos: uma mensagem escrita por Beatriz nas paredes da cidade, uma tapeçaria de Mariana pendurada no mercado, uma conversa com Izaura em um café, um reflexo inesperado de Maggy em um espelho antigo.
O sonho não era mais apenas um lugar ao qual voltavam. Era agora parte de suas vidas, entrelaçado com tudo que tocavam.
Os encontros se tornaram mais frequentes, como se o destino, ou talvez o próprio sonho, tecesse suas vidas juntas com um fio invisível. Uma tarde, reuniram-se novamente, desta vez no mundo desperto, sob a sombra de uma árvore solitária no alto de uma colina. A paisagem ao redor parecia uma lembrança difusa do corredor de salgueiros, mas agora o cenário era real: o vento carregava o aroma de grama cortada, e o sol dourava a pele de cada uma.
Sentadas em círculo, trouxeram consigo os objetos que antes habitavam apenas o sonho. Beatriz colocou seu caderno no centro, agora preenchido com histórias que tinham vozes das outras três. Mariana estendeu o novelo de lã, formando linhas que conectavam cada uma em uma teia simbólica. Izaura colocou a xícara ao lado, enchendo-a com água fresca, e Maggy descansou seu espelho sobre a grama, permitindo que refletisse o céu, as nuvens e os rostos delas, lado a lado.
Não disseram muito; não precisavam. Bastava o som da brisa, o calor da presença umas das outras e a certeza de que, em meio aos desafios de suas jornadas individuais, tinham construído algo maior. Cada uma havia descoberto que suas experiências não eram isoladas, mas parte de uma tapeçaria compartilhada. Ali, sob a luz suave da tarde, riram de suas pequenas conquistas, choraram as perdas que nunca tinham partilhado antes e sentiram o peso dos dias se dissipar.
Quando a primeira estrela apareceu no céu, despediram-se com abraços demorados e promessas silenciosas. Sabiam que, mesmo que não se vissem por um tempo, estariam sempre ligadas nos fios invisíveis do sonho e nos gestos concretos do mundo real.
Ao descerem a colina, cada uma levava consigo não apenas os objetos, mas um pedaço do espírito das outras. E assim, continuaram a caminhar por suas vidas, enfrentando os desafios que viriam, fortalecidas pelo que haviam vivido juntas, e pela certeza de que, sempre que precisassem, bastava fechar os olhos e caminhar pela curva do corredor de salgueiros para se encontrar novamente.
Renato Pittas
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