Tudo Posso naquele que me Fortalece.
I
Em “Tudo posso naquele que me fortalece”, encontra-se uma máxima amplamente difundida e, ao mesmo tempo, profundamente desconcertante quando observada sob a lente psicanalítica. Freud, em sua exploração do inconsciente, talvez questionasse essa frase de maneira a revelar os mecanismos de defesa ocultos sob a superfície. Se, por um lado, ela oferece conforto — um manto de proteção contra as incertezas da vida — por outro, ela também escancara uma sublimação de nossas carências, uma tentativa de cobrir, com a religião, as feridas emocionais que a realidade nos impõe.
A crença, tal como Freud delineou ao estudar as neuroses, é um tipo de “band-aid” para as inquietações infantis que se estendem à vida adulta. A criança, desprotegida, procura seus pais para o conforto e segurança, na tentativa de mitigar a ansiedade que o desconhecido provoca. Com o tempo, essas figuras parentais são substituídas por figuras míticas ou transcendentais. A ideia de um Deus todo-poderoso, capaz de fortalecer, sublima esse medo primário e oferece uma saída para o desamparo existencial.
Na psicanálise freudiana, a religião é, em muitos aspectos, uma ilusão necessária, uma projeção dos nossos desejos de proteção e ordem. Ao acreditar que “tudo posso”, o indivíduo parece capaz de enfrentar a dura realidade, mas à custa de negar sua impotência diante dela. O mundo, com todas as suas incertezas, torna-se suportável quando se crê em forças maiores, quando se tem a certeza de ser especial, abençoado e escolhido. Isso satisfaz uma necessidade profunda de reconhecimento e pertencimento, afastando a angústia do desamparo.
Contudo, há uma contradição subjacente: se a religião, em sua essência, prega o amor ao próximo e a justiça, por que tantas vezes vemos uma corrida desesperada por milagres, por salvação pessoal, por um Deus que intervenha e faça tudo aquilo que a realidade nos nega? Freud diria que essa busca pela transcendência é, muitas vezes, uma fuga da realidade dura e crua, uma maneira de transformar a impotência em ilusão de controle.
O misticismo exacerbado e as promessas de remissão eterna podem funcionar como uma válvula de escape, um ponto cego que afasta a pessoa da verdadeira reflexão sobre sua condição. O que vemos aqui, mais uma vez, é a força de mecanismos psíquicos, como a projeção e a racionalização, em ação. Ao projetar nossa necessidade de proteção em algo externo — seja um Deus, seja uma religião — conseguimos suavizar a sensação de inadequação e vulnerabilidade que o mundo nos apresenta.
Porém, há um caminho alternativo, mais próximo do que Freud sugeriria em seus estudos sobre o amadurecimento psíquico: um encontro mais honesto com a realidade. Em vez de buscar milagres ou intervenções divinas, a verdadeira comunhão com o mundo e consigo mesmo seria aceitar a vulnerabilidade e, a partir dela, construir resiliência. A religião, então, passaria a ser não uma fuga da realidade, mas uma maneira de integrá-la, sem a ilusão de poder transcender suas limitações.
Nesse sentido, “Deus nos livre!” ganha uma nova conotação. Não de libertação de nossas dificuldades, mas de libertação do mito que impede o crescimento. Para Freud, o verdadeiro caminho seria confrontar as contradições da fé e da realidade, encontrar forças na aceitação da nossa condição, sem recorrer a ilusões transcendentes que, no fim, só aumentam nossa dependência de uma proteção que jamais virá de fora.
2
Em uma pequena cidade perdida no interior, ele era conhecido como um homem de fé inabalável. Desde jovem, ele recitava o versículo “Tudo posso naquele que me fortalece” como um mantra, acreditando piamente que sua fé era a chave para superar qualquer obstáculo. Seus vizinhos o viam como uma fortaleza de esperança, sempre de cabeça erguida, mesmo quando a realidade ao seu redor desmoronava.
Mas havia algo em que ninguém notava: sob o véu de confiança, ele carregava uma ansiedade insuportável, um medo silencioso de que o mundo, com suas injustiças e incertezas, pudesse ser mais forte do que ele. Nas noites de insônia, quando a cidade dormia e o silêncio tomava conta das ruas, questionava sua força. Perguntava se, de fato, poderia tudo. Será que sua fé, que tantas vezes parecia o amparo que buscava, era também uma armadilha invisível?
Foi numa dessas noites de tormento interior que se deparou com uma figura misteriosa. Em um sonho, ele viu um homem de olhar penetrante e porte imponente. “Olá!,” disse a figura, em um tom calmo. “Vim falar sobre o que você não ousa confrontar.”
sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. “Quem é você?” perguntou, sua voz vacilante.
“Sou alguém que vê o que está por trás das máscaras. Você se esconde atrás da crença de que pode tudo, mas é apenas uma forma de fugir da verdade que tanto teme.”
O sonho parecia tão real que podia sentir o peso das palavras do homem penetrando em sua mente. “Eu acredito. Eu sei que posso… Deus me fortalece.”
Deu um leve sorriso, quase compassivo. “Acreditar é uma coisa, mas fugir é outra. Desde a infância, você busca segurança em algo maior porque não suporta a fragilidade da realidade. Mas o que você está fazendo é se esconder da sua própria vulnerabilidade. Você se agarra à ideia de que existe algo lá fora que o protege de tudo, quando na verdade, você é apenas humano, e o mundo, cruel como é, não se curva a crenças.”
tentou reagir, mas as palavras se prendiam em sua garganta. continuou: “A fé pode ser um bálsamo, um tipo de consolo para as feridas que a realidade provoca. Mas quando ela se torna um refúgio contra as dores que você não enfrenta, ela o aprisiona. Você se entrega à ideia de que um poder superior o livrará de todos os males, mas e se isso for apenas um mecanismo de defesa? Uma ilusão para cobrir o vazio existencial que a vida apresenta?”
No sonho, sentiu uma pressão crescente no peito, como se o peso das palavras de estivesse esmagando sua alma. Começou a questionar tudo. Seria sua fé apenas um escape da verdade, da dor de ser impotente frente à vida?
“E agora, ?” perguntou , quase como um desafio. “Você vai continuar esperando milagres ou aceitar que é apenas um homem, incapaz de controlar tudo ao seu redor?”
acordou, suado, o coração acelerado. O sol começava a aparecer no horizonte, mas algo dentro dele havia mudado. Pela primeira vez, ele começou a olhar para sua fé com outros olhos, questionando se aquele “band-aid” que ele usava para cobrir suas feridas emocionais não estava apenas escondendo algo mais profundo.
Nos dias que seguiram, parou de recitar o versículo com a mesma convicção. Não que tivesse abandonado sua fé, mas algo havia se desfeito. Ele percebeu que, ao longo de toda a sua vida, não estava fortalecendo a si mesmo, mas depositando sua força em algo externo. E ao fazer isso, deixava de confrontar sua própria fragilidade e o medo da incerteza.
Naquela pequena cidade, continuou sua vida, mas agora caminhava com outro tipo de força, uma que não dependia de promessas de remissão ou de um Deus que intercedesse por ele. Sua força vinha da aceitação daquilo que é, e não da esperança de que tudo poderia ser mudado. Ele entendeu que a verdadeira fortaleza estava em olhar para o caos do mundo, para as dores e falhas humanas, e ainda assim seguir adiante, sabendo que o poder não está em transcender a realidade, mas em abraçá-la, sem ilusões.
Assim, a máxima que ele tanto repetia, “Tudo posso naquele que me fortalece”, tornou-se para ele não mais uma afirmação de força sobre-humana, mas um lembrete de que, no final, sua verdadeira força vinha da coragem de enfrentar o que estava dentro de si mesmo. E nesse encontro com sua vulnerabilidade, encontrou a paz que sempre buscou.
A mudança em foi sutil, mas perceptível para aqueles ao seu redor. Já não falava mais de milagres iminentes nem de bênçãos reservadas a quem tivesse fé inabalável. Aos poucos, seus sermões antes inflamados foram substituídos por reflexões mais profundas e, para muitos, desconcertantes. começou a questionar não apenas sua própria relação com a fé, mas também a forma como as pessoas ao seu redor se agarravam a ela como uma tábua de salvação diante das adversidades.
Certo dia, enquanto caminhava pela praça central, se encontrou, uma mulher conhecida por sua devoção religiosa fervorosa. Ela o abordou com a Bíblia em mãos, perguntando-lhe se ele ainda acreditava que Deus iria intervir em seus problemas pessoais, como tantas vezes ele havia dito no passado.
“Deus há de me tirar dessa situação, ,” disse ela, com os olhos cheios de esperança e um toque de desespero. “Eu sei que Ele está comigo. Não é assim que sempre nos ensinou?”
olhou para ela, por um momento em silêncio, refletindo sobre suas palavras antes de responder. “Senhora, o que eu sempre ensinei… talvez eu não compreendesse tão bem quanto imaginava. Não quero tirar sua fé, mas eu acho que, muitas vezes, esperamos que algo ou alguém nos salve do que só nós podemos enfrentar. A vida é cheia de incertezas, de dores, e nem sempre há um milagre à espreita.”
Ela franziu o cenho, confusa, como se as palavras de fossem um choque para sua convicção. “Mas e o que sempre dissemos? ‘Tudo posso naquele que me fortalece’…”
sorriu, um sorriso triste, mas sincero. “Eu ainda acredito que existe uma força maior, algo que nos conecta a todos. Mas essa força não é uma garantia de que tudo será resolvido a nosso favor. Às vezes, a verdadeira força está em aceitar que não temos controle sobre muitas coisas e que, mesmo assim, podemos continuar. Podemos seguir em frente, mesmo sem certezas, mesmo sem milagres.”
Ela ficou em silêncio, olhando para o chão. “Então o que devemos fazer, ? Como continuar sem acreditar que algo nos protege?”
suspirou profundamente. “Acredito que a fé, verdadeira, não está em esperar por milagres, mas em encontrar paz naquilo que somos e no mundo como ele é. Não significa desistir ou perder a esperança, mas sim parar de fugir da realidade e abraçar a vida como ela se apresenta com todas as suas dores e contradições. Talvez seja aí que encontraremos a força de verdade.”
Ela não respondeu de imediato, mas algo em sua expressão suavizou. Acenou com a cabeça lentamente e, sem mais palavras, virou-se para seguir seu caminho, perdida em pensamentos.
Nos meses que seguiram, ele passou a ser visto como uma figura mais ponderada. Seus antigos seguidores, muitos ainda presos à busca por respostas sobrenaturais, começaram a se afastar. A igreja que ele uma vez liderava ficou menos cheia, mas ele não se importava. Aqueles que continuaram ao seu lado eram pessoas que, como ele, estavam dispostas a encarar a vida sem as garantias de milagres, mas com a coragem de viver o incerto.
Assim, seguiu, não mais como o pregador de certezas divinas, mas como alguém que aprendeu a encontrar força na aceitação da própria fragilidade. Não havia mais a necessidade de “poder tudo”, mas sim de viver plenamente aquilo que estivesse ao seu alcance sem medo de admitir suas limitações e suas dúvidas. E, paradoxalmente, foi nessa entrega à vulnerabilidade que ele descobriu sua verdadeira fortaleza.
A frase “Tudo posso naquele que me fortalece” continuava a ecoar em sua mente, mas agora de um jeito novo. Para , a força que o “fortalecia” não era mais a expectativa de um Deus que interviria em seu favor, mas a sabedoria de que a vida, em toda a sua imperfeição, já trazia consigo as respostas que ele sempre buscou. E a maior delas era que, às vezes, a maior prova de força é simplesmente continuar, sem a certeza de que algo ou alguém virá para nos salvar, mas com a convicção de que a vida, em sua crueza, merece ser vivida com coragem e aceitação.
Assim, caminhou por uma nova jornada não mais o pastor de um rebanho esperando por milagres, mas um homem que compreendia a complexidade da vida em sua plena vulnerabilidade. Não pregava mais a certeza de que forças sobrenaturais moldariam o destino de cada um, mas sim que a verdadeira força vinha da coragem de enfrentar a vida como ela é, sem esconder-se em ilusões.
Com o tempo, ele percebeu que suas palavras ainda ressoavam, mas de uma maneira diferente. Não mais como um consolo fácil, mas como uma chamada para a honestidade consigo mesmo, para a aceitação de que as incertezas e fragilidades humanas não são sinais de fraqueza, mas de profunda humanidade. Os poucos que o seguiam agora não buscavam salvação imediata, mas um entendimento mais autêntico de suas próprias vidas.
No fim, descobriu que “Tudo posso naquele que me fortalece” não era sobre a realização de desejos divinos ou a intervenção de um ser superior, mas sobre a força que cada um de nós pode encontrar ao aceitar a realidade com todas as suas incertezas. E foi nessa nova compreensão que ele encontrou paz, não a paz de quem espera ser resgatado, mas a paz de quem aprendeu a viver, com serenidade, diante do desconhecido.
Assim, sua vida continuou, não com milagres prometidos, mas com a força de um homem que descobriu que o maior poder estava, o tempo todo, dentro de si mesmo.
Renato Pittas
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